Hip hop
Superoito express (42)
Watch the throne | Jay-Z & Kanye West | 72
Parece que há algo muito errado, até defeituoso, quando os dois rappers mais poderosos do mundo se encontram para gravar um disco de 46 minutos de duração. Sabemos que, no hip-hop americano, o excesso faz parte do jogo (e não será difícil encontrar mixtapes com mais ideias que um álbum quádruplo de rock). Mas taí a surpresa de Watch the throne: é conciso, e não tão desconjuntado quanto prometia ser.
E, mais chocante que tudo isso, nem tão ambicioso quanto alguns de nós prevíamos. É como se Kanye West (de My beautiful dark twisted fantasy, 68 minutos) e Jay-Z (de The blueprint 3, 60 minutos) aproveitassem a ocasião para nos mostrar que nem sempre são os chefões controladores e obsessivos que dão a entender. Às vezes eles se divertem. E Watch the throne soa mais como feriado (é leve, até rasteiro em alguns momentos, sem tantos desafios para a dupla) que como um dia pesado de trabalho.
Pode soar decepcionante, para quem esperava um “statement” sonoro (como o primeiro The blueprint) ou uma epopeia sentimental (à altura de My beautiful dark twisted fantasy). Watch the throne é menos, bem menos – e nem consigo notar momentos verdadeiramente delirantes ou surpreendentes (ainda uma ou outra faixa brilhe com força: New Day, que relê Nina Simone via autotune, e That’s my bitch, com um Bon Iver irreconhecível). Noto o contrário: Kanye e Jay-Z se divertindo dentro da zona de conforto que criaram para eles.
E, se eu deveria sim ter me animado mais com essa ideia (um bom disco de Kanye ou de Jay-Z supera quase tudo o que se ouve nas rádios), o resultado me parece uma “victory lap” esquecível. Eles podem, eles fazem, mas este disquinho deixa um pouco de saudade dos discões que eles às vezes nos entregam – sim, os de 60 minutos.
Channel pressure | Ford & Lopatin | 79
Se Channel pressure é mesmo um tributo à poplândia dos anos 80, então o que vejo é Tron meets War games: o game da paranoia, como se o Muro de Berlim ainda estivesse de pé (e como se ainda estivéssemos todos esperando pela explosão nuclear e/ou pelo desembarque dos ETs de Spielberg). Mas tem bug neste sistema: aos poucos, o disco desta dupla americana se revela não somente uma festa retrô para trintões, mas um daqueles álbuns irônicos de electropop, nos moldes de Discovery (do Daft Punk) e United (do Phoenix), que usam a sucata nostálgica como material para uma criação que diz respeito ao tempo presente. Poucos discos soam tão atuais: principalmente no jeito despreocupado como flutua de estação em estação, dos excessos grotescos ao acorde mais singelo, quase brega (e Emergency room, acima disso tudo, é uma das músicas mais viciantes do ano). Modular o passado com uma aparelhagem toda nova: eis o desafio deste belo joguinho.
Instrumental mixtape | Clams Casino | 78
Clams Casino é o produtor de Nova Jersey que, dizem, cria no porão da mamãe a sonzeira oh-tão-sexy de rappers como Lil B, Soulja Boy e Mobb Deep. Esta mixtape instrumental, que ele distribui na web, mostra que o palavreado dos colegas às vezes atrapalham a arte do sujeito. De tal forma que ninguém vai sentir falta de vocais em faixas que nos surpreendem de 30 em 30 segundos e, por isso, nos entretém (aliás, é uma marca do estilo de Clams: bolar associações improváveis entre ritmos e gêneros, do rock progressivo à soul music setentista). It’s a keeper. Mas acho que seria interessante descobrir como ele se viraria num disco concebido para não ser acompanhado por vocais: aí sim, provavelmente estaríamos falando de um dos grandes álbuns do ano.
Electronic dream | araabMusik | 78
Se a mixtape de Clams Casino às vezes soa sortida como uma jukebox, a estreia do produtor Abraham Orellana (ou araabMuzik) impressiona por uma atmosfera de quase claustrofobia: quando paro de ouvir o disco, ainda fico com a imagem de um quarto pequeno e negro, fuzilado de minuto a minuto por flashes de estrobo. Tal como nos discos do The-Dream, o que temos é um produtor tentando agressivamente impor um estilo: que, apesar de não ser tão marcante ou original quanto ele acredita que é, cria uma tela específica, com limites muito bem definidos, e um temperamento que se reconhece de imediato. Para um primeiro disco, é de uma coesão incrível. Ainda acho, no entanto, que araabMusik criou uma mise-en-scene poderosa, mas à procura de um bom elenco de canções — poucas, acima de tudo Streetz tonight, ficam na minha memória quando a festa termina.
Goblin | Tyler, the Creator
Música pop também é uma questão de timing. O disco certo na hora certa. A canção que, de alguma forma, sintoniza o momento em que foi criada.
Um álbum como Dirt, do Alice in Chains, não nos atingiria com tanta força se lançado depois de 1992. Longe da primavera grunge, como ele teria se comportado? Não faço ideia. E de que modo ouviríamos a estreia de The fat of the land, do Prodigy, em 2005, em 2011? Talvez como uma nota de rodapé. Quem sabe?
Experimente “ler” a trajetória da música pop como quem vira coleções antigas de jornais: ele, o pop, conta a nossa história num acúmulo de flashes, de textos efêmeros, que logo se tornam datados. Cada disco colabora para esse grande arquivo. Mas há os que, por um motivo ou outro, ganham o peso de manchetes de primeira página: Nevermind, Parklife, Is this it, Kid A, esses abrem capítulos (goste deles ou não).
Existe uma hierarquia no pop, e estou cada vez mais certo de que ela é definida menos por conceitos imutáveis de “beleza” ou “rigor” (intrínsecas a cada obra) e mais pela forma como os álbuns enfrentam o mundo. Sinto que os melhores discos pop estão sempre querendo interpretar um “estado de coisas”, reportar (mesmo que por uma via introspectiva, totalmente pessoal) impressões e sensações que estão no ar.
É uma vocação mais próxima do jornalismo (da reportagem, da crônica, do artigo, da charge) que da literatura ou das artes plásticas ou do cinema ou da música erudita.
Bem. Mas essas são ideias meio ambiciosas que eu desenvolveria se tivesse mais tempo. E, é claro, se isto aqui não fosse um blog nanico, relutante, incompleto, que nunca chega lá.
No mais, este é apenas um post sobre Goblin, o disco novo de Tyler the Creator. Bom dia.
Tyler Okonma, vocês sabem, é um rapper de 20 anos que lidera o coletivo Odd Future Wolf Gang Kill Them All (também conhecido como Odd Future ou OFWGKTA). O grupo de Los Angeles — formado por oito MCs, além de produtores e ilustradores — se fez notar com um turbilhão de mixtapes (sempre de graça, no site oficial) e por shows no esquema panela-de-pressão (performance-zoeira, muito da agressiva).
O New York Times e o Guardian, por exemplo, escreveram artigos muito elogiosos sobre o combo de hip-hop: foram comparados ao Wu-Tang Clan e ao NWA. Mas, por enquanto, o entusiasmo em torno do Odd Future se dá na internet: os blogs de rap não o respeitam os garotos (eles têm entre 18 e 20 anos), mas os sites de indie rock dão trela. Nos discos, Tyler garante que não está nem aí para esse falatório: escreve músicas para ele próprio e mais ninguém.
“Os críticos não me conhecem, eles não entendem”, disse, em entrevista ao NY Times. “Eles não tiveram 18 anos em algum momento? Nunca pensaram só na diversão?”
O importante, acima de tudo, é que a saga do Odd Future é uma ótima história, jornalisticamente falando.
Qualquer repórter de cultura mais ou menos bem informado há de encontrar no Odd Future um quadro de sintomas deste início de século. Está tudo aqui: a atitude libertária em relação ao consumo de música (mixtapes de graça!) e ao próprio estilo (que vai do punk ao R&B), a naturalidade no trato com a web, as tentativas de quebrar (às vezes literalmente) a barreira que separa o palco da plateia, a noção de que o pop pode ser um happening, arte de rua, uma festa com acesso livre.
Goblin é o primeiro disco que leva esse “Odd Future Way of Life” a um patamar próximo daquilo que chamávamos de mainstream: ele sai pela XL Recordings, de Adele, Vampire Weekend e M.I.A.
E, como costuma acontecer nesses ritos de passagem, Tyler sente o baque.
Em parte, Goblin é um disco sobre escrever música para uma plateia grande demais. Também é um álbum que tenta condensar os mandamentos do Odd Future numa espécie de manifesto, uma carta de visitas: é longo (73 minutos), tem muitos convidados especiais e experimenta de tudo.
Simbolicamente, ele já nasce muito importante. Representa um momento para o música pop da mesma forma como, digamos, Kala, da M.I.A., representava em 2007. Parece inútil ir contra essa força do disco: goste ou não, ele é o elefante no meio da sala.
O bacana é (e isso pouco tem a ver com relevância) é que Goblin também se sai muito bem como um disco de hip-hop pós-Wu-Tang, pós-Eminem: é daqueles álbuns que comprovam o poder do gênero abrigar e amplificar discursos absolutamente francos e até inadequados, sem filtros ou autocensura. É um disco todo desgrenhado, sujo, feito de cuspe, pensamentos impróprios e vísceras. E que, não à toa, flui no formato de uma confissão do narrador (o próprio Tyler) ao terapeuta (que volta e meia dá as caras, com um vozeirão cavernoso).
E a beleza estranha de Goblin está aí: Tyler entende que tem novas responsabilidades (antes de Radicals, a faixa mais violenta, ele avisa ironicamente que o conteúdo da música é “ficção”), mas não quer abandonar o mundo narrativo que criou. E o que podemos fazer quando a encenação da vez tem as cores de uma HQ de Frank Miller?
Daí os dois movimentos do disco: Tyler controla o id selvagem (para explicar-nos que é tudo brincadeirinha) e deixa que ele se solte no interior das canções (as confissões domésticas de Nightmare e a dor quase romântica de Her são de doer). Algo se perde nesse processo, é verdade: aposto que os fãs vão reclamar de uma postura mais cautelosa do rapper. Mas, quando deixa claro que escreve contos de ficção (ou de autoficção, digamos), Tyler vai criando camadas no próprio discurso e nos guiando a um estilo denso, espertíssimo. Um conto de monstros (Transylvania) para sujeitos sem glória (Goblin).
Musicalmente, o disco é menos complexo: ele deixa transparecer os buracos no cenário, a fiação pendurada no teto, a origem “underground”. A produção, tocada pelo próprio Tyler, às vezes beira o singelo, muito aquém do que se ouve num álbum do Kanye West ou do The Weeknd, por exemplo: é como se, nessa opção por expor o orçamento reduzido do filme, Tyler criasse limites para o jogo. E aí acaba que fica muito bonito, por exemplo, quando ele encontra “soluções baratas” para dar estofo a faixas como Goblin (o filete de melodia triste, orquestrada, que invade o rap de vez em quando), Nightmare (quem odeia dubstep vai detestar: piano + som de batidas na máquina de escrever) e Radicals (que tem um quê de lounge, quando a pauleira sobre “matar pessoas, queimar merda e foder a escola” termina). Não é sempre que acontece, no entanto.
Nada que ofusque a fala de Tyler: o que nos hipnotiza de ponta a ponta do disco é o adolescente vaidoso, sexy, suicida, escatológico, carente, megalomaníaco, estúpido, engraçado, boca-suja, o rei das polêmicas vazias, o hype que não se sustenta, o moleque que organiza o movimento e pensa em mudar o pop, a América, o mundo. “Não sou modelo para ninguém”, ele avisa. Não?
Goblin está longe de ser o melhor disco de rap do mundo. Mas ele traz um desejo de relevância, e enfrenta o mundo com tanta graça, que o esforço compensa o que há de imaturo no processo. Imperfeito do jeito que é, talvez seja o disco perfeito para 2011: se você perguntar para mim o que há de mais urgente na música pop, vou apertar o play. E ficar quietinho.
Segundo disco de Tyler, the Creator. 15 faixas, com produção de Tyler e Left Brain. Lançamento XL Recordings. 8.5/10
Mixtape! | Abril, pela manhã
A mixtape de abril é soul. Entende? Soul music, meu filho. Pra rebolar o cérebro e aquecer os ventrículos. Coisa forte, que gruda e (cuidado!) pode machucar.
Portanto, já estou preparado para reações adversas: quem vem a este blog procurando indie rock vai cair do cavalo (apesar de uma ou outra surpresinha); quem curte um country rock vai ficar mordendo cana. Mas só desta vez, ok? É uma coletânea especial.
Especial porque sempre quis gravar um CDzinho temático, puxado mais pro r&b, pro funk, pro hip-hop e adjacências. Eis o rapagão, finalmente vestido para seduzir as minas. Admito que estou muito orgulhoso do moleque.
É, de muito longe (e desta vez não estou forçando a barra), a melhor coletânea de todos os tempos deste blog. É coesa e também um tantinho surpreendente, é dançante e também profundamente triste, é um disco de amor escrito com linhas tortas de melodia, é pesadona e às vezes levinha. Se ela pudesse falar, diria: sou foda!
A ideia apareceu graças à música que abre o disco: The morning, do The Weeknd. É a minha preferida do ano (até abril, é claro) e está num discão: House of balloons. A foto lá em cima, com louvores, é deles. Tudo o que tentei foi criar uma coletânea que estivesse à altura dessa canção e que, de alguma forma, dialogasse com ela. Acho que consegui.
O disco conta uma história com início, meio e fim. Desta vez não vou estragar o surpresa: deixo que vocês tentem adivinhar sobre o que ela trata. Mas a coletânea também pode ser compreendida aos pedaços – e, desta forma, aparecem conotações muito diferentes, que fazem referência a pessoas que conheço e a situações da minha vida.
É um CD, por isso, de muitas dedicatórias. Uma parte do set é dedicada explicitamente à minha namorada (Roll up, You e Street) e trata amor e telefonemas de longa distância. Uma outra parte é para os meus amigos mais próximos (Last night at the Jetty, Ok). E, de uma ponta a outra, é um disco para quem frequenta este blog com mais dedicação e topa embarcar nas minhas loucuras quase diárias. Principalmente pro Pedro Primo, que vai entender direitinho este CD. Esse é teu, rapaz!
Sem querer forçar uma dissertação de mestrado, o disco tenta humildemente mostrar um pouco as variações do hip-hop que me agrada, do mais juvenil (Love is crazy) ao mais sábio (People are strange) ao mais peralta (Ok) ao mais melancólico (The vent). Vai fazer muito sentido, se você prestar atenção.
Além de The Weeknd, o CD tem Wiz Khalifa, TV on the Radio, Childish Gambino, Das Racist, Bibio, Metronomy, Jamie Woon, Panda Bear, Big KRIT e Beastie Boys. Mês que vem, se eu me convencer de que este blog merece a vida, prometo incluir Fleet Foxes (que não combinou muito com o clima deste disco, infelizmente).
É isso, acho. Gravei esta coletânea ainda na primeira metade do mês e fui fazendo pequenas mudanças aqui e ali. A conheço em cada detalhe. Por isso repito: não há outra que me agrade tão completamente. Mesmo que você deteste soul music, dê uma chance a ela. Talvez, quem sabe?, a danada acabe colando em você.
E depois (vamos lá!) deixe um comentário sobre a experiência. A lista de músicas, como de costume, está na caixa de comentários. Até mais e (no caso, bem apropriadamente) boa noite.
Faça o download da mixtape de abril.
(aproveite o embalo e faça também o download das mixtapes de fevereiro e de março)
Os discos da minha vida (20)
Semana delicadíssima para a saga dos 100 discos que estouraram o champanhe da minha vida: entre as festas de Natal e ano-novo, muita gente bronzeada está tirando férias, viajando, curtindo a praia, desligando computadores, afogando pen-drives e respirando ar puro. O que é triste: este blog, que costuma receber cinco ou seis visitas diárias, já se sente muito só.
Os que saíram pra curtir a vida vão perder um capítulo especialmente inspirado desta série interminável de posts. Vale por um dia inteiro de sol, mate leão e sanduíche natural (ok, não vale tudo isso, mas vamos fazer de conta que sim).
Por coincidência (e tudo aqui é mera coincidência, reparem), dois discos que me pegaram mais ou menos na mesma época, quando eu era um garoto de 14 anos que amava os Simpsons e a revista Rolling Stone.
Sim, eu vestia camisas de flanela meio pobretonas, adquiridas na C&A. Mas as coisas não eram tão estereotipadas assim (e o outro disco do post mostra que havia algo de complexo naquele tempo bom que não volta nunca mais).
062 | In utero | Nirvana | 1993 | download
A primeira audição foi um terremoto. Minha irmã trancou a porta do quarto, minha mãe avisou que eu estava passando dos limites e meu padrasto me chamou para uma conversinha. Eu mesmo demorei para sobreviver a um disco que soava como uma cirurgia dentária (sem anestesia). Era uma época em que as bandas de rock disputavam para ver quem gravaria o álbum mais enfezado. Kurt Cobain, mais uma vez, venceu. In utero registra com secura (saudades de você, Steve Albini!) o pessimismo dos depressivos, a agonia dos suicidas, a aflição dos obsessivos. Síndromes de uma geração. “A fúria adolescente rendeu muito bem, agora estou entediado e velho”, Cobain admitiu, aos 26. Era como nos sentíamos: velhos, e cedo demais. Top 3: Heart-shaped box, Serve the servants, Pennyroyal tea.
061 | Paul’s boutique | Beastie Boys | 1989 | download
O disco que adaptou o Beastie Boys aos anos 90 (Check your heads, de 1992) me levou a este álbum de 1989 que é, talvez sem chance de discussão, o manifesto do trio por uma colagem pop sem freios ou vergonha na cara. O medley final, B-boy Bouillabaisse, cria uma conexão entre o hip-hop dos anos 1980 e o lado B de Abbey Road, dos Beatles. Por que não? Produzido sem os padrões de polidez da época (saudades de vocês, Dust Brothers!), o disco é uma confusão de samplers e hinos adolescentes que primeiro nos sufoca e depois nos deslumbra. Uma prévia para Odelay, do Beck, e para todos os outros discos pop dos anos 1990 e 2000 que fizeram da reciclagem (e do contrabando de ideias) uma arte. Top 3: Hey ladies, Shake your rump, Shadrach.
Superoito express (33)
Man on the moon II: The legend of Mr. Ranger | Kid Cudi | 7
Um álbum de hip-hop dividido em cinco atos (um deles atende por You live and you learn), com uma faixa chamada Scott Mescudi vs. the world e um título que parece ter sido concebido pelo George Lucas. Tem como não gostar? Infelizmente tem, se o seu iTunes emperrar na faixa 8, Erase me, um rockzinho ordinário que nem Kanye West salva. Antes que você comece a refletir sobre o quão terrível é o fato de que os mais promissores pupilos do rap geralmente não sabem diferenciar Kings of Leon de Queens of the Stone Age, sugiro um rolê no segundo ato do disco, A stronger trip, usa psicodelia e dub para fins medicinais (a dobradinha Marijuana e Mojo so dope é, perdoe a falta de inspiração, viciante).
E, quando o sujeito resolve brincar com um sampler soturno de St. Vincent (“Paint the black hole blacker”, em Maniac), a pergunta volta a fazer sentido: tem como não gostar? Tem, principalmente para quem ainda se encontra perdido nos vãos de My beautiful dark twisted fantasy, de Mr. West. Dois álbuns talvez igualmente ambiciosos, mas note as diferenças: enquanto West bagunça o interior das canções (que são longas e sinuosas), Cudi tenta nos impressionar com o acúmulo de faixas que disparam ideias coloridas, mas por vezes superficiais. É daqueles discos que nos agradam mais pelo temperamento frenético do repertório do que pelas canções em si. Não é tudo o que pensa que é – mas tem como não gostar?
Le noise | Neil Young | 7
Em tese, é o disco em que Young decanta a própria identidade até que restem apenas os elementos essenciais: a guitarra (alta, ruidosa, massacrada por toneladas de efeitos) e a voz. Mas nada na trajetória do homem é simples como parece, e basta lembrar que o disco anterior a este é o desgovernado (mas muito franco) Fork in the road, praticamente um álbum conceitual acerca de um carro ecológico. O que o produtor Daniel Lanois faz em Le noise é um ‘extreme makeover’ parecido com o método que aplicou em Time out of mind, de Dylan: criar uma atmosfera crepuscular, cinematográfica, mas com lacunas para que o compositor vença os maneirismos de estúdio. Mas esse conceito rigoroso por vezes parece uma estratégia para empacotar canções não exatamente inesquecíveis. Elas condensam tudo o que esperamos de um disco de Young – os lamentos de guerra e os hinos pacifistas e os retratos de homens solitários e a fúria juvenil – sem muitas surpresas ou desafios. De qualquer forma, é sempre uma alegria ver o sujeito verdadeiramente se esforçando e criando maravilhas como Peaceful Valley Boulevard. E, sejamos justos, é o mais coeso dele desde Silver and gold, de 2000.
Marnie Stern | Marnie Stern | 7
O terceiro disco da nova-iorquina pode ser interpretado de uma forma pessimista (soa como uma reprise dos anteriores, um beco sem saída, um exercício seguro etc) e de uma forma muito otimista (soa como uma celebração do estilo que Marnie talhou nos dois outros discos). Minha tendência, no caso, é o pensamento positivo: este é o primeiro disco dela que não me parece um projeto frio de faculdade de Arte, com todas aquelas camadas calculadas de distorção supostamente agressiva. Acredito que, desta vez, Marnie conseguiu vencer se livrar desse véu chamativo e se encontrou nas canções. A última faixa, The things you notice (que incluí na mixtape de outubro) poderia muito bem servir de ponto de partida para o próximo disco: tem o molde atormentado, paranoico, pontiagudo, do restante da discografia que ela lançou – mas é como se a autora das canções finalmente se expusesse de corpo inteiro. É bonito, é delicado (de uma forma inusitada) e, melhor ainda, soa intenso.
Swanlights | Antony and the Johnsons | 6
Um dos discos mais valentes do ano, já que Antony renega quase todos as referências pop para encontrar uma sonoridade tão serena e introspectiva quanto é (aparentemente) o momento em que ele vive. E encontra: mas pena que é um som tão etéreo que às vezes se dissolve nos headphones. Ouvi o disco pelo menos cinco vezes e só consigo me lembrar das faixas que destoam desse climão solene: I’m in love, que soa como uma daquelas divinas criaturas de Van Dyke Parks, e Thank you for your love, que abre um caminho soul no coração desta floresta gelada. Não é um álbum que consigo ouvir com frequência (e não recomendo a ninguém que acabou de romper um namoro; a dose de melancolia pode ser brutal). Mas, no momento certo, pode ser o antídoto aos excessos que imperam no indie rock.
Superoito express (29)
Pilot talk | Curren$y | 8
O hip-hop nos acostumou a esperar por discos sempre maiores, melhores e, principalmente, mais ousados. Este Pilot talk chega depois de um álbum que cumpre muito bem esses requisitos – o do Big Boi -, e não haveria momento mais adequado. A estreia de Shante Anthony Franklin não tão grande, nem tão bom, nem tão atrevido. Mas é praticamente um tratado sobre uma habilidade essencial para o gênero: flow. Fluência. É um disco que se movimenta como uma máquina tão potente, tão elegante, que quase não faz barulho. Soa tranquilo. Uma pluma.
Mais que isso: soa seguro. Shante chegou ao primeiro disco depois de uma longa viagem pelas paragens das mixtapes – e tudo o que ele aprendeu está condensado nesses 40 minutos que, em matéria de concisão, oferecem uma aulinha para The-Dream e Drake. As melodias meio metálicas e jazzísticas de Ski Beatz (que despontou no excelente Reasonable doubt, do Jay-Z, ainda em 1996) criam um ambiente enevoado que combina perfeitamente com as crônicas dopadas do rapper, sobre situações às vezes banais de tão corriqueiras (em resumo: maconha, videogame, cachorros, a inveja dos outros manos etc). Mas até aí o disco nos surpreende: Life under the scope tem tudo para virar um dos hits mais lúcidos sobre as neuras de celebridades. “Eles só assistir à nossa queda. É por isso que a câmera está ligada quando estamos andando. É por isso que eles escutam quando estamos falando”, resume Curren$y. No alvo.
Body talk pt. 2 | Robyn | 7.5
Se fosse uma mulher mais prática, Robyn reuniria todo o repertório que escreveu para o projeto Body talk, selecionaria 10 faixas e lançaria o melhor disco pop do ano. Mas preferiu fazer algo menos eficiente, mas talvez muito mais interessante: essa extravagância tripla soa como uma resposta ‘dançável’ (e mui desencanada) a Have one on me, da Joanna Newsom. Com uma diferença (fundamental): Robyn garante que os minidiscos sem refletir muito sobre o assunto. Uma certa displicência que resulta em singles muito fortes (In my eyes e Love kills, por exemplo), em tentativas curiosíssimas (desta vez, a paranoica We dance to the beat, que dá sequência aos desabafos de Don’t fucking tell me what to do) e em álbuns disformes, incompletos, mas que, de alguma forma, conversam uns com os outros. A ponte entre a primeira parte e a segunda é Hang with me (antes, uma balada esgorregadia; agora, um hit para pistas). E o desfecho, Indestructible, finalmente nos convence de que Robyn também tem sentimentos. To be continued.
Wake up the nation | Paul Weller | 7
Ouça o amigo aqui: os confetes da crítica inglesa para a este disco (por lá, uma das unanimidades do ano, à altura de Arcade Fire e Janelle Monáe) diz mais respeito ao que se espera de Weller do que ao álbum em si. A resenha do Guardian é o melhor exemplo disso: para quem aguarda por um disco prevísível e cômodo como uma novela das oito (como o resenhista esperou), pode ser um choque. Existe um esforço muito eficiente para criar uma arquitetura sonora que remeta a álbuns de rock psicodélico do fim dos anos 1960 (sonoridade de box Nuggets, vide os discos mais recentes do Super Furry Animals). As faixas curtísstimas – a maior, de quatro minutos, soa como um épico progressivo – evitam que percamos a paciência com o discurso embotado (Weller nos pede até para “desligar o telefone e o Facebook”) e estimulam várias audições. Na média, no entanto, é o tipo de disco aventureiro que Bob Dylan continua gravando (e o álbum solo que o Noel Gallagher não teria a coragem de lançar). Mas a distância entre Weller e Dylan ainda é aquele abismo que conhecemos bem…
Mount Wittenberg Orca | Dirty Projectors + Björk | 7
Dave Longstreth e Björk: dois mamíferos separados no nascimento. Mount Wittenberg Orca, este miniprojeto ecológico-beneficente, é o atestado dessa (odeio a palavra, mas soa apropriada) simbiose quase perfeita. Ela sussurra versos escritos do ponto de vista de uma baleia (!) e ela responde com mantras lânguidos para a Mãe Natureza. Ela geme, ele sussurra – aposto que Dave continua as frases que Björk começa. São artistas que – mais uma semelhança! -gostam de desafiar as expectativas que eles próprios despertam. Daí que, para quem temia por uma miniópera enigmática e aborrecida, este EP soa como um banho de água quente – melodioso e quase espontâneo. Em alguns momentos, é como se Dave tentasse grudar as pecinhas de Bitte Orca nas de Homogenic. Dá liga. E olhe que beleza: em Beautiful mother, a experiência deu num filhote bastardo de Child is father of the man, de Brian Wilson. Golfinho de pelúcia, digamos.
Sir Lucious left foot: the son of Chico Dusty | Big Boi
Há mais ou menos 10 anos, o OutKast era praticamente o reino de André 3000. Ele era o rapper de criatividade incansável, o showman hiperativo e destemido, o entertainer que parecia ocultar uma quantidade infinita de ideias alucinadas. O hitmaker. O mágico de circo.
É claro, sim, havia Antwan Patton, o Big Boi. Mas ele não parecia se incomodar muito com a pecha (injusta, veremos a seguir) de vice.
O ápice comercial da dupla (o single Hey ya!, em 2003) se converteu numa medalha dourada para André 3000. Com justiça, aliás: o hit estava no “disco solo” do moço, The love below – que, junto com Speakerboxxx, formava o quinto álbum do OutKast.
Lembro muito bem de quando aquele disco duplo (uma joia) foi lançado. Em um primeiro momento, a impressão era de que todos estavam enfeitiçados por The love below, a face mais sortida (fortemente influenciada por Prince, mas também por eletrônica, soul music e até space rock).
Mas, com o passar do tempo, começou a aparecer uma onda favorável a Speakerboxxx, um projeto menos feérico, um “álbum de hip-hop” quase típico. Há quem diga que é um disco mais sólido, duradouro, que vai nos conquistando mesmo quando a poeira baixa.
Eu, honestamente, não tenho um favorito. Eles se completam, como costumam dizer.
Acredito que mora aí, nesse contraste, a principal diferença entre André 3000 e Big Boi (e a razão da crise do OutKast): enquanto André procura o impacto imediato e o susto (daí o crossover com o pop e o rock), Big Boi prefere a criação lenta e firme a partir de elementos do hip-hop, do funk e da soul music. São dois humores.
O primeiro disco solo de Big Boi, Sir Lucious left foot, tem uma estrutura muito parecida à de Speakerboxxx: concentra uma quantidade generosa de faixas muito sólidas, redondas e às vezes densas – que, por isso, crescem com repetidas audições. É como se, ao contrário de André 3000, ele preferissa guardar as próprias ideias por anos a fio, até que elas finalmente se transformassem em singles completos – com início, meio, fim – de hip-hop.
Antes mesmo do lançamento, o álbum já rendeu cinco singles – e aposto que, para a alegria da Def Jam Records/Universal (que o tirou da Jive Records/Sony) renderia muito mais. Big Boi é o sujeito que só grava o que, para ele, precisa ser gravado.
Pode parecer uma tolice falar em concisão quando o assunto é um disco de 15 faixas e 55 minutos de duração, mas o álbum soa até econômico: cada faixa investiga uma ótima ideia (um som, um sampler, um efeito), a começar pelos climas de fita policial dos anos 70 de Feel me, pelo arranjo jazzy de Turns me on e pelo tempero oriental de Tangerine. Isso tudo dentro de um modelo que, para o gênero, beira o convencional (com um elenco numeroso de participações especiais e produtores).
A quem está surpreso com o altíssimo nível do disco, portanto, recomendo voltar a Speakerboxxx. É que, francamente, não há muitas novidades. Big Boi sempre foi assim: um sujeito que não se impressiona com passes de mágica (e é até curioso que ele tenha descoberto Janelle Monáe, que soa muito mais como uma discípula de André 3000). Para Patton, o desafio é alterar sutilmente estruturas que soam familiares, criar as rimas exatas e, ao mesmo tempo, singulares. É uma invenção serena, quase secreta.
Nisso, este disco solo não falha. Há algo de extraterrestre em faixas como You ain’t no DJ, toda construída com ruídos quebradiços (e produzida por André 3000, veja aí). E não me canso de voltar à excelente Shine blockas, que vai virando um drum ‘n’ bass cheio de foreios psicodélicos. Como André, Big Boi sabe se divertir.
Mas também sabe (e isso é importante) criar álbuns de hip-hop com a gravidade, a densidade sonora dos grandes discos do gênero. E aí falo de um The blueprint, do Jay-Z, ou de um It takes a nation of millions to hold us back, do Public Enemy, de um Illmatic, do Nas. Big Boi ainda não ameaça os “clássicos”, talvez por não marcar os versos com um discurso tão poderoso e particular quanto a base musical (mas, ainda assim, “sharp as broken glass”).
Big Boi não tem pressa para atingir a linha de chegada. Ele quer correr bonito. E Sir Lucious left foot, junto com Speakerboxxx, prova que, se preferir, ele não precisa mais se submeter a provas de revezamento.
PS: E taí um exemplo de como o som de Big Boi nos contagia lentamente – na quinta ou sexta audição, um pouco depois de ter escrito este texto, descobri que não há uma única música neste disco que me desagrada. E há pelo menos quatro que são extraordinárias. Nada disso é uma questão de matemática, mas desconfio que estará entre os meus preferidos do ano.
Primeiro disco solo de Big Boi. 15 faixas, com produção de L.A. Reid, Organized Noise e outros. Lançamento Def Jam Records/Universal. 8/10. 8.5/10
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Big Boi quer que você o siga. Mas ele não é homem de poucos caracteres. O disco solo do sujeito (a metade mais centrada do Outkast), Sir Lucious left foot: The son of Chico Dusty, tem 15 faixas, dois bônus e, acredite em mim, não soa nada excessivo (em breve, prometo escrever um textinho sobre ele). O clipe é mais simples: mulheres, carrões, casacos de pele, óculos transados, um refrão que não nos abandona jamais – tudo aquilo que faz um rapper feliz.
Superoito express (26)
How I got over | The Roots | 7
Note o paradoxo: How I got over está entre os discos menos caóticos que o Roots já gravou (e é conciso, o danado: um álbum de hip-hop e R&B cheio de participações especiais e com apenas 42 minutos de duração) – mas é também, e de longe, o mais ameno entre todos os que ouvi deles (e ouvi vários). Não sei se interpreto esse momento como uma resposta da banda à era Obama ou às transformações no mercado pop norte-americano (o rapper mais badalado do momento é o Drake, um sujeito romântico e doce). De qualquer forma, é um novo tempo.
E, não tenho dúvidas, é um disco que cumpre os próprios objetivos de uma forma muito precisa e com eficiência germânica: uma coleção de hits agradabilíssimos (Walk alone, Radio daze, Now or never, são tantos…) que confirma o gosto da banda por andar “on the indie side”, com flertes a Monsters of Folk (Dear God 2.0, que tem ares de Fleetwood Mac), Dirty Projectors (A peace of light) e Joanna Newsom (Right on tem sample da moça), sem abandonar o mainstream (vide a ponta de John Legend e a produção polida, sob medida para as rádios). O discurso também continua comprometido com o social e levemente agoniado, ainda que positivo. O importante é que eles ainda fazem a coisa certa, e a faixa-título começa assim: “Nas ruas onde cresci, sempre me ensinaram a não estar nem aí. Esse tipo de pensamento não te leva a lugar algum. Alguém tem que se importar.” Sacou? Mesmo mansinhos, eles ainda se importam.
Brothers | The Black Keys | 7
O sexto álbum do Black Keys é uma espécie de continuação de Attack and release (2008), também produzido por Danger Mouse, com o mesmo blues-rock compacto, comprimidíssimo (o maior impacto no menor espaço), que soa como se alguém tentasse encaixar o som do Led Zeppelin dentro de um dedal. Mas, ao mesmo tempo, Brothers estica esse estilo para que caiba numa tela grande. É uma questão de duração: em 15 faixas, a dupla se obriga a se exercitar mais. E, nesse esforço, a banda acaba beliscando o pop (as últimas faixas, baladonas bluesy, são até tocantes). Claro que nem tudo dá certo, e o duo ainda me incomoda muito quando faz o decalque fácil de uma certa estética de brechó à anos 70, sem nervos, sem sangue, diluída para desfiles de moda e peças publicitárias (e aí chegam muito perto de um Lenny Kravitz). Tropeços acontecem, mesmo quando (acredite) estamos falando do disco menos acidentado que eles gravaram.
Love king | The-Dream | 7
Timing perfeito: o terceiro de Terius Youngdell Nash chega na cola de Thank me later, a estreia do Drake. Eles disputam o título de melhor álbum perdidamente amoroso de rap ‘n’ soul, e não vejo muitos outros concorrentes na pista (a menos que Kanye West decida manter o tom dramático de 808s and heartbreak, o que acho improvável). Por mim, dá empate. Drake me agrada um pouco mais, já que me parece tão convencido quanto vulnerável, cheio de dúvidas e traumas de infância e frescurinhas mil. The-Dream é só convencido, mas tem a vantagem de trabalhar duro para aninhar um estilo – enjoativo ou não (e, em muitos momentos, não tenho paciência para o excesso de mel com morangos e chantilly das faixas bônus), este som aveludado é só dele. Love vs. money (2009) era mais sortido, mas Love king soa como um álbum conceitual (!) muito ambicioso, sexy toda vida, às vezes cafajeste (ouça Sex intelligent) e meio monocórdico sobre… o amor, o amor e o amor, é claro (também sobre sexo com champanhe num pornô-chic dos anos 80, quando muito). Coloque na estante perfumada ao lado de Futuresex/Love sounds, do Justin Timberlake.
Recovery | Eminem | 5
Demora apenas duas faixas. E lá vai: “Os críticos nunca têm nada legal para dizer, cara. Você quer saber o que eu penso sobre os críticos? Os críticos nunca perguntam como foi o meu dia.” Recovery é bem isto: um disco totalmente na defensiva. Curiosamente, o próprio Eminem parece admitir essa má fase – caso contrário, o nome do disco não seria Recovery, e sim algo imponente do tipo Staying on top ou Still king. Daí que, se o álbum anterior (Relapse, 2009) era uma tentativa bem picareta de reprisar o que deu certo antes (o humor cartunesco, a persona violenta, o clima de fita de horror, as paródias pop, etc), o novo tenta algo como The blueprint 3, do Jay-Z: um disco de rap comercial by-the-numbers, eficiente, 1×0 sem show de bola, com participações especiais de gente famosa (Pink, Lil Wayne, Rihanna) e samplers que já ouvimos de algum lugar (tem até What is love, do Haddaway!). Se a meta de Eminem era sair com um disco mediano de rap, que qualquer outro rapper mais ou menos talentoso poderia ter gravado, conseguiu. E pelo menos sobre um aspecto os críticos vão ter que concordar: é menos vergonhoso do que os dois anteriores.
Thank me later | Drake
Você conhece Drake? Então está na hora.
Até porque, nos próximos meses, será impossível não reconhecê-lo por aí. Nas rádios. Na MTV. Nas trilhas de cinema. O rapaz tem bons amigos (Lil Wayne, Jay-Z, Kanye West, Timbaland, The-Dream, T.I., Alicia Keys), vem no embalo do marketing da Universal Music e está prestes a lançar um disco de estreia que, se tudo der certo, o transformará num astro do R&B.
Está escrito.
O plano, aparentemente, é fazer de Drake um novo Usher, um novo The-Dream, um novo sexymothafucker (e é provável que isso aconteça). Mas, é claro, não é por isso que você precisa conhecê-lo.
Dou três motivos:
1. Na mixtape So far gone, lançada no ano passado, a terceira música é uma balada robótica, na linha do Kanye West de 808s and heartbreak, chamada Successful, que virou single e rodou até no VH1. A faixa seguinte é uma versão para Let’s call it off, de Peter, Bjorn and John. Isto é: o sujeito não ouve qualquer coisa.
2. O refrão de Successful (muito simplezinho, até: “tudo o que quero ser é bem-sucedido”) não vem embalado no tom fanfarrão típico dos novos-ricos da black music, mas, surpreendentemente, existe nele uma certa melancolia, como se o intérprete da canção soubesse que o sucesso é doce e amargo.
3. Drake é um ator de 23 anos, ex-astro teen de seriado de tevê. E canadense.
Se nenhum desses argumentos parece suficientemente forte para que você dê uma chance ao moço, então não há nada a ser feito. Provavelmente, o álbum não vai colar. Não é sua praia. Vá por mim. Não perca o seu tempo.
Para começo de conversa, o disco soa conservador: não rejeita um modelo muito típico de R&B, pelo contrário. É quase um disco-de-gênero, songs for the lovers com alguma marra hip-hop. Nada que Kanye West, The-Dream ou Jay-Z não tenham feito. E Thank me later pode até ser ouvido dessa forma: como um álbum pop muito eficiente, coleção de hits, tudo nos devidos lugares, arquive entre Justin Timberlake e Rihanna.
O instigante na história, no entanto, é como Drake pega esse formato industrial e, sutilmente, se apropria dele. Sutilmente. O tom desiludido como o vocalista – que se chama Aubrey Graham – interpretou Successful é a colcha sonora do disco. Um fantasma que está sempre lá.
Há artistas que só se decepcionam com o sucesso lá pelo quarto álbum de estúdio. Pois a primeira música de Thank me later, Fireworks, abre com versos como “o dinheiro mudou tudo” e “meus 15 minutos de fama começaram há uma hora”. Novamente, Drake soa dúbio, na contramão das estrofes: a letra celebra a boa fase, o “sonho”, mas não existe alegria alguma na interpretação. A melodia é mecânica, cheia de lacunas e ecos.
Estranho.
Felizmente, todos os produtores – e são muitos! – parecem entender esse perfil introspectivo do cantor, que vai flutuando sobre névoa de teclados e efeitos metálicos. Nas primeiras faixas (as melhores do disco), não há festa: Drake narra dramas familiares (a separação dos pais, aos cinco anos), decepções amorosas e transformações da idade adulta. O sucesso não cura nada disso, e ele sabe disso. “Do que tenho medo? Isso deveria ser meu sonho. Mas todas as pessoas olham para mim e dizem a mesma merda: ‘você prometeu que nunca mudaria'”, ele desabafa, em The resistance.
A soul music de pesadelo atinge a catarse logo na quarta música, que se chama (olha aí) Over. Nesse ponto, Drake beira a esquizofrenia. “Conheço muitas pessoas que eu não conhecia há um ano. O que aconteceu? Fizemos de tudo ontem à noite, mas não lembro de nada. O que estou fazendo? O que estou fazendo?”, ele pergunta. Em seguida, porém, muda o discurso: “Eu estou me divertindo, estou vivendo a vida, e vou continuar assim até o fim.”
O hit é narrado com uma atmosfera dramática, tensa, que os produtores Boi-1da e Al Khaliq pressionam ao limite. O videoclipe mostra Drake fuzilado por canhões de luz, sozinho em um quarto de hotel.
Já ali, na quarta faixa, dá para concluir que Drake tem o “algo mais” que falta a muitos aspirantes ao trono do R&B: o intérprete paira acima dos produtores, das canções, de tudo. O álbum soa coeso, quase uniforme, porque é um retrato do cantor (ou talvez do personagem que o ator criou para si).
Na segunda metade, esse clima asfixiante das primeiras músicas vai se dissipando, ora em faixas mais animadinhas como Find your love (produzida por Kanye West), ora quando o “padrinho” Lil Wayne entra em cena, em Miss me. Mas até aí o show é de Drake. Em Miss me, o que fica na memória não é o falatório nonsense de Wayne, mas o apelo infantil, carente do vocalista. “Você vai sentir minha falta quando eu for embora?”, ele pergunta.
Superprodução programada para cumprir expectativas de uma indústria, Thank me later equivale a uma fita de fantasia dirigida por Sam Raimi: sob os efeitos especiais, há um coração que bate.
Primeiro disco de Drake. 14 faixas, com produção de Lil Wayne, Birdman, 40, Al Khaliq, Boi-1da, Crada, Francis and the Lights, Jeff Bhasker, Kanye West, No I.D., Omen, Swizz Beatz, Timbaland e Tone Mason. Lançamento Universal Music. 7.5/10
Treats | Sleigh Bells
Como eu tentei explicar naquele post sobre o álbum mais recente do Rufus Wainwright, as capas de discos ainda querem, sim!, nos dizer algumas coisas. Há casos em que elas até nos ajudam a adentrar a floresta e encontrar o caminho para casa. São úteis, acredite. Eu compro CDs muito raramente, mas há capas que eu levaria para meu quarto numa boa.
Essa do Sleigh Bells, por exemplo. Na fotografia, um grupo de cheerleaders estranhamente out of time (a que época elas pertencem? Anos 70? 80?), com imensos pompons em verde e branco, formam uma pirâmide humana. Elas estão prontas para a fes-ta e parecem adoráveis. Mas olhe com atenção: os rostos das meninas são cobertos por camadas finíssimas de plástico, como se elas tivessem sido capturadas, engolidas e depois congeladas por vespas gigantes.
Brrr.
É uma imagem, num primeiro momento, familiar e pueril. E, num segundo, bizarra, sinistra. É a exata representação do estilo dupla-face (doce/amargo, ríspido/fofo, pop/hardcore) deste duo de Brooklyn, Nova York.
Continue com a fotografia por mais alguns minutos: o que se vê primeiro é inocente, depois perverso. O som da banda também é assim, enganador: parece descartável, mas não é. Parece infantilóide, mas não é. Parece uma besteira programada para durar cinco minutos e explodir em confete e serpentina, mas e daí? Parece hype de jornalista novidadeiro, mas qual é o problema com jornalistas novidadeiros quando eles têm razão?
Eu entendo hype da seguinte forma: várias pessoas se entusiasmam ao mesmo tempo por um mesmo disco e tentam desesperadamente convencer outras pessoas de que ouviram algo importante. A gravadora, que não é boba, compra o burburinho e tenta multiplicar a divulgação informal, para ganhar mais dinheiro e prestígio. A banda entra nos trending topics do Twitter, começa a aparecer em sites e blogs bacanas, devora o mundo e, em alguns casos, desaparece dois meses depois. A onda do hype me ajuda a descobrir discos bons e ruins. Não tenho medo dela, já que posso decidir por conta própria se o disco me interessa ou não. Um disco superpaparicado não é necessariamente um disco ruim.
E perdoe o didatismo, mas vivo me aborrecendo com pessoas que tentam simplificar a música pop a uma equação de termos, rótulos e palavrinhas mágicas que não significam coisa alguma.
Treats é, em síntese, um disco que se beneficiou de uma maré de elogios via web e, por isso, será tratado como uma novidade efêmera, típica de blogueiros ansiosos. É também um álbum com a grife de M.I.A., que o lançou pelo selo N.E.E.T. Recordings. Um brinquedinho para fashionistas de plantão, portanto. Certo?
Certo, se você julga um disco por esse tipo de aparência. “Vou ouvir com desconfiança, tem tanta gente curtindo…” Diante desse tipo de lógica, eu até prefiro julgá-los pelas capas.
E a capa de Treats me diz o seguinte: esta não é uma banda ingênua. A sonoridade, felizmente, confirma tudo isso e avança algumas casas. É um álbum pequeno, ruidoso e bombástico, que pisca em flashes coloridos, um artefato colorido que afirma violentamente um estilo. Claro: trata-se de um primeiro disco, talvez afoito demais para nos impressionar com piscadelas de olho. Mas muito atento, muito certo dos alvos que ele quer detonar.
Eu não me impressionaria se Treats tivesse sido produzido por Dan Deacon: quando os momentos mais agressivos chegam (e eles chegam rapidinho!), o impacto da distorção é ensurdecedor. Pop de terrorista. Mas há também um traço firme do “global pop” de M.I.A., principalmente por usar o hip-hop como matriz para a zoação sonora. E M.I.A., é óbvio, não os apadrinhou à toa: eles são pupilos, e delas Derek E. Miller e Alexis Krauss herdam uma atitude, uma forma descompromissada, impura e sacana de manipular a música pop.
Eu nem precisaria reforçar, mas taí: para quem adora esse tipo de jogo tolo (e sério), é uma delícia de disco.
Derek e Alexis reciclam debochadamente o que passa como poluição sonora: as músicas soam versões estouradas para aqueles grudes apelativos que os americanos gostam de ouvir nos intervalos de jogos de basquete. Nada de minimal: é maximal. As guitarras de hard rock farofa (Andrew W.K., cadê você?) tensionam as melodias até quase estourá-las, enquanto Alexis canta delicadamente, como quem não percebe o furacão chegando. A dupla repete esse formato em todas as faixas do disco, variando os gêneros e os chavões que reciclam. No final, o que temos é um álbum meta, um disco entulhado de pop. Um disco que se espreme dentro da panela de pressão.
É energia concentrada. Na última faixa, as guitarras e os sintetizadores primeiro nos atropelam, depois recolhem lentamente o corpo. Montanha-russa, moedor de carne, arrastão, hype: chame do que quiser. Pode ser uma moda passageira (e é sério mesmo que eles entraram entre os 50 mais da Billboard?), mas que pode ser encarado como um comentário em megafone sobre o aqui-agora, sobre o tempo presente, sobre a tonelada disforme de dejeitos pop que lotam nossos HDs.
Um disquinho grandalhão. Mas ouça atentamente. Repare a capa. E depois não diga que não avisei.
Primeiro disco do Sleigh Bells. 11 faixas, com produção de Derek Miller. Lançamento de Mom +Pop e N.E.E.T. Recordings. 8/10
PS: A mixtape de maio vai chegar um pouco mais cedo, amanhã (quarta-feira) à noite. Às 23h, ok? Todo mundo aqui? Por caridade? Adianto que ela é bem melhor do que a season finale de Lost. Coisa épica. Aguarde.