George Clooney
cine | Os descendentes
Volta e meia, ouço alguém comentar que, com o passar do tempo, o cinema de Alexander Payne vai ficando melhor. Mas não, apesar disso, não consigo ver neste Os Descendentes um filme superior a, por exemplo, Eleição. Ou a Sideways, de que nem sou grande fã. Ou, indo um pouco mais longe, a Ruth em Questão. É muito fácil perceber algumas diferenças entre este projeto novo e os anteriores, e nove entre dez resenhas vão apontar que ele parece, por exemplo, mais direto e sincero que os outros — mas eu, que não tenho absolutamente nada contra as sátiras, ainda acredito que o diretor segue aplacando as próprias forças à serviço de um cinema brando, que não quer (nem vai) incomodar ninguém.
Ao contrário de Eleição, que ia desmontando lentamente uma série de estereótipos grosseiros, os personagens de Os Descendentes são pessoas comuns e plausíveis, bem intencionadas, que se envolvem em conflitos também não muito espetaculares, engatilhados por uma tragédia doméstica. Numa das primeiras cenas, o protagonista do filme nos avisa, em off, que ele quer ser um bom pai. Não soaria muito convincente — mas, já que é George Clooney quem diz, acredito. Certa vez, num perfil publicado na Vanity Fair, alguém escreveu que ele é “o único ator americano que irradia uma sensação tranquila de maturidade”. O personagem do livro de Kaui Hart Hemmings parece ter sido criado especialmente para provocar fissuras na persona do astro.
A tranquilidade desse herói-como-a-gente é tão falsa quanto os lugares comuns que se associa ao lugar onde ele vive, o Havaí. Payne brinca a todo momento com essas aparências enganosas: a trilha, composta por delicadas canções havaianas, dá uma aparência de leveza ao filme que contrasta com temas que estão envenenando o ambiente (doença, morte, infidelidade). O diretor evita alguns maneirismos visuais que apareciam, por exemplo, em Sideways (como as cenas kitsch da vida caipira que interligavam as sequências da trama) — mas não sei se esse espírito de contenção deve ser tomado como um passo a frente para o estilo do cineasta. É apenas o tom que combina com um roteiro também muito modesto.
Dentro desse formato discreto — e ok: o filme é uma crônica, ainda que sem os encantos das anotações de um Hong Sang-soo —, algumas marcas do cineasta destoam: os personagens de efeito cômico (como o namorado da filha do protagonista) soam como caricaturas, perdidas dentro da trama. O próprio personagem de Clooney às vezes parece pronto para fitar a câmera e perguntar por que o filme decide acompanhá-lo com exclusividade, sem se importar muito com os restante do elenco. Payne não responde, mas consegue criar o filme franco, sem cinismo (mas eu não diria sutil, nem engraçado) que muitos esperavam dele. Se o cinema do diretor seguir nessa toada, só torço para que ele encontre uma viés particular para lidar com esse tom bege de drama. Por enquanto, não vejo razão para ficar festejando: a experiência não produziu mais que um filme adorável porém singelo, de que não lembrarei na próxima temporada do Oscar.
(The Descendants, EUA, 2011). De Alexander Payne. Com George Clooney, Shailene Woodley e Amara Miller. 115min. C+
mostraSP | Dias 11 a 14
Aqui termina o meu diário da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Infelizmente (ou felizmente, dependendo do seu ponto de vista), são curtos os parágrafos sobre os últimos filmes que vi no festival. Tenho muito a dizer sobre cada um deles, mas pouco tempo. No mais, começo a achar que os posts desta série provocam certo cansaço até no leitor mais dedicado deste blog.
Portanto, rapidinho: as cotações ainda vão da letra D (de desagradável, digamos), à letra A+ (de absolutamente mágico, digamos). Além dos filmes que estão neste post, ainda assisti à cópia restaurada de Despair (1978), de Fassbinder, e à cópia encardida de Meu amigo Ivan Lapshin (1986), de Aleksei German. Não escreverei sobre esses filmes porque me sinto pequeno/burro perto deles. Logo após os comentários vocês encontram a meu top 10 da Mostra.
Fausto | Faust | Alexander Sokurov | A | Na primeira hora de projeção, a lenda de Fausto é narrada com a agilidade de uma aventura medieval. Parece o filme mais direto de Sokurov. Mas, ao enevoar progressivamente a trama, o cineasta nos mergulha no pesadelo do personagem – e, para quem não estiver disposto às comparações com a obra de Goethe, o filme pode ser visto simplesmente como uma caminhada para a perdição (por trilhas cada vez mais estreitas e difíceis), na companhia de um diabo cínico e encenada dentro de algums das imagens mais delirantes, mais impressionantes, que o cineasta já compôs. Mais ou menos como acontecia com o Tarantino de Bastardos inglórios, Sokurov cria o filme com a intenção quase declarada de compor uma obra-prima. Não acredito que chegue a tanto, mas não dá para acusar o diretor de negar fogo diante de ambições tão gigantescas. Resultado da odisseia: um filme acessível como nenhum outro do cineasta – e misterioso, estranho como qualquer um que já dirigiu. Escolha corajosa do júri de Veneza.
Caverna dos sonhos esquecidos | Cave of forgotten dreams | Werner Herzog | B | Um bom doc do History Channel, que cresce quando Herzog se livra das amarras do formato e divaga sobre as origens da arte. A exibição em 3D, adequada ao tema do longa, transformou o filme numa das atrações principais da Mostra de SP. Mas não é para tanto: ele não me parece singular ou forte, por exemplo, como um Homem-urso.
Um mundo misterioso | Un mundo misterioso | Rodrigo Moreno | B | Nada importante acontece, quase sempre graciosamente. Mais bem humorado e menos frustrante que O guardião, o anterior do cineasta.
Tudo pelo poder | The ides of march | George Clooney | B | Um conto político à americana: ágil, fun, um tanto simplório (e o título em português poderia ser Tudo por uma boa reviravolta de roteiro), but it works, it does. No elenco, todos os homens de Steven Soderbergh.
O dominador | Cho-neung-nyeok-ja | Kim Min-suk | B | Um super-herói boa-praça, um supervilão estressadíssimo, Coreia scores again.
Os contos da noite | Les contes de la nuit | Michel Ocelot | C+ | Animação com estilo (e Ocelot, tal como Sokurov, é dono de uma ilha visual absolutamente particular), mas o tom professoral/pedante da narrativa me afastou um pouco da brincadeira. E o gosto pelo exotismo, raso desse jeito, me parece uma boa intenção apenas superficial.
Projeto Nim | Project Nim | James Marsh | C+ | O diretor de O equilibrista acompanha a dura vida de um chimpanzé (submetido a pesquisas científicas e, por fim, abandonado) num doc cujo tema interessa mais que o formato: domesticado, quadradíssimo.
Periferic | Bogdan George Apetri | C | Um romeno especialmente romeno, sob medida para festivais de cinema. Na trama, tragédia pouca é bobagem.
Kaidan horror classics | Ayashiki bungo kaidan | Hirokazu Kore-eda, Masayuki Ochiai, Shinya Tsukamoto e Lee Sang | C | Combo televisivo (produzido pela NHK) cheio de limitações. O episódio do Kore-eda é o único que se salva.
País do desejo | Paulo Caldas | D | Momento vergonha-alheia da Mostra. Que diálogos são esses, Brasil?
Os 3 | Nando Olival | D | Cinema publicitário sem culpa (e sem rumo, sem graça, sem brio, sem razão de ser). Felizmente, dura apenas 80 minutos.
Desapego | Detachment | Tony Kaye | D | Um drama sobre o cotidiano em escolas públicas americanas que tenta chocar, tenta emocionar, mas só consegue ser tosco e infantil. Kaye, diretor de American history X, grita ao espectador lições que já conhecemos. Duas opções: encarar o filme como um Entre os muros da escola from hell. Ou abandonar a sala após a cena em que estudantes matam um gatinho a marteladas.
Top 10: Meus favoritos da Mostra de São Paulo
01. Isto não é um filme, de Mojtaba Mirtahmasb e Jafar Panahi
02. The day he arrives, de Hong Sang-soo
03. Fausto, de Alexander Sokurov
04. Histórias da insônia, de Jonas Mekas
05. Habemus papam, de Nanni Moretti
06. O garoto da bicicleta, de Jean-Pierre e Luc Dardenne
07. Irmãs jamais, de Marco Bellocchio
08. Era uma vez na Anatólia, de Nuri Bilge Ceylan
09. Girimunho, de Clarissa Campolina e Helvecio Marins Jr
10. Las acacias, de Pablo Giorgelli
Amor sem escalas
Up in the air, 2009. De Jason Reitman. Com George Clooney, Vera Farmiga, Anna Kendrick e Jason Bateman. 108min. 5/10
Quando eu era pequeno, meu pai dizia: “No melhor dos mundos, filho, você vai estudar, fazer alguns amigos, crescer, estudar mais um pouco, se formar, chegar à idade adulta como um sujeito honesto, conseguir um emprego digno, formar uma família, ter três ou quatro filhos, ganhar um salário mediano, dar o exemplo, ficar velhinho e morrer.”
Fui criado assim. Pé no chão. E chão de mármore, frio.
Deixei de acreditar em Papai Noel aos seis anos de idade, quando meu pai resolveu abrir o jogo e admitir que o carrinho de controle remoto não caberia na meia e, além disso, era caro demais. Anos e anos mais tarde, quando meu pai foi demitido a exatos dois meses da aposentadoria, perguntei a ele sobre empregos dignos e recebi uma resposta lacônica. “O trabalho é uma guerra.” Não voltei ao assunto.
Hoje, converso pouco com meu velho. Batemos papo nos aniversários e em outras datas importantes. Na páscoa, por exemplo (e não sei exatamente por que). No carnaval. Quando alguém morre. Sinto saudades. Reprovo a ideia de paternidade à distância. Mas nos entendemos razoavelmente bem. Apesar de, nessas conversas, nunca trazemos à pauta assuntos relevantes. Nada de incertezas amorosas ou outros temas que não possam ser concluídos em cerca de cinco minutos. Geralmente ele pergunta sobre meu trabalho e respondo: está tudo bem.
Quase nunca está. Noto que ele tinha razão. Trabalhar é uma guerra travada entre as nossas convicções e o que somos obrigados a fazer. Não estou falando dos dilemas épicos, crises monumentais. Nada disso. Faço referência apenas às pequenas provações que enfrentamos e superamos dia após dia. Situações triviais que, admita, nos machucam (mesmo quando sutilmente) e fazem com que, no mês seguinte, afirmemos com segurança aos novatos: “Somos profissionais experientes, nos respeitem.”
O que aprendi em muitos anos de dedicação integral a essa máquina é que concessões devem ser feitas. Meu pai estava certo: é possível, numa empresa, trabalhar honestamente, divertir-se, fazer amigos e gostar muito do que se faz. Mas não há como fugir de todas as lutas.
Amor sem escalas (e finalmente chegamos a ele!) é, em alguma medida, um filme sobre o trabalho. Pessoas são demitidas. E nós, amedrontados com a perspectiva de sermos ejetados de nossas rotinas, nos identificamos com elas. No contexto em que foi lançado, pode ser interpretado como um longa-metragem dedicado às consequências da recessão norte-americana. Pode, mas não deveria. A todo momento, em todo lugar, pessoas são demitidas. O próximo pode ser você. E ninguém sabe como reagir a isso. É, me contaram, como ser expulso de casa pelo irmão mais velho que nunca te deu muita atenção. Dói.
O protagonista, interpretado por George Clooney, é a encarnação desse irmão mais velho. Um homem impassível que cumpre rigorosamente o papel de demitir pessoas. Não sou nem nunca fui chefe, mas entendo que demitir um funcionário não deve ser algo tranquilo e animado como um passeio no parque. Em resumo: os chefes constrangidos contratam Clooney para limpar elegantemente a cena do crime.
E Clooney é um faxineiro eficiente. Cínico, prático e insensível como um matador de aluguel. Requisitado que é, está acostumado a viajar de avião por todo o país, acumulando milhas, dormindo em quartinhos de hotel e matando o tempo em bares chiques porém impessoais. Parece muito satisfeito com a vida que leva. Numa dessas noitadas solitárias, ele conhece uma mulher que, resolvidíssima, topa embarcar com ele numa relação sexy e casual. Todos os envolvidos aprovam esse esquema de relacionamento tãããão século-21. Para combinar os encontros, eles abrem laptops e digitam aceleradamente algumas palavras misteriosas porque isso sim – laptops? – é uma coisa moderna.
Enfim. Na primeira metade do filme, o diretor Jason Reitman reprisa o método de Obrigado por fumar: expõe os vícios de workaholic amoral. Num determinado momento da trama, Clooney descobre que o próprio emprego está em risco. A partir daí, sai numa jornada para ensinar uma hitgirl iniciante e metódica e ambiciosa as artimanhas do ofício. No meio tempo, dá palestras sobre como esvaziar mochilas que carregam todo o peso do mundo. Ou algo parecido.
Jason Reitman, sabemos, é um sujeito conservador. E moralista. Nada contra, mas deixemos isso claro. O protagonista de Obrigado por fumar é um ás da retórica confrontado com algumas boas verdades da vida. Juno é a adolescente grávida prestes a descobrir o amor verdadeiro na figura de um nerd honesto, generoso e boa gente. Existe sim uma “mensagem” em Amor sem escalas, e ela não é nada nebulosa: o estilo de vida de Clooney pode até parecer charmoso (são tantas milhas!), mas não é saudável.
O cinismo cool da primeira parte do filme – que lembra a gramática de Steven Soderbergh, mas acaba soando como um piloto genérico de seriado da HBO – é abruptamente substituído por um tom mais afetuoso. Sabe-se lá como (talvez por conta de uma turbulência especialmente severa num voo longo), os personagens se transformam. Lá pela metade da trama, Clooney vira um gentleman que sente falta dos prazeres de uma vidinha simples (cercado por memórias de adolescência). A hitgirl iniciante sonha em casamento e filhos. A amante prafrentex, no fim das contas, não era tão prafrentex assim. O que Reitman quer com isso? Mostrar-nos que nossas vidas modernas são vazias? E que, para completá-las, teremos que formar uma família e nos comprometer a longo prazo com alguém?
O filme manda o recado de uma forma tão direta que quase nos convence de que está absolutamente certo. Ou, pelo menos, de que Reitman é um cineasta franco, ainda que sem estilo. Mais uma vez, nada contra. Pior do que isso é a forma primária como nos convida a essa aula de boas maneiras: na segunda metade, a trilha sonora usa até Elliott Smith para nos sensibilizar e finalmente nos converter… a que dogma mesmo? À maravilhosa congregação de Juno e os ursinhos sentimentais?
Meu pai, na certa, acharia tudo muito tolo. Ele tem família, filhos, uma casa e um cachorro. Sabe que as coisas não terminam – talvez só começam – aí. Sabe mais: que nada disso resolve a relação conflituosa, dolorida que a maior parte das pessoas mantém com o trabalho. O medo de uma demissão, o choque cotidiano com decisões duras de empresas. Reitman, ainda que se aproxime desses temas, parece ter perdido a chance de tocar no assunto de uma forma adulta. Na ânsia de disparar chavões sobre “as coisas importantes da vida”, esquece que nós temos absoluta certeza de que eles só servem para engendrar a ficção mais preguiçosa. Não nos dizem respeito. No mais, já vimos filmes de fantasia mais inventivos.