Infância

Os discos da minha vida (45)

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A incrível, terrível, estranha (porém previsível) odisseia dos 100 discos da minha vida chega a um episódio especialmente mágico. É que estamos coladinhos no top 10, meus amigos, prontos para a última etapa de uma viagem que começou em… em… quando mesmo? Não lembro. Mas faz um tempão. Um tempão

Estou pensando em alongar o suspense e, a partir do próximo capítulo, ir postando um disco por semana. O que vocês acham? Seria uma desculpa, é claro, para escrever um pouco mais sobre cada álbum, numa torrente quente (e desnecessária) de sentimentos e lembranças. Mas, se vocês preferirem, posso abreviar o novelão e ir aos finalmentes. Então? Vocês é que sabem.

Não custa lembrar que esta aqui é uma lista pessoal  (por isso, sem ambições técnicas, talvez filosóficas) de discos que marcaram a minha vida. Esse critério explica por que há muitos álbuns dos anos 90, época em que eu era adolescente (e cada disco era uma questão de vida ou morte). Aqui, Elliott Smith vem antes dos Rolling Stones. Mas acho que aqui mesmo.

No mais, não existe nenhuma incoerência nisso: no meu ranking de discos mais importantes, influentes, venerados, desejados, adorados etc, não tem Elliott Smith (coitado do homem, mas a vida é assim).

Esta semana, em vez de tecer defesas rocambolescas e apaixonadas para álbuns que são unanimidades, vou seguir jurar fidelidade à lógica desta série de posts e escrever textinhos também muito íntimos, sobre como eu encontrei esses dois álbuns extraordinários e como eles me atropelaram sem que eu percebesse. Simplezinho, ok? Ok.

012 | Automatic for the people | R.E.M. | 1992 | download

O meu primeiro do R.E.M. foi Out of time (1991), uma fitinha-cassete adorável que ganhei de aniversário e ouvi alegremente até o dia em que meu microsystem resolveu trucidá-la com uma mordida. Foi triste. Mas, um ano depois, aquele álbum colorido e melodioso já parecia pertencer à minha infância. Existia uma distância enorme que nos separava, e Automatic for the people chegou como que para mostrar que o R.E.M. estava ciente disso. Aquele era um disco mais cinzento e rarefeito, mais ou menos como eu me sentia em 1992, ano em que me mudei do Rio de Janeiro para Brasília. Depois descobri que era uma espécie de tratado sobre morte e luto, mas na época me parecia um aviso sereno de que uma fase na minha vida havia acabado. So long, meninice. Também era o disco que me uniu ao meu padrasto num período em que mal nos entendíamos. Criou-se um elo, finalmente. Em 1992, Automatic soava como uma ladainha talvez adulta demais, límpida em excesso, um sinal cristalino emitido de um radar distante, velho, suspenso no tempo. Um disco que sempre esteve lá, out of time. Hoje vejo apenas como um álbum lindamente polido, obra-prima desde o berço, perfeito demais para ser verdade. Top 3: Nightswimming, Drive, Everybody hurts.

011 | A tábua de esmeralda | Jorge Ben | 1974 | download

O disco de Ben, o meu brasileiro preferido, me leva ao tempo em que eu aprendia violão (sem muito sucesso). O professor fazia de tudo para defender a delicadeza sublime e a eternidade das batidas da bossa nova, mas aquilo me aborrecia de tal forma que eu acelerava as lições para chegar aonde eu queria: nos Beatles. As melodias que me atraíam eram as de Jorge Ben, os sambas do início de carreira, mas o professor dizia que eu não estava pronto para elas. E me indicou A tábua de esmeralda, uma “suruba de violões, muito louca” (nas palavras do sujeito, sempre muito saidinho). Quando ouvi o disco, saquei imediatamente o que ele quis dizer: não lembro quantas vezes reprisei a introdução de Os alquimistas estão chegando, tentando entender como aquilo era feito. E realmente soava como uma sandice: o Ben que deslizava naquelas músicas não era o malandro galante&sacana dos anos 60, mas um guru louco e genial, tentando engavetar os segredos do universo dentro do refrão – será que Philip K. Dick ouviu aquilo ali para escrever Valis, de 1981? Mas foi quando ouvi o ingrês de Brother que bateu o alívio: então temos o direito a criar músicas que soam como jogos infantis, canções sem sisudez alguma? Depois daquela revelação, as aulas de violão ficaram mais divertidas. Top 3: Brother, Os alquimistas estão chegando, Magnólia.

Após o pulo, veja os discos que já apareceram neste ranking.

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Undertow | Warpaint

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Neste clipe, as meninas do Warpaint vão à relva para encontrar lembranças de um tempo que não volta nunca mais. Campo dos sonhos, digamos. A direção é de Shannyn Sossamon. E a música, que está no ótimo The fool, não sai da minha cabeça há mais de uma semana.

Os discos da minha vida (6)

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Esta semana, na infinita saga dos discos que assombraram a minha vida, um parzinho insólito: um álbum que representa muito bem a minha infância e outro que explica quase tudo sobre o período em que (creio eu) virei adulto de vez. Tiago aos sete versus Tiago aos trinta. Um confronto que, para mim, é muito emocionante, muito profundo. E que, para vocês, é só mais um post de blog.

E é óbvio que você, leitor inteligente deste sítio, vai fazer o download desses disquinhos tão especiais. Semana que vem (se o mundo não se transformar em geleia cósmica) tem mais. 

090 | Merriweather Post Pavilion | Animal Collective | 2009 | download

Em dezembro de 2008, logo que este disco vazou na internet, eu o levei para uma viagem que fiz ao Rio de Janeiro. Foi um feriado em grande parte tranquilo, mas naquela época eu só conseguia pensar (em vão, é claro) no meu futuro. O que eu faria dele? Qual seria o próximo passo? Não foi a primeira vez em que eu me vi na pele de um adulto – de um homem responsável pelas próprias escolhas, sozinho no mundo -, mas naquele momento eu pude sentir claramente que algo estava se transformando na minha vida. Lembro que, enquanto esperava o voo de volta (que atrasou uma eternidade), este era o disco que eu ouvia repetidamente. Todas as músicas tentavam conversar comigo. Com meus medos (Also frightened), minha nostalgia (Summertime clothes), minhas inseguranças (My girls) e, finalmente, meus desejos mais inocentes (No more running). Enquanto ouvia, me percebi adulto. Talvez seja um álbum também sobre essa sensação. Top 3: Bluish, My girls, No more running.

089 | Selvagem? | Os Paralamas do Sucesso | 1986 | download

É um disco essencial para o rock brasileiro dos anos 80, eu sei – mas ainda não consigo encará-lo com distanciamento. Ainda soa, para mim, como um grão da minha infância. Principalmente a Melô do marinheiro, que entrou tão lá no fundo da minha memória e hoje está no mesmo compartimento onde guardo as canções de ninar que eu ouvia quando muito pequeno. Eu não desgrudava do lado A (quem conta isso é minha mãe) e é dele que sinto saudades: Alagados e A novidade têm o cheiro do bairro carioca onde eu vivia – e a cor de um daqueles verões fervilhantes, ingênuos, que não se consegue esquecer. Top 3: Melô do marinheiro, Alagados, A novidade.

Together | The New Pornographers

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Sempre que começo a escrever um texto para este blog, me sinto um pouco estúpido. Encaro a tela do computador e pergunto a ela, às vezes em voz alta: por quê? Quando chego ao último parágrafo, a questão continua beliscando meu calcanhar.

É que nada disso parece fazer muito sentido. Este blog. Os meus textos. As opiniões. Os argumentos contraditórios. O tempo que parcelo em toneladas de frases, sujeitos e predicados, verbos e, acima deles, os infelizes adjetivos. Por quê? Para quem?

Aprendi numa aula de economia que existe um custo para todas as nossas escolhas. É uma regrinha muito simples: o custo de abandonar um emprego, por exemplo, é voltar a viver no sótão de casa, sem dinheiro para almoçar em restaurante bacana. Quando tento aplicar essa lei ao funcionamento deste blog, fico louco. Filosoficamente falando, qual é o preço que eu pago por manter esta quitinete?

Talvez seja caríssimo.

Ontem à noite, fuçando nas gavetas de casa, encontrei uma revista de música e cinema que produzi aos 11 anos de idade. São 10 páginas de papel A4, digitadas em máquina de escrever e coloridas com giz de cera. Lembro que passei duas tardes editando aquelas resenhas. Ao fim do batente, o único leitor da publicação (eu) ficou muito satisfeito com o resultado.

Notei a semelhança: falo muito sobre adolescência, mas meus blogs são os vestígios dessa etapa da minha vida, o finalzinho da infância, quando eu escrevia (e criava músicas, programas de rádio, videoclipes em VHS, filmes imaginários) para ninguém. Era (e é) uma espécie de autismo criativo: eu, trancado dentro do meu cérebro, murmurando verdades.

Soa deprimente, eu sei. Mas, desde pequeno, não consigo domesticar essa vontade muito selvagem de escrever sobre o que vejo e sinto, os filmes e os discos e tudo o que existe entre eles. O mais curioso é que, quando criança, eu não era um menino solitário, sem amigos. Todos no bairro me conheciam. Eu era o presidente dos clubinhos — eu confeccionava as malditas carteirinhas! Com a minha Caloi azul, o meninão aqui liderava a equipe de bicicross. Mas, ainda assim, escrever me parecia um refúgio, uma ilha deserta.

Daí que, quando ouvi o disco novo do New Pornographers (uma das poucas bandas de rock que me levam de volta à infância, e não à adolescência), pensei: a hora é esta; vou parar com o blog e sanar a doença.

Parecia um plano razoável, mas não daria certo. Eu continuaria a rabiscar cadernos pautados e folhas de pão. Na minha lápide vocês encontrarão a frase: Tiago Superoito, que escreveu para as paredes.

E é impressionante como este disquinho novo do New Pornographers, Together, catalisou essas minhas preocupações e me ajudou a entendê-las. Por quê? É que fico com a impressão de que esta banda existiria de qualquer forma — com ou sem fã-clubes, críticas positivas, afagos de gravadores e status de “supergrupo indie”. Os álbuns dos canadenses, nos melhores momentos, soam como um jogo despreocupado entre amigos. Um divertimento. Uma tarde perdida, largada sob a brisa quente do power pop.

É como se cada um dos integrantes da banda se livrassem da realidade (as carreiras solo, todas muito respeitáveis) para curtir prazeres de infância: um refrão gorduroso, uma melodia excessivamente calórica, um riff safado, um ar de traquinagem. Canções para o churrasco de domingo. Só queremos nos divertir, é o que dizem discos como Mass romantic (2000) e Twin cinema (2005).

E isso é minha infância. Isso é este blog. Escrever por escrever. Escrever apenas por prazer.

É verdade que com o tempo, o New Pornographers deixou um pouco essa (saudável) pose de projeto descontraído para se afirmar como uma banda de verdade. Não colou. Challengers (2007) é um disco adorável, mas soa como uma colagem excessivamente cuidadosa (e mais “adulta”) de canções coletadas das carreiras solo dos principais integrantes: AC Newman, Neko Case e Dan Bejar. Dá para transformar hobby em trabalho? Acredito que sim, mas sentimos saudades daquela banda que não parecia banda, e sim uma farra, uma happy hour.

Together, já no título, tenta recuperar essa antiga sensação. Esforço consciente. Talvez por conta da receptividade morna de Challengers. Talvez por que a própria banda sentiu falta de um pouco de espontaneidade. Mas, por qualquer ângulo, é um disco que ocupa um espaço intermediário entre a minha infância e os meus vinte e poucos anos. A curtição alegre e as responsabilidades maçantes. Eu fico alegre quando vejo meu reflexo em The crash years (uma torrente de hormônios), mas um pouco tenso com a arquitetura calculadinha de If you can’t see my mirrors, que, com referências descoladas a Velvet Underground, resulta bem menos cool do que parece.

(E, tomando alguma distância do meu umbigo, note que este é um disco mais de Neko Case, que vem de um ótimo álbum solo e canta as melhores faixas, e menos de Bejar, que soa como se estivesse turbinando lados B do Destroyer. Já Newman, nosso chapa supercomum, quase não se destaca)

Se as primeiras gravações do grupo soavam como os amigos de meninice, que você conheceu aos 11 anos de idade (e seus rins tremem de emoção quando você lembra disso tudo, confesse), os mais recentes às vezes se assemelham aos reencontros com antigas turmas de colégio, quando tentamos simular as brincadeiras do passado e esquecer das obrigações. Tentamos, mas raramente conseguimos.

Nas boas canções (e são muitas, como Moves, Your hands, Up in the dark e We end up together), eles conseguem reprisar a mágica. O entusiasmo é real e os convidados especiais (do Beirut, St. Vincent, Okkervil River) entram na dança. A banda ainda me faz acreditar que eles vão continuar escrevendo e tocando canções como essas por muito tempo, mesmo quando a gravadora chutá-la e o último fã abandonar a arquibancada.

Acabou que, após dezenas de audições, este disco me convenceu a continuar com o blog e com os textos e com os argumentos e com os parágrafos inúteis que me perturbam e alegram. Para que serve o New Pornographers? Acho que para nada. Qual a relevância deles? Acho que nenhuma. Mas estou certo de que eu seria um pouco mais infeliz se esta banda (e este blog) não existissem.

Quinto disco do New Pornographers. 12 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Matador Records. 7/10

2 ou 3 parágrafos | Onde vivem os monstros

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Ao contrário de Quero ser John Malkovich e Adaptação, que gostei de imediato, o novo do Spike Jonze me deixou dividido. Por um lado, Onde vivem os monstros (Where the wild things are, 5.5/10) é seu filme mais pessoal: ele, um cineasta bipolar (hiperativo e melancólico, melancólico e hiperativo), retrata a infância com a energia e a aflição de um menino de nove anos. Por outro, esse desejo desesperado por catarse nos atropela com efeitos que me pareceram fáceis demais: a fotografia trêmula de Lance Acord, a trilha sonora florida de Karen O and The Kids, o tom deprê da encenação (todos os personagens, aparentemente, acabaram de acordar de uma noite terrível)…

Taí um filme que soa como um disco para crianças interpretado pelo The Polyphonic Spree e produzido pelo Jon Brion, com tudo o que isso tem de tocante e cansativo.

Harry Potter e o enigma do Príncipe

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harrypotter

Harry Potter and the half-blood prince, 2009. De David Yates. Com Daniel Radcliffe, Michael Gambon, Jim Broadbent, Rupert Grint e Emma Watson. 153min.

Hoje, um domingo morto, publicaram a última crônica de uma série que escrevi para o jornal. No total, ficamos em três textos. Três, e só três. Parece pouco, eu sei. Mas, para mim, foi mais ou menos como escrever um romance. Daqueles que duram mais de 800 páginas e nascem fadados a juntar poeira em estantes de bibliotecas (se você não sabe absolutamente nada sobre essa minha aventura absolutamente insignificante, recomendo a leitura deste post e deste outro).

Talvez, naqueles posts, eu tenha sugerido que a experiência teve um quê de tortura medieval – mas peço para que desconsiderem os eventuais exageros. Por natureza, sou um sujeito dramático. Meu mundo está sempre por um fio, vocês sabem. Para ficarmos num exemplo, quando descobri o sentido de “inferno astral”, pensei assim: certo, taí uma boa, justa definição para a minha existência.

Pois bem. O processo me ensinou algumas lições. Uma delas: meus textos são longos, prolixos; preciso enxugá-los (e imaginem o que significa continuar escrevendo um blog como este depois de chegar a essa conclusão – sou um herói). Outra: quando um prazo se impõe e o tempo é curto, você encontrará ideias de crônicas em cada diálogo, em cada cruzamento, em cada cena de novela, em todos os lugares. Pensei em escrever sobre meus vizinhos, que não conheço (e talvez isso aconteça em muitos lugares, mas aqui em Brasília é normal desconhecer os vizinhos). E sobre os diálogos absurdos que ouço quando paro o carro no semáforo. E sobre a história de um menino que vi na fila de Harry Potter e o enigma do Príncipe.

Até para não perder o timing do mundo, preferi me concentrar naquele caso pueril que narrei por aqui, sobre o casal de adolescentes que se encontra no aeroporto, etc. Essa crônica sobreviveu. As outras deveriam ter morrido. Mas não. Tai outra lição, anotem: mesmo as crônicas descartadas continuarão vivas, sabe-se lá como, sabe-se lá onde, até o momento em que finalmente serão ejetadas para o planeta. E, ao chegar nessa conclusão, não tento ser poético nem nada: é apenas um fato.

O menino da sessão de Harry Potter, coitado, viveu como rascunho por dois ou três dias, até ser massacrado e abandonado no fundo da lixeira do meu laptop. Cheguei a escrever as primeiras frases de uma biografia improvisada e rasteira, mas as desprezei quando minha namorada telefonou me chamando para um jantar. Ou seja: escrever ou não escrever uma determinada crônica pode ser um golpe do acaso. Uma decisão do destino. De deus, se é que ele tem tempo para se meter nessas tramas do cotidiano. Da minha namorada, que também manda e desmanda. Um esbarrão. Uma ação involuntária. Vá saber.

Resumindo a ópera: tenho a impressão de que o menino da crônica abandonada renderia um texto mais interessante que todos os três publicados. O leite está derramado, mas creio que fiz a opção errada em privilegiar o casalzinho sem-sal do aeroporto e menosprezar a saga de um garoto que, na fila da pré-estreia de Harry Potter, vestia uma capa de cetim preta e verde costurada pela avó.

Eis a história do rapazinho, então. Ele passou uma semana insistindo para que a avó costurasse a maldita capa do Harry Potter (planejada como um uniforme de Hogwarts, uma espécie de robe elegante e démodé). A avó fez o serviço e, na pré-estréia, o menino (que tinha uns 13, 14 anos), vestiu a fantasia orgulhosamente. Isso até o momento em que ele se aproximou da fila (uma fila enorme, que ia até a praça de alimentação) e percebeu que ninguém, nenhuma criança estava fantasiada. Ninguém usava robes ou capas ou carregava varinhas de condão. Ele sentiu-se instantaneamente envergonhado, como se tivesse feito algo muito errado. “Onde eu estava com a cabeça quando pensei nessa capa?”, perguntou-se. Mas ele gostava da capa, apesar de tudo. Era uma capa até apresentável, pensava.

Discretamente, ele tirou a capa e a pendurou no braço direito. Mas aí uma repórter viu a capa e pediu para o menino posar para o fotógrafo do jornal. “Vista a capa, por favor”, ela pediu. E o garoto, envergonhadíssimo: “Não é minha”. A repórter insistiu. Os outros espectadores perceberam a situação e começaram a rir do pobre menino, naquela altura já vermelho de constrangimento. Ele acabou cedendo. Fez a foto e, logo depois, arrancou a capa violentamente. “Não era minha”, ainda disse.

Eu estava ali e procurava uma crônica. Quem mandou? Vi naquela situação um cartoon vivo para as indefinições da adolescência. Existe um período da vida em que você não sabe o que deve fazer. Não sabe o que é permitido. Não entende a linha que separa a infância da idade adulta. Há ritos de passagem que chegam num empurrão, como aquele, numa fila de cinema, provocado por uma capa de cetim. Tai uma cena (melhor: uma sensação) que não encontrei em nenhuma das aventuras de Harry Potter. A fila é melhor que o filme!

No dia seguinte, tentei assistir ao filme para criar uma crônica que criasse um paralelo imaginário entre aquele menino de Brasília e o herói da ficção. Poderia ter rendido algo engraçadinho, mas a crônica foi sepultada por um jantar e pelas filas enormes que me impediram de assistir à sessão. Escrevi outra crônica e me dei por satisfeito com ela. Não é boa, mas é o melhor que consigo neste momento. Daí decidi assistir ao filme ontem à tarde, numa sessão menos concorrida, e percebi que desperdicei uma boa ideia. Azar o meu.

O que me interessa na série Harry Potter é notar como ela acompanha o crescimento de um grupo de personagens. No primeiro episódio, Potter tem 11 anos de idade. Neste novo, deve ter uns 16, 17. Os seis filmes, por isso, retratam a puberdade do herói, seus melhores amigos e os atores que os interpretam. Admito que as tramas nunca me fisgaram (é a clássica batalha de tipos superpoderosos contra as forças do mal, plana e tola), mas entendo que o público volte à série regularmente para reencontrar personagens e atores que, com o tempo, passaram a provocar a sensação de familiaridade típica de um amigo que, apesar de não muito presente, nos visita nas férias.

Apesar disso, são filmes que subestimam aquele que talvez seja o grande tema da série: a adolescência. Cada episódio sugere uma certa angústia, uma certa falta-de-jeito, que espiamos na dificuldade como Potter assume responsabilidades de adulto, mas saio das sessões com a impressão de que a experiência daqueles atores nos bastidores foi infinitamente mais interessante que tudo o que se vê no corte final. Como os dois próximos episódios não serão dirigidos por Gus Van Sant ou pelo Richard Linklater, temo que essa oportunidade será desperdiçada novamente.

O pior é que David Yates, o diretor, sabe o que está perdendo. Tenta valorizar os trechos em que Harry e os amigos se envolvem em casinhos apaixonados, flertes desajeitados. Cirandas quase drummondianas. Nesses momentos, o filme sugere uma versão “família” de A bela Junie. Ah, teria sido bom. Mas, nas 2h30 de duração, o cineasta precisa desenvolver aquela velha trama de fantasia que se arrasta por tantos episódios, uma saga frouxa que parece não terminar nunca. Aí nos lembramos que às vezes devemos encarar a série Harry Potter da forma despreocupada como vemos aqueles seriados de tevê à antiga, que se repetem a cada capítulo. Ainda que, claro, com uma produção mais elegante e cuidadosa que a de 90% dos blockbusters (o tom sombrio é acentuado sutilmente a cada episódio, por exemplo).

Procurei em Harry Potter os traços imprevisíveis de humanidade que encontrei no menino da capa de cetim. O fã do bruxinho. O garoto morto de vergonha. O espectador anônimo. Procurei e quebrei a cara. Quase pedi meu dinheiro de volta, juro. “A fila é mais divertida, moço”. Outra lição, pois: a frustração aguarda aqueles que andam pelo mundo com uma crônica atrás da orelha.

PS: A partir de hoje, as cotações dos filmes, discos e séries deixam de vez o blog e ficam no meu log, tiagos8.sites.uol.com.br. Obrigado.