Jafar Panahi
Os filmes da minha vida (6)
Estou na cidade grande, de férias, curtindo o ar condicionado da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (prometo mais posts sobre o assunto, aguardem). Mas algumas tradições devem ser mantidas: aos três leitores valentes que acompanham esta série (inútil) de posts, tirei um tempinho para escrever mais um capítulo da estranha saga dos 100 filmes da minha vida.
Este Grande Projeto, como vocês já sabem, é apenas uma brincadeira mesmo: a ideia é listar não necessariamente os meus filmes preferidos, mas aqueles que acabaram deixando lembranças importantes. Simplezinho assim.
Alguns deles, não vejo há 20 anos. Em muitos casos, as tramas desapareceram totalmente da minha memória. Eles deixaram, no entanto (e de uma forma sinistra), rastros poderosos de imagens. Mesmo que eu quisesse (e digamos que eu queira?), não conseguiria me livrar desses filmes. Eles estão aqui, apenas isso.
090 | Delicatessen | Jean-Pierre Jeunet e Marc Caro | 1991
Taí um filme que se perdeu quase por completo na minha memória (à exceção do tom de cor da fotografia, um sépia sujinho, enlameado; isso ficou) e de que possivelmente eu não gostaria se revisse hoje – os artifícios de Jeunet não me comovem. A sessão, porém, foi das grandes: a minha iniciação no circuito “de arte”, e por total acaso. Estávamos em Botafogo, acredito que para ir ao médico, quando minha mãe decidiu aproveitar o tempo livre à tarde para espairecer no cinema. Quando a sessão terminou, ela pediu desculpas por escolher um filme “tão estranho”, mas eu estava maravilhado. Era diferente de tudo o que eu havia visto: para um garoto de 11 anos, acostumado a superproduções americanas, aquela comédia surreal parecia um OVNI, uma revelação cósmica. Na bilheteria, ganhamos de presente um porquinho dourado, que guardo lá em casa até hoje.
089 | O espelho | Ayneh | Jafar Panahi | 1997
No começo da minha cinefilia, alguns dos meus filmes preferidos eram aqueles que me surpreendiam: a sala de projeção ainda era, para mim, um espaço semelhante àquele ocupado pelos mágicos de circo. É claro que, com o tempo, a maior parte dos truques do cinema começaram a me parecer previsíveis, e passei a ver os filmes de uma forma menos inocente. O segundo longa de Panahi, marca essa transição – e ainda me identifico com a cena em que a atriz-mirim se revolta contra a equipe de filmagem e desiste de encenar o papel de uma menina chorosa, frágil, um lugar-comum ambulante do cinema iraniano dos anos 1990. O filme pode ser interpretado como um filme sobre a condição da mulher no Irã, mas também (e prefiro esse viés) como uma obra de aventura sobre os imprevistos de uma filmagem. Foi nessa época que comecei a ver o cinema não apenas como um truque que nos deslumbra, mas como um espelho para as surpresas da vida.
mostraSP | dias 1, 2 e 3
Era uma vez na Mostra de São Paulo…
Pois bem, folks: aqui começa o meu já tradicional (e tradicionalmente desajeitado) diário da Mostra Internacional de Cinema de SP, que começou sexta-feira e termina em 10 dias.
Este ano, o desafio é o mesmo de sempre: assistir a uma quantidade quase torturante de filmes sem cair no pecado de abandonar a programação para me dedicar a, digamos, jardinagem – ou a uma maratona de stand-up comedies. Os filmes ruins drenam a minha vontade de viver. Já os bons, vocês sabem…
Estamos no quarto dia de Mostra. Infelizmente, este é o primeiro post sobre o assunto. Não deu tempo para começar antes. Sou um sujeito ocupado, mesmo quando de férias.
A seguir, vocês encontram resumos apressados sobre os filmes que vi até aqui. Alguns parágrafos são maiores (e mais generosos, e mais sensatos) que outros. Para facilitar o acesso a meu gosto tão peculiar, aplico aos comentários uma cotação que vai da letra D (de, digamos, doente) a A+ (de, digamos, absurdamente bom).
Para reviews instantâneas, escritas logo após as sessões, recomendo uma visita ao meu Twitter. Mas perdoe a bagunça, ok?
The day he arrives | Bukchon banghyang | Hong Sang-soo | A | Talvez num aceno para o Rohmer de Minha noite com ela (ou ao Woody Allen de Manhattan), Sang-soo usa desta vez uma fotografia em branco e preto que transforma cada cena numa espécie de postcard sentimental, de uma beleza quase falsa (veja foto acima). Uma atmosfera muito apropriada, portanto, para narrar o encontro de um homem com as memórias (boas e ruins) que associa à cidade onde viveu no passado. É melancólico e gentil como uma velha canção de Sinatra, mas também tem algumas das conversas-de-bar mais engraçadas que o diretor já filmou. Não está entre os meus preferidos dele, mas é perfeito para os iniciantes na filmografia de um cineasta que faz sempre o mesmo grande filme.
Isto não é um filme | In film nist | Mojtaba Mirtahmasb e Jafar Panahi | A | A existência deste filme já parece algo milagroso: confinado dentro de casa, em prisão domiciliar, Panahi mostra quase tudo o que precisamos saber sobre a vida no Irã. É o longa mais agressivamente político do cineasta, e, ainda assim, pode ser lido como um romance minimalista de Kafka. Também é, no entanto, um tanto enganoso: a encenação que, num primeiro momento, dá a ideia de um registro espontâneo (“é o que tem pra hoje!”), aos poucos se mostra mais autoconsciente do que imaginávamos. Daí descobrimos que estamos metidos num dia de fúria, que começa numa mesa de café da manhã e termina em chamas. Não só um filme, mas um filmaço.
Era uma vez na Anatólia | Bir zamanlar Anadolu’da | Nuri Bilge Ceylan | B+ | É um pequeno conto policial ampliado às paisagens vastas de um western e à dimensão de um livro de 600 páginas. O projeto de Ceylan é muito preciso (e nada muito singular): dilatar a trama para ressaltar a banalidade do cotidiano. O que não me convence é a forma como o diretor usa os personagens para extravasar um certo sentimento de mal estar em relação à violência, como se eles não estivessem acostumados a todos os procedimentos técnicos de uma investigação. Me parece forçado, em alguns momentos. O preciosismo dos enquadramentos (everything in its right place) já não me irritou tanto: é como se os jogos cruéis que as pessoas jogam, para Ceylan, não alterasse o curso sublime da natureza.
Pater | Alain Cavalier | B | Imagino o espanto que deve ter tomado conta dos espectadores da sessão de gala de Cannes quando este filme bateu na tela. Cavalier novamente se expõe às câmeras com a coragem de quem se candidata a um reality show, mas cria tantas camadas de encenação que a brincadeira se torna, por vezes, enervante. Uma equação talvez resuma o longa: um filme político + o ensaio para um filme político + o jantarzinho da equipe do filme político + um documentário sobre o gato de Cavalier + o blog do diretor.
O futuro | The future | Miranda July | C | Se você procura uma definição audiovisual para o termo hipster, ela está neste filme indie sobre personagens que sofrem porque são: 1. hipersensíveis, 2. especiais, 3. inteligentes, porém ineptos ao convívio social, 4. criativos, mas de um jeito louquinho, 5. conscientes em relação às questões ambientais do planeta, mas incapazes de fazer algo decisivo sobre o assunto, 6. outsiders, mas adoráveis, 7. fofos, mas também amargos (porque a vida é tristinha), 8. conectados ao mundo tecnológico, mas não muito confortáveis com o grande esquema corporativo das coisas, 9. fãs de indie rock e de música de brechó (na trilha: Beach House e Jon Brion), 10. cheios de amor pra dar, mas sempre prestes a sofrer decepções amorosas porque a vida, você sabe, é tão decepcionante.
A ilusão cômica | L’Illusion comique | Mathieu Amalric | C | Uma ideia interessante, ainda que nada singular (pergunte ao Baz Luhrmann): adaptar uma peça consagrada a um ambiente contemporâneo, preservando o texto original. Os ruídos entre diálogos/imagens são inevitáveis. Mas, no caso, também irritantes: Amalric filma como quem dá risadinhas para os entendidos; e, no desfecho, mostra que, para se aproximar de um Brian de Palma e dizer algo particular sobre as ilusões do cinema, terá que comer muitos croissants.
Um pouco mais perto | A little closer | Matthew Petock | C | Uma versão live-action para South Park, só que sem humor. Larry Clark, saudades de você.
Angèle e Tony | Alix Delaporte | C | Personagens opacos, aprisionados no formato padrão de um drama francês para sessões das 14h do Festival Varilux. Com as bordas arredondadas, daria um remake hollywoodiano com, por exemplo, Julia Roberts e Philip Seymour Hoffman.
Ways of the sea | Halaw | Sheron Dayoc | C | Denúncia social didática, com fotografia “bonita” que chama excessiva atenção para si. Nas Filipinas, também não tá fácil pra ninguém.
Artigas | Cesar Charlone | D | Telefilme aborrecido sobre herói uruguaio. Sérias restrições orçamentárias? As restrições criativas, no entanto, são mais preocupantes.
Apenas uma noite | Last night | Massy Tadjedin | D | Um editorial de moda (bonita cozinha, Keira!) habitado por gente rica/bonita – que sofre sempre de um jeito higiênico e perfumado.