Guitarras

Kaputt | Destroyer

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No espelho, não me reconheço. Estou mais velho, me sinto mais velho, mas a imagem é de uma pessoa cada vez mais nova.

Meu apartamento também virou outro ambiente: ele está mais vazio, ainda que eu não tenha me livrado de móvel algum.

Até os textos que escrevo – e escrevo todos os dias! – deixaram de sair dos meus dedos. Como que escritos por outra pessoa.

Algo mudou.

Há alguns dias, uma amiga enviou uma confissão via e-mail. Ela estava estudando para uma série de provas e, depois de passar por três ou quatro etapas, começou a se sentir confiante de que conseguiria uma vaga. Quanto mais recebia sinais positivos, mais criava planos, explorando mentalmente um futuro novo que se abria, se desdobrava. Chegou o resultado e ela não passou. “Agora não sei o que fazer. Me sinto perdida”, ela escreveu, no e-mail.

Eu a consolei, garanti que aquela fase ruim passaria. Disse também que entendia o que ela estava sentindo; e, desta vez, não precisei mentir. É tudo o que sinto desde que meu namoro acabou. Quando os meus planos foram interrompidos (e planos cuja existência eu nem mesmo conhecia), sobrou uma vida antiga que não parecia mais pertencer a mim.

Subitamente, me vi de volta aos meus 24, 25 anos de idade. Antigos medos, a insegurança de volta. E aí tudo começou a parecer dissonante: minha imagem no espelho, o apartamento (um espaço provisório berrando para ser tratado como definitivo), meu cotidiano, meus amigos, minha família, a forma como falo e escrevo, o jeito como levo a minha vida.

Algo mudou. E foi uma mudança principalmente de percepção. Comecei a me notar de uma forma diferente.

Foi até um pouco irônico, por tudo isso, ouvir o disco novo do Destroyer com esse estado de espírito. É um disco também de mudança. Sobre o momento em que Dan Bejar, o bandleader, começa a perceber a própria banda de uma forma diferente.

E um disco que também mostra desconforto com a imagem que o espelho reflete. Dan Bejar tenta mudar, precisa mudar, mas ao mesmo tempo hesita, e essa hesitação foi registrada, essa hesitação está no disco. E é essa hesitação, eu digo, que talvez me faça voltar tantas vezes ao álbum.

Nem sei se gosto tanto dele, do disco. São poucas as músicas que eu lembro depois que ele termina. Mas não é uma questão de gostar ou não gostar. Existe algo aqui, neste disco, que me diz respeito. Estamos, eu e Dan Bejar, entre um passado que pesa nos nossos ombros e um futuro totalmente indefinido, às vezes assustador. Não temos a mínima ideia de onde vamos chegar.

Discos (e momentos) de ruptura são sempre complicados, principalmente quando a banda (e o sujeito) tem um estilo (um dia a dia) já muito bem definido. E principalmente quando não se tem por que mudar.

Eu ficaria satisfeito se o Destroyer se contentasse em ser sempre a banda de Rubies, aquele grande disco de 2006. Ele concentra a personalidade musical de Bejar: o fã de Dylan que tropeça nas próprias palavras, o vocalista hiperativo que não consegue amarrar dois versos sem balbuciar frases sem sentido, o compositor surrealista, o trovador que esnoba a métrica do pop. O Bejar do Destroyer é o homem livre e louco que se esconde no hitmaker blasé do New Pornographers.

Por que mudar?

Em Kaputt, no entanto, a impressão é de que o Bejar que conhecíamos, bem… ele não está mais aqui. Ou que aquele Bejar se diluiu em outro, com novas roupas e novos sonhos. O anterior, Trouble in dreams (2008), soava como capítulo de história antiga (e a voz e os maneirismos de Bejar eram todos inconfundíveis). Já este é o primeiro dia num emprego novo (ou, para os mais novinhos: o primeiro dia no ensino médio).

Cada um dos discos anteriores tem uma atmosfera bem definida, que vai interligando as canções (em Rubies, posso apertar o play em qualquer faixa que me sinto imediatamente feliz, transportado para aquele mundo, aquelas sessões de gravação). Mas era como se, antes, a atmosfera de um disco apontasse para o passo seguinte. Não mais.

Desta vez, numa transformação anunciada desde o EP Bay of pigs (2009), Bejar experimenta criar uma mise-em-scene a partir do zero, mais Stanley Kubrick que Woody Allen. O que encobre as músicas é uma neblina cinzenta, com uma chuva de sintetizadores démodé, oitentistas, com relâmpagos de saxofones, flautas e solos de guitarra. Quase chillwave, quase ambient, quase Bowie vs Eno, quase um delírio numa noite de inverno. “Miles Davis dos anos 80… O último tango em Paris”, explica Bejar, no estranhíssimo texto de divulgação.

Acontece que, sob essa cenografia que define todos os limites do disco, existe a voz, o temperamento de Bejar. Nós a conhecemos. E, talvez para se adaptar ao novo figurino, ela parece um pouco mais arredia, um tanto mais desiludida do que de costume, ainda que ainda fale pelos cotovelos. A euforia que se ouvia em faixas como Watercolours into the ocean agora cede lugar para um olhar que já viu tudo e está anestesiado – um ponto de vista que nos leva aos momentos mais cabisbaixos da dance music de um New Order ou dos discos mais recentes de Leonard Cohen.

A eletrônica, aliás, não é um elemento que Bejar profana em vão. O disco é todo habitado por personagens que habitam a noite, que “perseguem cocaína nas portas de fundos do mundo” (na faixa-título), que vivem “noites selvagens na ópera, noites selvagens no club” (na ótima Savage night at the opera) e relembram histórias de amor tortuosas (e as guitarras cheias de ecos de Poor in love poderiam estar em Joshua tree, reparem). O narrador observa o mundo da sacada de um castelo decadente, com um pôster de Morrissey pendurado na parede.

Um disco sobre a “falta de sentido que existe no projeto de fazer música para os dias de hoje”, Bejar avisa.

Num dos trechos mais pungentes, Suicide demo for Kara Walker, o homem leva oito minutos para divagar sobre uma menina que entendeu “tudo errado, tudo de trás para frente”. O que segue é agonia. “Garota tola, você nunca vai conseguir chegar lá. Toda Nova York apenas quer te ver nua”, avisa. “Negociações brancas e translúcidas passam por amor nos dias de hoje”, lamenta.

As letras de Bejar seguem se equilibrando para não tombar no abismo, entre o realismo e o absurdo. Mas o conteúdo dos versos me parece mais claro, mais preciso do que nunca. O que Kaputt ressalta são as notícias tristes de um narrador que, decepcionado com o que vê, procura uma sonoridade capaz de dar conta de tanta melancolia. E por isso ele muda.

Talvez seja o disco mais difícil do Destroyer, já que totalmente desconectado do que acontece no indie rock americano e canadense (ele tem mais parentesco, digamos, com o pop espanhol de um Delorean, ou com os suecos). Mas também um dos mais fáceis, já que Bejar abandona quase todos os tiques antigos para interpretar esse novo papel. Ainda ele, mas totalmente diferente. E um pouco perdido. O que sobra do homem que conhecíamos?

Não sei. Ouço este disquinho sinuoso (mistério sem fim) enquanto tento me acertar com a imagem que aparece no meu espelho.

Décimo disco do Destroyer. Nove faixas, com produção de JC/DC. Lançamento Merge Records. 8/10

My beautiful dark twisted fantasy | Kanye West

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Minha história com os instrumentos musicais (em cinco capítulos):

1, violão: tentei quando eu tinha 12 anos, me aborreci com a repetição dos acordes e, depois de memorizar todas as manhas de Michelle e Wave, puxei o meu banquinho. Antes disso, meu professor, um velhinho raquítico que viveu três ou quatro vidas, morreu.

2, piano: chegou muito antes, seis/sete anos, lembro da professora octogenária, a da ladainha medonha — ‘endireite os dedos, Tiago, os dedos, Tiago, os dedos’ — e eu nunca descobri se ela queria que eu mantivesse os malditos num ângulo reto ou levemente oblíquo. Aprendi uma versão débil para a nona sinfonia de Beethoven, fiquei superfeliz, concluí: escalei o Everest, quero descer.

3, pandeiro: foi numa roda de pagode que meus primos improvisaram na casa da minha avó ou da minha tia ou da vizinha, não recordo. Naquela época, ou você curtia pagode ou você era um pulha como eu. Tiago era menino, não sacava absolutamente nada de ritmo. Ritmo? Que ritmo? Os primos me aconselharam alguns truques, me envaideci com a performance, eu e o pandeiro, nascidos um para o outro, esqueci tudo no dia seguinte.

4, teclado: dava uma vergonha danada testemunhar as batalhas espartanas, sangrentas, gente sangrando e tal, que minha irmã travava contra o aparelho. Uma guerra sem vencedores e um mundo mais triste para todos. Eu gostava de ir aumentando a velocidade das batidas, daí a valsinha ficava punk rock. Era um brinquedo bobo, nunca levei a sério.

5, guitarra: muito, muito barulho; eu fazia muito barulho, mas, sinceramente, era um fiasco. Ai tentei tirar Palo Alto, aquele lado B do Radiohead que me fazia chorar, e o volume lá nas últimas, e o vizinho pendurou um Comandos em Ação num fio de barbante, que desceu até a janela do meu quarto. Grudado no soldadinho, um aviso breve: “morra, babaca”.

E é isso. The end, vamos para casa.

Ou, antes que eu esqueça: essa história toda, esses capítulos sobre minha relação conflituosa com os cinco instrumentos musicais (cinco namoros fracassados e de curta duração, mas que deixaram marcas e alguma saudade), diz algo sobre o meu gosto por discos desvairados e fantásticos e arriscados e intensamente criativos como este My beautiful dark twisted fantasy, do Kanye West. E, se vocês me permitirem, se vocês não tiverem algo mais interessante para fazer, vou tentar explicar a conexão que existe entre uma coisa e outra.

Não sou, como vocês devem ter percebido, o cara da técnica. Tentei aprender instrumentos e fracassei com todos eles. Hoje, arranho o violão, arranco uns efeitos cavernosos de guitarra e tiro Cai, cai, balão no teclado. Não sei muita coisa além disso. Mas, na minha adolescência, quando eu era um garoto enfezado e , esses instrumentos eram a minha maior diversão. Eram (serei dramático, spielberguiano, para que vocês entendam direitinho) meus amigos.

Agora tente adivinhar: como eles serviam a um zero à esquerda que não entendia nada, absolutamente nada de partituras, harmonias e acordes um pouquinho mais complexos?

Eles serviam a uma espécie de jogo, de laboratório inconsequente de barulhinhos irritantes e melodias imperfeitas. Eu costumava repetir acordes de violão, gravá-los em fitas cassete e, depois, combinar esses trechos com ruídos de teclados e, numa terceira fita, adicionar vocais quase sempre desafinados. Um horror. Mas lembro do prazer que eu sentia quando ouvia o resultado. Era mais ou menos como assistir a um número de mágica.

Guardo muitas dessas fitas e admito que não tenho coragem de ouvir nenhuma delas. São toscas, melancólicas e me mostram que fui um rapazinho infeliz. Isso me entristece. Elas me ensinam, entretanto, de onde vem a alegria que sinto quando ouço discos que usam instrumentos não para atingir ideiais de perfeição técnica, mas para criar combinações sonoras que provocam sorrisos de espanto e excitação – que fazem do pop uma espécie de playground.

Aposto que Kanye West também se entedia com a estrutura mais convencional daquilo que se chama de pop perfeito. Os solos límpidos de guitarra. O refrão certo na hora certa. A ideia polida. O riff sem arestas. Os versos simétricos, as rimas exatas. A sensação de que o compositor é também um músico dedicado e que, raios, ele levou alguns bons anos para aprender a dedilhar este violão!

Nada contra os virtuoses, mas sempre preferi o mal estar dos artistas que não se conformam com os limites da arte, de qualquer arte. Os idolos deslocados, os esquisitos, os incompreendidos, os solitários, os renegados, they don’t belong here.

Kanye West é, não se engane, não se iluda, um desses. Quem espia o blog do rapper ou o acompanha via Twitter sabe que o globetrotter é um acidente prestes a acontecer: são incontáveis os posts rasos e os tuítes risíveis, as demonstrações constrangedoras de amor às futilidades do showbusiness, o gosto por tudo o que é instantâneo e fashion e, principalmente, a necessidade de provar – a cada saraivada de caracteres – que merece reconhecimento, atenção, prêmios, elogios, um lugar cada vez maior e mais confortável no mundo. “Nenhum homem deveria ter tanto poder”, ele aconselha  (a si mesmo), no primeiro single deste disco, Power. Sejam bem-vindos.

O ego faminto de West é prato feito para revistas de celebridades, e o ídolo cumpre esse papel de forma exemplar: odiamos o homem que se descontrola diante da plateia, mesmo quando a crise nos parece falsa. Detestamos o ricaço que perde as estribeiras e sucumbe, erra, perde. Preferimos o autocontrole, a segurança, às demonstrações de fragilidade. Estamos ali para testemunhar o momento em que fracasso chutará a porta, e estaremos lá para celebrar o funeral de mais um astro pop superestimado por nós mesmos.

So what’s a black Beatle anyway?

Imagino que West escreveu as novas canções entre sessões de terapia, entre uma e outra compra milionária, entre um e outro desfile de moda. Nos momentos de incerteza (que, creio eu, existem até para um milionário esbanjador; vide qualquer filme de Sofia Coppola). Depois que você faz alguns discos de sucesso, o que acontece? Depois que você grava tudo o que precisava ter gravado, para onde ir? Quais são as canções que se escreve quando a plateia começa a cair em tédio?

“Todo mundo sabe que sou um monstro”, West se martiriza, ao som de efeitos robóticos. E depois quase entrega os pontos: “Eu cruzei a linha. Eu deixo que Deus decida. Estou de volta para casa.” A música seguinte prolonga o martírio: “A vida às vezes, meu amigo, é ridícula”. E não é?

O novo de West dá sequência a dois álbuns que soavam um pouco mais confiantes: mesmo a fossa de 808s and heartbreak parece controlada, estancada num conceito muito bem definido, um ato de bravura do macho sensível. Graduation era um brinquedo tão reluzente quanto superficial, mas que será lembrado como o retrato de um astro no comando do próprio destino, flutuando nos top ten. My beautiful dark twisted fantasy, em comparação, soa desastroso: da primeira à última faixa, West expõe o medo de perder, de ficar para trás, de se tornar irrelevante, de se tornar (tragédia!) qualquer um. De ser esquecido, perder a identidade, perder followers, etc.

Os versos, até um tanto entediados e conformados com as puxadas de tapete da existência, são o que este disco tem de mais dark. “Vai ser uma morte muito bonita, um salto da janela”, avisa em Power, o réquiem para o super-rapper.

É essa angústia, surpreendentemente, que acaba por energizar o disco, já que West compõe e grava como se estivesse à beira do precipício. Como se houvesse apenas mais uma chance (não é o caso, mas o sujeito é uma pilha de nervos). Em sua discografia, não existe um outro disco que aposte tantas fichas, que mire tão alto (sob pena de tombar no ridículo) e que tome caminhos tão arriscados. Talvez inspirado por Sufjan Stevens e pelo Arcade Fire, West percebeu que a temporada é propícia para esse tipo de monumento extravagante. Quase todas as 13 faixas do disco cabem nessa definição.

São canções como Runaway, All of the lights, Power e Blame game que condensam o espírito do álbum: elas começam e se recusam a terminar, se sabotam, abrem singelas e fecham estranhíssimas. Em alguns casos, como Devil in a new dress, um sampler se repete à exaustão, até esgotar todas as possibilidades de encantamento e morrer na praia. Existe algo de rock progressivo na estrutura dessas faixas, mas não é a melhor forma de defini-las. Existe algo de glam rock e ópera-rock, mas nenhum desses rótulos veste perfeitamente o estilo de West.

É um voo talvez alto demais, talvez cego. As faixas são grandiosas por birra, não por necessidade. Muitas delas caberiam em três minutos de duração. Só que, impertinente, West as alonga para explicitar o que elas têm de desconfortável. São paranoicas (o sucesso pode acabar num segundo). São ambiciosas (o céu é o limite). “Estou perdido no mundo”, ele reconhece, na penúltima faixa do disco, ao som de um sampler fantasmagórico de Woods, de Bon Iver.  A última canção, quase uma vinheta, atende por Who will survive in America. Sobreviver é a questão.

Goodnight, cruel world, I see you in the morning.

Voltando à minha relação com os cinco instrumentos musicais, reparo que álbuns assim – álbuns que não se aguentam dentro do pop, que querem quebrar as paredes do quarto – se comunicam com o meu desejo adolescente de encontrar sons para sentimentos que eu não conseguia decodificar de outra forma. Nessa tentativa, fracassei de todas as formas. Fracassei e fracassei feio. Eu e meus garranchos, minhas fitas toscas e ruidosas. Kanye West, porém, é desses que triunfam quando menos se espera. Um homem estúpido, egocêntrico, frívolo, uma celebridade em crise – tudo isso talvez seja verdade. Mas, neste momento, invejo o monstro terrivelmente.

Quinto disco de Kanye West. 13 faixas, com produção de Kanye West e outros. Lançamento Roc-A-Fella, Def Jam Records. 9/10