Homens e deuses
Drops | Mostra de São Paulo (parte final)

A Mostra de São Paulo terminou ontem. Assisti a um punhado de filmes (ainda não fiz a conta) e, quando repasso todos os posts desta cinemaratona, percebo que o saldo deste ano foi muito positivo. Tão animador que consegui organizar um top 10 (+3) só com longas que, por aqui, mereceram cotação maior ou igual a 4 estrelas. E vocês sabem que, apesar de todo o meu bom-mocismo, não sou dos que saem distribuindo estrelas a torto e a direito.
Pois bem: antes do besteirol sobre os filmes do dia, eis o meu top 10 (+3) da Mostra de SP. Alguns ainda vão passar na repescagem (hoje, amanhã e domingo). Por isso, fiquem atentos:
1. Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas, Apichatpong Weerasethakul 2. Mistérios de Lisboa, Raúl Ruiz 3. Cópia fiel, Abbas Kiarostami 4. O estranho caso de Angélica, Manoel de Oliveira 5. Somewhere, Sofia Coppola 6. Homens e deuses, Xavier Beauvois 7. Film socialisme, Jean-Luc Godard 8. O mágico, Sylvain Chomet 9. Minha felicidade, Sergei Loznitsa 10. As quatro voltas, Michelangelo Frammartino +3. Caterpillar, Koji Wakamatsu, Machete, Robert Rodriguez e Ethan Maniquis e Armadillo, Janus MetzE novamente (que não custa ficar repetindo; este é um blog redundante e amnésico): muito obrigado a todos que me receberam tão bem em São Paulo. Abraço e até o ano que vem.
Gainsbourg – Vida heroica | Gainsbourg (vie héroïque) | Joann Sfar | 3/5 | Serge Gainsbourg confinado numa cinebio corretinha é o tipo de ideia fadada ao inferno das boas intenções. Mas, apesar de toda a polidez, este retrato em 3×4 ganha algum colorido nos momentos em que Sfar se livra da obrigação de reconstituir a trajetória do compositor e passa a brincar com o mito Gainsbourg, quebrando a correção da narrativa com delírios à cartum. Não chega perto das liberdades de um I’m not there, mas também não é qualquer Cazuza – O tempo não para.
Um homem que grita | Un homme que crie | Mahamat Saleh Haroun | 3/5 | Um drama africano narrado com o estilo econômico dos Dardenne e que, como Homens e deuses, se deixa intrigar pelas escolhas tomadas pelos personagens em situações-limite: o que motivaria um pai a escalar o próprio filho para a guerra? Atuações muito fortes, mas não consegui ver nada de muito particular no olhar do diretor, que não escapa de um modelo de ‘realismo engajado’ que é tão querido em festivais.
A rede social | The social network | David Fincher | 3.5/5 | Admito que, quando fiquei sabendo que David Fincher dirigiria um filme sobre a criação do Facebook, logo lembrei da avalanche de aplicativos visuais que o cineasta usou em Clube da luta. Daí a minha surpresa (que não é boa nem má, apenas uma surpresa): A rede social é o longa mais sóbrio e funcional de Fincher – na maior parte do tempo, o diretor não faz muito além de arejar as lacunas mínimas de um roteiro escalafobético. Mas essa aparência clean (a ação transcorre em quartos de faculdade e salas de reunião) só destaca o traquejo extraordinário de Fincher para técnicas de narrativa: é um filme fluente do início ao fim, mesmo quando dispara um vocabulário tecnológico que nos soterra. Não dá para levar muito a sério, no entanto, quem encontra aqui um retrato complexo da geração-Facebook: o texto se sustenta em estereótipos e chavões (o vilão ganancioso, a vítima injustiçada, o conflito entre amigos, a velha lição de que sucesso e dinheiro não trazem felicidade) para amaciar a pílula high-tech e vendê-la a um público que talvez ainda não tenha uma conta no Twitter. A esperteza de Fincher é, apesar de todas essas concessões, preservar o mistério em torno do personagem principal, que, talvez muito a frente do seu tempo, flutua enfadado sobre todas as intrigas da trama: no papel desse gênio solitário, o nosso menino-da-bolha (e, se você quiser, o símbolo de um modelo econômico em que ideias contam mais que acordos publicitários), Jesse Eisenberg compõe a performance mais impressionante que vi este ano.
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Drops | Mostra de São Paulo (12)

O projeto Frankenstein | Tender son: a Frankenstein project | Kornél Mundruczó | 1.5/5 | Uma adaptação sui generis (mas desastrada) do romance de Mary Shelley, que praticamente anula o tom fantástico do livro para ressaltar a relação entre o filho-monstro (no caso, um adolescente de 19 anos) e os pais. O conceito não trai o espírito do original, mas os personagens unidimensionais – todos apáticos, infelizes – denunciam o traço mais incômodo deste “projeto”, que competiu este ano em Cannes: é uma ideia sem alma.
O silêncio | Das letzte schweigen | Baran Bo Odar | 1.5/5 | Apenas mais um filme de serial killer (só que alemão, e com uma conclusão tolinha e previsível que seria vetada por qualquer produtor hollywoodiano experiente).
Almas silenciosas | Ovsyanki | Aleksei Fedorchenko | 3/5 | Como acontece em Minha felicidade, este Almas silenciosas é um ensaio sobre a identidade russa metido num disfarce de road movie. Mas, se o filme de Loznitsa é um ataque direto aos traços mais brutais desse “espírito nacional”, Fedorchenko se interessa pelos rituais que moldam uma nação. São filmes-tese, mas validados por um fator humano muito forte: no caso de Almas silenciosas, os dois personagens principais estão quase sempre à frente de uma fábula que, apesar de afogar o motor em alguns trechos (no desfecho simplório, na narração em off excessiva), acabou me surpreendendo como um dos longas mais escancaradamente afetuosos que vi nesta Mostra. O conceito até sufoca, mas o coração do filme não para de bater.
!!! Homens e deuses | Des hommes et des Dieux | Xavier Beauvois | 4/5 | Talvez à procura de um retrato digno, justo, dos os oito monges franceses que inspiram o filme, Beauvois compôs seres imaculados: tipos tão corretos, tão absolutamente dedicados à fé e à caridade, que definitivamente estão mais perto dos deuses do que dos homens. Mas essa é uma opção que me parece coerente (e este, repare, é um filme também sobre opções), já que estamos falando de um drama disposto a entender e respeitar as crenças, os ritos, o ritmo dos personagens. A atmosfera de tragédia iminente contamina a trama, mas Beauvois minimiza o suspense e descreve uma marcha serena para a morte. Mais do que o desenlace terrível dos eventos, o que intriga o cineasta é o processo radical de confirmação da fé, da aceitação de um fardo e de uma missão. Perdoem o trocadilho, mas parece até milagroso que ele tenha conseguido congelar esse enigma todo numa única cena – que é sublime, é sim.
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