Guns N’ Roses
2 ou 3 parágrafos | Franz Ferdinande!
Depois de ter escrito um caminhão de abobrinhas sobre os shows do Guns N’ Roses e do a-ha, me sinto na obrigação de contar alguma coisa sobre a passagem diabólica (explico: fazia um calor infernal) do Franz Ferdinand por Brasília. Acontece que – a-há! – não tenho muito a dizer sobre a performance dos rapazes. Isso me deixa um pouco incomodado, já que foi um show muito, muito bom.
Não deixa de ser um negócio estranho: por que, no day after, bateu uma certa apatia. Teria sido um show apenas correto? Não pode: o Franz é uma das bandas mais precisas do mundo. Tudo está no lugar certo — o carisma do vocalista (que dá chutes no ar e sorri quando o fã salta do palco num mosh desengonçado, e diz ‘Franz Ferdinande!’ com sotaque carioca), o entusiasmo do baterista, os incríveis macetes do guitarrista (que manda muito bem nos sintetizadores), as jams hipnóticas (se bem que a batucada de Outsiders, marca registrada deles, já está virando um tique), o namorico com a dance music, o baixo pesadão, os hits poderosíssimos, a atitude invariavelmente cool (antes do show, eles aqueceram o público com quatro faixas do disco novo do Caribou!)…
De onde vem meu incômodo, então? Talvez tenha sido culpa do set list meio torto, que queima todos os hits bem antes do bis. Ou do uso desleixado do telão, jogado às traças. Ou nada disso. Talvez minha birra resulte de uma espécie de choque térmico: depois dos excessos (sentimentais, pirotécnicos, patéticos) do Guns N’ Roses e do a-ha, o Franz me pareceu carne crua, hambúrguer sem ketchup, biscoito sem recheio de marshmallow. Mas do que estou reclamando? É o que dá cair de barriga no século 21, sem asa delta. A filosofia da geração desse quarteto (e do Strokes, e do White Stripes) é podar a penugem e ir ao osso da canção, da atitude, da encenação, da pose (e há pose sim, como não?). O show deles deixou essa imagem: é ossudo. Cálcio à beça. Símbolo de uma época. E, possivelmente, um espetáculo que deveria ter feito de mim um sujeito realizado. Mas não foi bem o que aconteceu — e é bizarro, acreditem, não saber por que.
Guns N’ Roses em Brasília
O palco do Guns N’ Roses é um campo minado. Um rojão explode a cada 10 minutos. Ninguém está seguro. O bombardeio, quando chega, é tão extremo que solta algum cheiro de apocalipse. O estádio estremeceu? Em tempo de terremotos emmerichianos, não há como não ficar (pelo menos um pouco) estressado. Mas tudo é artifício. A terra treme, espalha fumaça, cospe fogo, dispara faíscas coloridas de festas juninas e, depois do vigésimo estouro, estamos anestesiados. É só um show de rock.
Antes de começarmos, um rápido flashback: comprei ingresso para o show do Guns N’ Roses (domingo à noite, no ginásio Nilson Nelson, Brasília) talvez disposto a reencontrar o Tiago meninão que, em 1991, queria ser Axl Rose. Chamem de masoquismo. Minha pré-adolescência, como muitas outras, foi estranha. Ainda não entendo como, naquela época, eu conseguia amar simultaneamente os hits medonhos do Information Society, Roxette, Skid Row, The Simpsons (sing the blues!), Paula Abdul, New Kids on the Block e… Guns N’ Roses. November rain era minha Bohemian rhapsody.
Dois anos depois, eu me envergonharia disso tudo. É natural. A pré-adolescência, como eu ia dizendo, pode ser pavorosa. Daí que entrei no ginásio, 30 anos no meio da testa, com aquela aparência esnobe de quem assiste a um megashow de rock com o distanciamento de quem se submete uma “experiência pop”. Ã-hã. Mal sabiam que o Tiago pré-adolescente, tinhoso e cruel, pulsava de saudades, faminto por sucessos radiofônicos moribundos. O show de abertura (Sebastian Bach!) provocou arrepios de nojo e nostalgia. 18 and life é mesmo um horror, mas diz muito sobre o babaca sentimental que eu era naquela época (e que ainda está um pouco vivo, e vaso ruim não quebra).
O que mais me agrada na ideia de escrever textos em blogs é que temos o direito de mandar os bons modos às favas: desculpem-me os fãs mais talibãs e os adeptos tardios da axlmania, mas o show do Guns N’ Roses em Brasília foi uma bela merda. Uma fedida, imensa, cafona, barulhenta, estúpida, bela merda. Mas, antes que o primeiro fanático grude este post numa comunidade odiosa do Orkut, peço para que reparem no adjetivo: uma bela merda não é qualquer merda. E, quando eu digo que o show foi uma bela merda, estou fazendo uma espécie de elogio. Acreditem em mim.
No início dos anos 90, essa fanfarronice ganharia o apelido da moda: farofa. Como todo legítimo espetáculo farofeiro, a turnê do Guns não tem limites. Perde a medida logo nos primeiros cinco minutos. É Onde vivem os monstros dirigido por Baz Luhrmann. A produção escolheu uma banda de heavy metal de Brasília para abrir os trabalhos, mas a quem eles querem enganar? Guns N’ Roses nunca escondeu no armário a quedinha por Queen, Elton John e Kiss. Se existe uma definição para esse som escancaradamente festivo, seria algo como glam-hard-rock. Sabe Extreme? Sabe Mr. Big? Axl Rose pairou sobre tudo isso feito um urubu-rei.
Não é um show que pede licença, e isso me agrada. Axl Rose não mira o cérebro, mas o intestino. Daí as explosões desagradáveis no palco. Que irritam. E pregam sustos no público. Daí a chuva de confete e serpentina. E a lista de pedidos estranhos à produção (muito champanhe, alguma cachaça, toalhas brancas). As imagens nonsense exibidas no telão (em You could be mine, o que significam as cenas de corrida de Fórmula 1, tio Axl?). Os solos ridiculamente exagerados. Cada música é devassada numa escala monumental. Impossível sobreviver às 2h45 de show sem ficar pelo menos um pouquinho cansado.
Eu admito: fiquei exausto. Às 2h45 da madrugada, quando Axl deixou o palco, tudo o que eu queria era deitar meus neurônios num balde de gelo.
Lá pela terceira música, quando meus tímpanos zuniam com o eco de uns cinco cabeções-de-nego, notei que o Guns N’ Roses que estava no palco não era exatamente o Guns N’ Roses da minha pré-adolescência. Não é nem poderia ser. A banda estava totalmente remodelada (um septeto formato por tipinhos calculadamente exóticos) e o próprio Axl era um avatar inflado daquele ídolo que, lá por volta de 1994, morreu e voltou na pele de um esquisitão obcecado por new metal e política chinesa.
E àqueles que me perguntam se o Axl ainda canta, respondo o seguinte: não sei. Pergunte a outro. Da arquibancada, ouvíamos absolutamente tudo (a bateria, a percussão, os chocalhos, o piano, a metralhadora de bombinhas, os ruídos bizarros à rock industrial), menos a voz de Axl Rose. Não é curioso? O que esperamos encontrar de aparentemente genuíno num show do Guns N’ Roses é a figura de Axl, a celebridade-problema, o monstro congelado no início dos anos 90, o Macaulay Culkin crescido. E tudo o que vimos foi um sujeito de bandana gesticulando agoniadíssimas canções de amor. Um videokê.
Coisas assim acontecem, eu sei. Shows são imprevisíveis, eu sei. Lembro de um da Marisa Monte: espremido na beirada da arquibancada, não consegui ver o palco (que estava aprisionado por um freezer luminoso de arte moderna) e não ouvi o som (cheio de delicadezas sussurradas). Em Brasília, no ginásio Nilson Nelson, esse tipo de coisa acontece com certa frequencia.
Sorte a minha que, no caso do Guns, consegui entender o que acontecia no palco. Os músicos improvisam melodias engraçadinhas (o tema de James Bond, David Bowie, Pantera cor de rosa) enquanto Axl some no camarim (e ele sumia tantas vezes que começamos a suspeitar que ele estaria assistindo ao Oscar e tocando nos intervalos da transmissão). Axl retorna e intercala um hit com uma faixa desconhecida de Chinese democracy. Bombas explodem. É uma guerra, é uma guerra, e ela continua assim por quase duas horas.
A banda (cover) o acompanha com muita precisão. No telão, vemos imagens de meninas depressivas e suicidas. Axl, para quebrar a rotina, vai ao piano e toca November rain. O povo chora, mesmo sem ouvir a voz do moço. Daí ele toca Patience (e dá a deixa pra todo tipo de piada maldosa – esperamos 1h30 para a montagem do palco). O povo se emociona e grita “esta é minha música!”, mesmo sem ouvir a voz do sujeito. Ele sai do palco e volta. Canta outra faixa obscura do Chinese democracy. E termina com Paradise city, que reprisa o entusiasmo com que recebemos o momento bombástico e irado da noite, Welcome to the jungle. Chove serpentina. É carnaval na farofalândia. Axl, bonachão, pede desculpa aos pais que precisam levar os filhos ao colégio. Muita gente boceja.
E é isto: um showzaço escroto e safado e muito ca-fo-na que esfrega na nossa cara o quão grosseiro era o nosso gosto musical em 1991. Tomem isto. Dancem com isto. Chorem com isto. E ainda houve quem disesse que Brasília nunca viu um evento tão grandioso, tão espetacular, tão bonito e poderoso. Então é isso que vocês querem, é? Farofa, suor e rock ‘n’ roll? Nós, brasilienses, ainda seremos devastados pelo nosso complexo de inferioridade.
Para mim, funcionou como uma espécie de terapia. Agora entendo por que, na minha autobiografia íntima, pulo essa temporada confusa da minha vida. Para todos os efeitos, nunca tive 11 anos de idade. Nunca comprei fitas cassete do Guns N’ Roses. Nunca usei bandana em bloco de carnaval. E nunca, em nenhum momento, juro que não quis ser Axl Rose quando eu crescesse.
Quero menos ainda. Pelo menos até o dia em que o fantasma da minha pré-adolescência resolver me atazanar de novo. Eu era um menino muito estúpido, já disse isso? Mas e o Poison, ainda faz turnês?
Chinese democracy | Guns N’ Roses
Quem você era em 1994?
Eu era um estranho. Lembro bem. Eu, aos 15 anos de idade, me camuflava nos corredores do colégio. Aposto que alguém me confundiria com uma mochila. Um novato assombrado pela multidão anônima de uma típica escola secundária. Na lista de chamada, meu número era quase sempre o 50. No fim. Depois dos pedros e dos ricardos e dos rodrigos. Tiago, presente!, e então o vazio.
Eu, um leonino envergonhado, não queria ser tão reconhecido. Quer dizer: em 1995 eu já escrevia gracinhas no quadro-negro durante o recreio; em 1996 eu liderava uma equipe de nerds numa maratona de gramática. Mas em 1994, o ano da mudança, eu não era ninguém. Eu ainda não entendia como uma escola daquelas conseguia instruir nada menos que 500 alunos – numa mesma série! Como identificar tanta gente? E se alguém sofrer uma parada cardíaca no banheio? Éramos pregos minúsculos numa estante de madeira.
(Um ano antes, eu habitava um simpático e pequeno colégio com aulas de teatro, feira de literatura e professoras de Português que pareciam ter certeza absoluta de que formavam pequenos gênios da arte, ó tolas).
O resumo da ópera é que, se um ser azulado de conto de fadas brotasse no tapete da sala, eu não pediria para retornar a 1994. Talvez a 1995. Definitivamente a 1993, o melhor ano da minha vida. Mas 1994 não. Foi um ano tão complicado, tão errado e talvez amaldiçoado que Axl Rose só poderia ter começado a pensar em Chinese democracy naquele exato período. Deu no que deu.
Pelo menos, ao contrário de Axl, eu não mantive nenhuma dívida com aquele ano infernal. Superei os traumas de 1994 com alguma facilidade. Ou imagino tê-los superado. Pelo menos, de alguma forma, cresci. Hoje olho para trás e acho graça. Vejo um adolescente. Uma outra pessoa.
Nada daquela época me interessa. Talvez apenas as músicas que eu ouvia com rigor doentio. The Breeders, Nirvana, Pavement e Smashing Pumpkins. Já não ouço Smashing Pumpkins há uns cinco anos.
Não sei se vocês lembram mas, na época, Guns N’ Roses era passado. Quem cantarolasse November rain na sala de aula seria condenado a três meses de isolamento no recreio. Eu não teria a coragem.
E Axl Rose (antes que eu me perca completamente deste texto sobre Chinese democracy), quem ele era em 1994? Imagino um astro de rock aprisionado num ano ruim. O vocalista do Guns N’ Roses tentou reunir a banda para compor as primeiras canções do disco que seguiria o duplo Use your illusion, de 1991. Foi tempo perdido. Imagino o tipo de frustração de quem descobre que não consegue assumir um antigo papel, nem se adaptar a um outro tempo.
A solução encontrada por Axl para desviar do fantasma da decadência não foi se transformar num ídolo emporcalhado do nü metal, mas congelar o relógio. Um esforço que, pensem com carinho, é digno da melhor ficção-científica. Se os anos 1990 não aceitariam um Chinese democracy, que tal lança-lo uma década depois?
Claro que as coisas não funcionaram assim. A história da gravação do álbum, sabemos, foi emperrada por ataques de ego, brigas com produtores, demissões em massa, duetos com Sebastian Bach, a prisão de um blogueiro, a queda da indústria fonográfica e o ataque às Torres Gêmeas. Axl sobreviveu à tudo, a todos os desastres e imprevistos, para cumprir a missão de trazer o ano de 1994 de volta.
E trouxe. Que medo. Chinese democracy – o álbum, a lenda, a piada pronta – é uma continuação tão direta de Use your illusion que dá calafrios. Se descontarmos os truques de produção e mixagem, o disco confirma a impressão que tínhamos há uns dez anos de que, se Axl voltasse, seria por um caminho mezzo-rock industrial (à Nine Inch Nails), mezzo-hard rock oitentista (à Appetite for destruction). E não é que ele nos fez esperar uma eternidade por isso?
Não me preguntem como, mas esse disquinho ultrapassado – e, queiram ou não, bastante coerente com a trajetória da banda – periga fazer um tipo de sucesso que seria impossível em meados dos 90. A tática zen-budista de Axl: pule uma geração. Quem sabe os meninos e meninas fãs de Fall Out Boy não entendam verdadeiramente a fúria juvenil dessas canções?
É que Axl, apesar da barriguinha, do alto dos 46 anos de idade, não cresceu. Ele ainda compõe hinos indignados contra qualquer coisa e canções de amor desesperadíssimas para musas que nunca vão existir de verdade. Chinese democracy é um álbum de rock teen e por isso deve estourar nas rádios. Imagino os fãs de Jonas Brothers cantarolando Better, por exemplo. “Ninguém nunca me avisou que eu estava sozinho, eles pensavam que eu me viraria”, lamenta Axl.
Pobre Axl. “Não vou me prostituir por fama e vergonha”, ele avisa, em Prostitute. Nem Billy Corgan se sujeitaria hoje a esse tipo de constrangimento em público. “Não tente me parar agora. Eu me recuso”, o tio ameaça, em Scraped. E Trent Reznor cai em gargalhadas.
O álbum parece até muito simples, muito agradável, muito fácil, quase um greatest hits ambulante (e a voz do moço renasce tinindo sob verniz de pro-tools), mas é a obra conceitualmente mais bizarra que ouvi em minha vida. Não conheço outra igual. Não sei de um disco que tente expurgar uma obsessão desse tamanho. O Portishead demorou dez anos para lançar um novo álbum, mas gastou o período para viver a vida. Axl Rose viveu Chinese democracy durante dez anos. Vocês sabem o que isso significa?
Eu não sei. A experiência de ouvir este disco na versão integral – com as lembranças de 1994 dentro do pacote de canções – é um tormento. O que motivou Axl Rose a carregar esse fardo durante uma eternidade me parece tão inexplicável como o ar de juventude que o álbum carrega. Mais estranho ainda: uma adolescência que não é forçada, não é calculada, soa mais como um complexo que como estratégia de marketing. Mais para Michael Jackson que para Madonna.
A banda de rock que mora na cabeça de Axl Rose continua – por incrível que pareça – na flor da idade. E o curioso é que o mundo está novamente pronto para recebê-la. Quem mandou mexer com 1994? Taí o freak show.
Sexto álbum do Guns N’ Roses. 14 faixas, com produção de Axl Rose e Caram Costanzo. Geffen. 6/10