Guy Ritchie
cine | Sherlock Holmes: o jogo de sombras
Esta continuação de Jogos, Trapaças e Sherlock Holmes é um parque temático para meninos em descontrole hormonal. Com decoração retrô, cinco montanhas-russas, show pirotécnico, performance de stand-up comedy e funcionários fantasiados com figurinos pesadões de época, este espetáculo de imagem&ruído talvez resuma o cinema-maçaranduba de Guy Ritchie, um cineasta que usa qualquer projeto como desculpa para filmar os mais eletrizantes anúncios de energético.
O diretor facilita, dessa forma, o trabalho de qualquer crítico de cinema. Já que, para escrever sobre Sherlock Holmes: O Jogo de Sombras, não é necessário conhecer (ou pesquisar) nadica sobre a obra de Arthur Conan Doyle. Até porque o próprio Ritchie não parece ter a conhecimento algum sobre o personagem que está adaptando: como acontecia no episódio anterior, o detetive é transformado num típico veículo para o Robert Downey Jr pós-Homem de Ferro — um action hero bronco, sarcástico, de maus modos, espírito keithrichardiano e que parece sempre estar fazendo graça de tudo (nos melhores momentos, do próprio filme). Tudo o que havia de particular (e de elegante; mas Ritchie não conhece essa palavra, for sure) no tipão inventado por Doyle é massacrado em mil pedacinhos fumegantes.
Existe um público com sangue nos olhos por esse Hopi Hari audiovisual, é claro. Na sessão em que vi o filme, as pessoas aparentemente conseguiram acompanhar uma trama de mistério (?) que me pareceu quase incompreensível — ela se movimenta como um jato em queda, soltando placas de metal, pegando fogo e fazendo muito barulho. Quando o filme puxa o freio, o faz para Ritchie demonstrar aquilo que ele chama de estilo: sequências supostamente bonitas, que alternam cenas em câmera lentíssima com flashes acelerados. Eu, que não me dou muito bem com montanha-russa, admito que fiquei um pouco enjoado.
(Sherlock Holmes: A Game of Shadows, EUA, 2011) De Guy Ritchie. Com Robert Downey Jr, Jude Law e Jared Harris. D+
2 ou 3 parágrafos | Kick-Ass – Quebrando tudo
Vou abrir uma exceção e elogiar um filme de um cineasta que me parece nada talentoso. Matthew Vaughn produziu Guy Ritchie, fez Nem tudo é o que parece (um sub-Ritchie) e o tedioso Stardust. O novo dele, muito superior àqueles dois, é uma adaptação de quadrinhos que me ganhou como poucas outras. Então taí: vocês não devem esperar muito do próximo longa de Vaughn, mas recomendo feliz da vida este Kick-Ass (3.5/5).
Quem lê este blog sabe que sou um sujeito muito difícil para adaptações de quadrinhos. Acho quase tudo igual e me entedio. Por que meu voto vai para Kick-Ass, então? Talvez por não seguir as normas de segurança do gênero (não é um filme “família”, não é calculado para entreter a vovó, a netinha e o cunhado fã de AC/DC). Ou por não transformar as cenas de ação em demonstrações grotescas de efeitos visuais, explosões geladas de pixels. E aí acredito que Vaughn, apesar de não me convencer como cineasta (ele picota referências unânimes, de Stanley Kubrick a Quentin Tarantino, e fica nisso), tem o mérito de conduzir o filme com muita fluência – o oposto de um típico Guy Ritchie, portanto.
O filme é todo metido a contemporâneo (exagera no falatório sobre cultura pop, mas acerta, por exemplo, quando engendra a ação via YouTube, SMS, câmeras de celulares), mas o que me agrada nele são os traços mais convencionais – o traquejo como Vaughn nos apresenta os personagens e narra a trama. E isso, no cinema de entretenimento, deveria ser algo simples, corriqueiro, mas vá lá ver Príncipe da Pérsia e depois conversamos. Até as cenas de ação mais mirabolantes são narradas com clareza. Nada de montagem histérica e câmera tremida, mas outras ideias: jogo de luzes, plano-sequência, balé sangrento (Kill Bill é sampleado explicitamente). Nada exatamente novo, mas nunca confuso. Até o tom esquizo da narrativa (é sátira ou homenagem?) soa premeditado – é o delírio um velho fã de fitas de super-herói, que vê o antigo objeto de culto com um tanto de carinho, um tanto de vergonha. Não é complicado de entender.
2 ou 3 parágrafos | Sherlock Holmes
Não me parece ruim a ideia de uma interpretação aloprada, anabolizada — sem o menor compromisso com as exigências de fãs mais ranzinzas, portanto — para a história de um personagem “sagrado” como o detetive criado por Arthur Conan Doyle. Mas, antes disso (e daí a má notícia), Sherlock Holmes (4/10) é um típico Guy Ritchie — um cinema bronco e posudo, que soa confuso quando preferiria parecer intrincado, complexo, inteligente, up-to-date e muito cool.
Por isso, não há Robert Downey Jr (destaque absoluto do filme) que alivie o peso aborrecido com que Ritchie atropela os personagens. Montagem calculadamente desembestada, trilha grandiosa, tom de farsa (mas é pra rir de quê?), machos suados com barbas malfeitas, tipos bizarros e todas as afetações de praxe. Poderia ter sido divertido. Mas, quando todas as cenas fazem questão de mostrar o investimento de milhões de dólares em direção de arte e efeitos visuais, resta ao espectador cair morto de tédio.
Talvez a culpa nem seja toda do diretor. Não deve ter sido só dele a ideia de reduzir Holmes a um action hero genérico ou de limitar a trama a um recorta-e-cola de explicações apressadas para um enigma que não justificaria um episódio mediano do Scooby-Doo. Mas que ele assina essa brincadeira de adulto com orgulho meio adolescente, assina. Desperdício. Com hereges como Ritchie, estamos feitos.
RocknRolla – A grande roubada
RocknRolla, 2008. De Guy Ritchie. Com Gerard Butler, Tom Wilkinson e Thandie Newton. 114min. *
Dica para quem, como eu, procura apartamento para alugar: assistir a RocknRolla, uma comédia cruel sobre os crimes, golpes e canos fumegantes do violentíssimo mercado imobiliário de Londres, não é a maior diversão.
Saí do cinema com uma pergunta quicando no cérebro: existe alguma conexão entre esta pulp fiction de Guy Ritchie e a realidade? O filme parte da premissa de que o negócio de imóveis na Inglaterra se transformou em uma máfia tão sangrenta quanto o tráfico de drogas. É isso mesmo? 100%?
O cinema de Ritchie parece existir em um universo tão diferente do meu que até agora não consigo me importar com nenhuma informação contida em RocknRolla. Nah, é tudo gozação, entretenimento, tiros, piadas e guarda-roupa estiloso.
Ritchie não se leva a sério, é um fanfarrão, e talvez essa seja uma de suas maiores qualidades. Por que eu o levaria? Mas o ponto de partida do novo filme do cineasta não deixa de provocar alguma curiosidade. Ritchie usa um contexto aparentemente inspirado na realidade (se é que podemos bater o martelo em relação a isso…) para compor o típico filme de golpe cartunesco e pateta que costuma fazer. Claro que, no fim das contas, qualquer ambição de conectar a narrativa ao nosso mundo será soterrada pelos truques do diretor.
Penso assim: se tivesse colocado pelo menos um dos pés no chão, RocknRolla poderia ter sido um filme bastante diferente de Jogos, trapaças e dois canos fumegantes e Snatch – Porcos e diamantes. Talvez não melhor, nem tão divertido ou rentável quanto, mas diferente. Vazio como está, opera como mais um fetiche de Ritchie – o tipo de thriller intrincado e bem humorado que, por volta de 1995, caía feito manga madura do pomar dos estúdios supostamente independentes.
Se não podemos esperar de Ritchie uma espécie de Syriana (muito menos um Gomorra) sobre o submundo londrino, então tá: tentemos embarcar na típica graphic novel filmada que o diretor repete desde o início da carreira. Trata-se de um filme melhor que Swept away – mas isso lá é elogio? Qualquer filme do mundo tem o dever de ser pelo menos um pouquinho melhor que Swept away. Trata-se de um retorno a uma fórmula que o público parece ter aprovado – mas não conheço ninguém que considere Jogos, trapaças e dois canos fumegantes uma obra-prima. Alguém?
Em vez de seguir em frente, Ritchie comete o erro de tomar o filme mais bem sucedido da carreira como uma espécie de referência cristalizada de qualidade e marca autoral. Não é. RocknRolla é uma espécie de auto-análise: cá estão a galeria de personagens exóticos (e muito bem vestidos), a trilha sonora de punk rock, as subtramas que praticamente se devoram antes que consigamos decifrá-las, os tipos marginais-chiques que traem e são traídos por armações mirabolantes e golpes do acaso. Só faltou uma razão para repetir um formato pop-espertinho que, num certo momento, parece ter incomodado o próprio Ritchie. Tanto que ele tentou partir para outra.
Uma forma de neutralizar o próprio veneno seria, creio eu, aprofundar as relações desse cinema fantasioso com a nossa vida, o nosso mundo. Qual é a extensão do crime no mercado de imóveis na Inglaterra? Como ele afeta as pessoas que compram ou alugam apartamentos? O que isso significa para a economia do país? RocknRolla não quer, talvez não consiga, provocar nenhuma discussão sobre temas palpáveis, e tem o direito de não querer. Este é o filme que Guy Ritchie preferiu fazer. O problema é que este filme eu já vi.