Guerra

Drops | Mostra de São Paulo (parte final)

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'A rede social', de David Fincher

A Mostra de São Paulo terminou ontem. Assisti a um punhado de filmes (ainda não fiz a conta) e, quando repasso todos os posts desta cinemaratona, percebo que o saldo deste ano foi muito positivo. Tão animador que consegui organizar um top 10 (+3) só com longas que, por aqui, mereceram cotação maior ou igual a 4 estrelas. E vocês sabem que, apesar de todo o meu bom-mocismo, não sou dos que saem distribuindo estrelas a torto e a direito. 

Pois bem: antes do besteirol sobre os filmes do dia, eis o meu top 10 (+3) da Mostra de SP. Alguns ainda vão passar na repescagem (hoje, amanhã e domingo). Por isso, fiquem atentos:

1. Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas, Apichatpong Weerasethakul
2. Mistérios de Lisboa, Raúl Ruiz
3. Cópia fiel, Abbas Kiarostami
4. O estranho caso de Angélica, Manoel de Oliveira
5. Somewhere, Sofia Coppola
6. Homens e deuses, Xavier Beauvois
7. Film socialisme, Jean-Luc Godard
8. O mágico, Sylvain Chomet
9. Minha felicidade, Sergei Loznitsa
10. As quatro voltas, Michelangelo Frammartino
+3. Caterpillar, Koji Wakamatsu, Machete, Robert Rodriguez e Ethan Maniquis e Armadillo, Janus Metz

E novamente (que não custa ficar repetindo; este é um blog redundante e amnésico): muito obrigado a todos que me receberam tão bem em São Paulo. Abraço e até o ano que vem.  

Gainsbourg – Vida heroica | Gainsbourg (vie héroïque) | Joann Sfar | 3/5 | Serge Gainsbourg confinado numa cinebio corretinha é o tipo de ideia fadada ao inferno das boas intenções. Mas, apesar de toda a polidez, este retrato em 3×4 ganha algum colorido nos momentos em que Sfar se livra da obrigação de reconstituir a trajetória do compositor e passa a brincar com o mito Gainsbourg, quebrando a correção da narrativa com delírios à cartum. Não chega perto das liberdades de um I’m not there, mas também não é qualquer Cazuza – O tempo não para.

Um homem que grita | Un homme que crie | Mahamat Saleh Haroun | 3/5 | Um drama africano narrado com o estilo econômico dos Dardenne e que, como Homens e deuses, se deixa intrigar pelas escolhas tomadas pelos personagens em situações-limite: o que motivaria um pai a escalar o próprio filho para a guerra? Atuações muito fortes, mas não consegui ver nada de muito particular no olhar do diretor, que não escapa de um modelo de ‘realismo engajado’ que é tão querido em festivais.

A rede social | The social network | David Fincher | 3.5/5 | Admito que, quando fiquei sabendo que David Fincher dirigiria um filme sobre a criação do Facebook, logo lembrei da avalanche de aplicativos visuais que o cineasta usou em Clube da luta. Daí a minha surpresa (que não é boa nem má, apenas uma surpresa): A rede social é o longa mais sóbrio e funcional de Fincher – na maior parte do tempo, o diretor não faz muito além de arejar as lacunas mínimas de um roteiro escalafobético. Mas essa aparência clean (a ação transcorre em quartos de faculdade e salas de reunião) só destaca o traquejo extraordinário de Fincher para técnicas de narrativa: é um filme fluente do início ao fim, mesmo quando dispara um vocabulário tecnológico que nos soterra. Não dá para levar muito a sério, no entanto, quem encontra aqui um retrato complexo da geração-Facebook: o texto se sustenta em estereótipos e chavões (o vilão ganancioso, a vítima injustiçada, o conflito entre amigos, a velha lição de que sucesso e dinheiro não trazem felicidade) para amaciar a pílula high-tech e vendê-la a um público que talvez ainda não tenha uma conta no Twitter. A esperteza de Fincher é, apesar de todas essas concessões, preservar o mistério em torno do personagem principal, que, talvez muito a frente do seu tempo, flutua enfadado sobre todas as intrigas da trama: no papel desse gênio solitário, o nosso menino-da-bolha (e, se você quiser, o símbolo de um modelo econômico em que ideias contam mais que acordos publicitários), Jesse Eisenberg compõe a performance mais impressionante que vi este ano.

Drops | Mostra de São Paulo (6)

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'Caterpillar', de Koji Wakamatsu

Filme do desassossego | João Botelho | 2/5 | Compreendo perfeitamente: qualquer adaptação do Livro do desassossego tenderá a tratar de uma forma mui respeitosa (resumindo: cheia de dedos) as palavras de Fernando Pessoa: mas, no caso deste filme-sonho de João Botelho, as imagens são aplicadas apenas para ilustrar, às vezes preguiçosamente, o texto declamado pelos personagens (nas divagações sobre sexo aparece um casal trepando; nos trechos sobre a língua portuguesa, o ator caminha dentro de uma biblioteca). Admito que, em alguns momentos, fechei os olhos para ouvir os versos sem a interferência de cenas quase sempre tão banais.

Como eu terminei este verão | Kak ya provyol etim letom | Alexei Popogrebsky | 3/5 | Se Na natureza selvagem, de Sean Penn, pode ser interpretado como um “filme de aventura”, este longa russo também aceita a classificação, e por um motivo mais ou menos parecido: é um conto sobre ritos de passagem (e o fim da adolescência) em que o ambiente (uma região gélida, isolada) cumpre um papel importantíssimo, já que catalisa os conflitos entre os personagens. É de se admirar, por isso, que o diretor Popogrebsky não se deixe seduzir por cenários tão fotogênicos e mantenha os protagonistas em primeiro plano. O filme é um belo exemplo de fé na narrativa clássica, linear, com todas as peças encaixadas nos devidos lugares, ainda que o terceiro ato tente criar uma atmosfera de tensão e paranoia que me parece tão fria quanto as paisagens filmadas.

!!! Caterpillar | Kyatapirâ | Koji Wakamatsu | 4/5 | Sou um iniciante na obra de Wakamatsu e, por isso, só consigo ver este Caterpillar como um comentário frontal, furioso, quase monocromático e grosseiro (num bom sentido), acerca dos horrores da guerra. E descrever o filme com simplicidade me parece apropriado, já que é com absoluta clareza e economia de efeitos que Wakamatsu cria este catálogo de atrocidades: mostra o horror no combate (nas primeiras cenas, uma mulher é estuprada por um soldado), o horror na volta para casa (o soldado retorna sem pernas e braços, como uma “lagarta gorda”), o horror psicológico (a relação entre o soldado e a esposa se torna uma espiral de loucura) e, finalmente, o horror das convenções sociais e religiosas (o soldado-lagarta, que não consegue nem falar, é consagrado deus). O contexto político aparece em frases curtas disparadas entre uma cena e outra. É o suficiente: a matéria de Caterpillar é a tragédia doméstica, física, pessoal. E, aí, não adianta remediar: a guerra não acaba quando termina.

PS: Não pensem que esqueci dela: a mixtape de outubro (também conhecida como a ‘mixtape das férias’) vem aí, e vai chegar mais cedo do que de costume. Vou postá-la amanhã cedo, por volta das 11h. Aí vocês fazem o download a tempo de curtir o feriado. Pode ser? Então vai ser.