Fotografias
Helplessness blues | Fleet Foxes
Era a terceira vez que minha namorada vinha à cidade e eu sabia que, naquele fim de semana, acabaria acontecendo. Minha mãe nos reuniria na sala para abrir, um a um, todos os meus álbuns de fotografias.
Confesso que ainda me sentia despreparado para o ritual sangrento. As fotografias me levam a lugares para onde prefiro não voltar. Mas fiz que estava tudo bem. Para simular macheza, puxei o coro: “as fotos, mãe!”
Elas, é claro, estavam todas lá. Empilhadas no armário do corredor, no alto, à esquerda. Os álbuns zoneados, socados de qualquer jeito naquele espaço minúsculo, naquele sarcófago retangular. Estavam vivos, por um triz.
O mais lógico seria adotarmos a ordem cronológica. Começaríamos pela infância (flashes serenos), depois seguiríamos adolescência adentro (meu pântano) até chegar aos meus 20 anos (raras aparições para as lentes).
As fotos recentes praticamente não existiam, graças a deus e, principalmente, à tecnologia digital.
Aquele espetáculo não era novo. Assisti a ele tantas vezes que o roteiro me parece previsível mesmo quando as cenas são embaralhadas e narradas de forma aleatória. Como eu dizia, seria útil adotarmos a ordem cronológica.
Seria, mas não parece ser o método mais prazeroso. Minha mãe prefere tirar os álbuns na sorte, abrir primeiro o que estiver à mão, e se surpreender com as fotografias que aparecem. Talvez por hábito, o jogo também me agrada.
Naquele sábado, não lembro qual foi o primeiro álbum que o acaso escolheu para abrir nosso flashback. Sei que era um da minha infância.
Nessas imagens, estou quase sempre fantasiado – de super-herói, palhaço, índio, soldado. Reconheço que existe graça naquele menino tímido, assustado, metido em roupas exóticas. “Nessa ele tá doente, coitado”, minha mãe avisa, sempre.
Minha namorada riu com a foto em que apareço vestido de Rambo, exausto na escada de casa. Também parece ter gostado de ver que, como eu havia avisado, já pesei uns bons quilos a mais. Na cena, eu estou com uma camisa larga, amarela, de viseira, na festa da posse do presidente. Barrigudo. Sorrindo.
Para mim, as fotografias carregam mistérios que não consigo decifrar. Olho para elas e é como se eu não me visse. Não sou aquele menino encabulado. Não sou aquele adolescente sem jeito (de óculos e cabeça raspada). Não sou aquele sujeito gordinho do rosto redondo. Não sou o adulto com traços de menino, que aparece de camisa social apoiado no monumento do Muro de Berlim. Não me reconheço muito bem.
Estive em todos esses lugares, fiz todas essas coisas, mas as fotografias dizem muito pouco sobre quem eu sinto ter sido. É como se contassem a minha história pela metade, com um roteiro terrivelmente superficial.
Ou talvez (muito possivelmente) ainda exista um problema na forma como eu me noto. Sigo insatisfeito com o que fui e com o que sou. Talvez as fotografias reflitam a minha dificuldade de aceitar que sou mesmo aquela pessoa, aquele menino, aquele adolescente, aquela face que as imagens mostram. Admito que bate uma certa decepção.
As fotografias estão sempre do mesmo jeito. Eu é que as encaro com olhares diferentes. É um sujeito comum, o garoto das fotos. Mas não o homem que eu queria ter sido.
Pensei um pouco nisso tudo enquanto lia a apresentação do disco novo do Fleet Foxes, escrito pelo vocalista, Robin Pecknold. É um textinho franco, bonito, que termina tentando explicar o título do álbum, Helplessness blues. “Um dos temas principais é a luta entre quem você é e quem você quer ser”, ele explica. “E sobre como, às vezes, a única barreira entre uma coisa e outra é você mesmo.”
Robin tem 25 anos de idade. Lembro que, quando eu tinha 25, essa angústia já me perseguia. Parecia enorme a distância entre quem eu era (o sujeito que aparecia nas fotografias) e quem eu queria ser.
Acredito que essa distância, aliás, se impõe de forma abrangente em Helplessness blues, o segundo disco do Fleet Foxes. Esse espaço incalculável entre os nossos desejos e aquilo tudo que conseguimos, de verdade, realizar (e tudo que realizamos sempre nos parece tão pouco).
Para começar, é um disco que quer ser grande. Ainda no texto de apresentação, Robin fala que pensou em Astral weeks, de Van Morrison, para compor a atmosfera “de transe” dos arranjos. “Foi uma grande inspiração. Não sempre nas músicas, talvez na abordagem”, apressa-se a explicar. Ele sabe que, por mais que tente, seria impossível se colocar à altura do ídolo.
Mas por que não? Robin se cobra demais. Eu o entendo. Helplessness blues pode ter muitos defeitos, mas está explícito que este é o melhor disco que o sujeito consegue criar neste momento.
É a vontade de superar as próprias limitações, de ir até onde é possível, de tentar se aproximar daquilo que é uma ideia de perfeição (inatingível, portanto), que faz deste um álbum verdadeiramente tocante.
É um disco sobre um homem de 25 anos procurando respostas para aquilo que não entende muito bem. Crescer não é simples.
Vejamos, com cuidado. Logo no refrão da primeira música, Montezuma, encontramos um Robin espantado, em meio a uma brisa de violõs dedilhados e vozes masculinas: “Oh man, what I used to be! Oh man, oh my, oh me!” (um trecho que dispensa tradução). É o instante catártico de uma faixa que abre com uma questão filosófica: “Agora estou mais velho do que meu pai e minha mãe quando tiveram a filha delas. O que isso diz sobre mim?”
Talvez não diga nada (é uma perguntinha aparentemente tola), mas o disco todo tenta respostas para essa aflição. Não é um álbum plácido, apesar de conter um punhado de melodias folk por vezes angelicais.
A canção seguinte, Bedouin dress, fala sobre arrependimentos de juventude. “Acredite em mim, não é fácil olhar para trás”, avisa o nosso guia. Depois, em Sim sala bin, o que entra em cena é um personagem que vive bem no mar, sozinho, até o momento em que a terra treme e “o sonho quebra”.
Percebemos aí que é uma música sobre decepções amorosas que não foram bem resolvidas, que se escondem no oceano até o dia em que rompem o marasmo. “O que faz com que eu te ame apesar de todos os poréns? O que eu vejo nos seus olhos além do meu próprio reflexo?” Ainda não dá para responder. A faixa vai se alongando em camadas e camadas de violões, Van Morrison style, à deriva.
Em Battery kinzie, uma das melhores do disco (imagine aí um encontro de Zombies com Byrds), os versos de Robin ficam mais abstratos. “Acordei um homem morto, sem chances”, ele diz, antes de mergulhar no surrealismo. As canções seguintes formam um ciclo tanto musicalmente (os violões onipresentes, os arranjos com um quê de pop barroco, a âncora melódica lançada nos anos 70) quanto em versos sobre uma jovem velhice, um desencanto prematuro.
É assim que o disco caminha, com olhos marejados. “Fui criado para acreditar que eu era alguém único. E agora, depois de muito pensar, começo a me ver como uma máquina na engrenagem”, confessa o vocalista, na faixa-título. Mas conclui, um pouquinho esperançoso: “Não sei como tudo isso vai terminar. Um dia, você vai ver, vou voltar para você.”
O que me emociona neste disco é isto aí: o Fleet Foxes é uma banda de rock muito competente, muito elogiada (o primeiro álbum esteve em quase todas as listas sérias de melhores de 2008), excelentes músicos, mas que ainda se sente incompleta, imatura. Não saber como tudo vai terminar, no caso, me parece o grande mérito deles – e o maior fator de identificação com um público que também reconhece estar, de certa forma, perdido. Eu e, talvez, vocês.
Helplessness blues, apesar da estrutura engenhosa (é um disco mais trabalhoso que o anterior; duas faixas são suítes à la Brian Wilson, por exemplo), se mostra tão descomplicado, quase singelo, tão ingênuo quanto o anterior. Pode ser resumido como uma homenagem ao folk rock e ao pop psicodélico dos anos 60 e 70, “com ênfase nas harmonias vocais de grupo”, como explica o vocalista.
Antes que o acuse de roubar velhas ideias, o próprio Robin lista as referências: Peter Paul & Mary, John Jacob Niles, Bob Dylan, The Byrds, Neil Young, CSN, Judee Sill, Ennio Morricone, West Coast Pop Art Experimental Band, The Zombies, SMiLE-era Brian Wilson, Roy Harper, Van Morrison, John Fahey, Robbie Basho, The Trees Community, Duncan Browne, the Electric Prunes, Trees, Pete Seeger, and Sagittarius.
O impressionante é que os discos do Fleet Foxes não soam especificamente como obras de algum desses artistas, mas como a massa de lembranças de um fã que poderia passar toda a vida flutuando em músicas antigas. Não estamos diante de um álbum do Midlake, por exemplo, que tenta reproduzir o passado. As letras de Robin são pessoais, comovidas e diretas. O som produzido pelo quinteto – caloroso, aberto – segue essa trilha.
O vocalista conta que muitas das novas músicas foram compostas no período em que foi convidado para abrir shows de Joanna Newsom. Ele teria que se apresentar sozinho e, pór isso, se viu obrigado a criar canções em modelos mais convencionais, que soassem suficientemente fortes ao violão. Esse repertório de trovador dá a Helplessness blues uma qualidade quase démodé de disco-de-songwriter, com versos que merecem ser lidos e decorados pelos fãs. Canções king-size.
A admiração por Newsom acaba aparecendo em faixas quase preciosistas como The shrine, que poderia estar em Have one on me. Robin, mesmo quando não quer, se deixa contaminar pelos experiências que vive, mesmo correndo o risco de parecer um subproduto de artistas já maduros (e é o caso de Newsom). O quinteto que o acompanha também se arrisca: não estamos falando de uma banda que se contenta com alternativas seguras (apesar do foco num gênero muito particular).
Numa primeira audição, Helplessness blues pode parecer um disco que se esforça demais para soar grandioso. Que vai se afogando lentamente no oceano turvo que escolhe para si. É uma impressão enganosa. Robin é um herói ordinário, e é isso que nos aproxima dele. É o que torna essas canções tão humanas e tangíveis – hinos ultrapassados e inseguros (nada a ver com a valentia pomposa de um Arcade Fire, note) para o fim da adolescência.
Ouvir o disco é encontrar alguém muito parecido com quem somos: talvez não tão jovem para voltar correndo para casa, mas ainda não tão velho para compreender com um pouco de lucidez o mundo onde vive. Em Robin descobrimos um amigo distante, um homem também desconfortável com as próprias fotografias. Não é o músico mais moderno, mais ousado, mais sagaz. Mas voltaremos a ele sempre que nos sentirmos um pouco desnorteados – um pouco fora de tom.
Segundo disco do Fleet Foxes. 12 faixas, com produção de Phil Ek. Lançamento Sub Pop. 8.5/10
Superoito contra as fotografias
Sinto sua falta, sinto sua falta, sinto sua falta, sinto sua falta, repeti mentalmente dez ou doze vezes, depois destravei o porta-retrato, dobrei a fotografia e a escondi na menor gaveta do meu armário, aquela que quase nunca abro, sob as meias e os pijamas que quase nunca uso.
Antes, enfrentei a foto mais uma vez – a última, prometi a mim mesmo. Era uma imagem quase singela: eu a abraçava de lado e ela, um pouco sem jeito, curvava o corpo em direção à câmera; eu sorria timidamente, ela parecia feliz; minha camisa era preta e a dela era colorida, apertada no busto; meu cabelo muito curto e o dela também; fazia sol e o céu brilhava em azul-bebê.
O que aconteceu depois? Minhas fotografias não explicam. Elas flagram apenas os nossos instantâneos de alegria, contam uma história incompleta, me maltratam. Notei, talvez tarde demais, que registrei uma versão idealizada do nosso namoro – e ela, essa distorção agradável da realidade, enfeitou minha estante, preencheu a minha sala. Um tipo bonito de ficção.
Amigos dizem que não devo me arrepender de nada. Que não devo sentir culpa. Que não devo pensar no que poderia ter acontecido. Que não devo recordar os planos que foram abandonados. Que preciso esquecer isso e esquecer aquilo. Mas o tempo passa (são dois meses desde a separação) e não consigo: eu ainda me arrependo de tudo, sinto culpa, não esqueço.
Me arrependo, por exemplo, por não ter sido corajoso o suficiente para encerrar o namoro um pouco antes, quando eu estava em vantagem (e é um jogo). Mas às vezes sinto culpa por não ter tomado todas as providências para consertar a nossa crise, renovar o contrato, curar a doença. Há momentos em que olho para o espelho e duvido da minha sanidade. Por que tanta saudade por algo que me fazia tão mal?
Desde o fim do namoro, que durou mais ou menos seis anos, cancelamos todo e qualquer contato. Para ela, não existo (talvez algum vestígio, algum sinal, mas nada muito concreto). Para mim, ela tomou o rumo para outra galáxia (ainda que, masoquista, eu teime em procurar uma ou outra informação em estrelas distantes). E a nossa história deveria terminar aí. Os créditos sobem e as pessoas vão para casa. Mas descobri que sou o homem preso na sala de projeção, assistindo ininterruptamente ao vazio de uma tela branca.
Será que ela sente o que eu sinto? O que acontece do lado de lá?
A ignorância, dizem, é uma bênção. Estou começando a entender o porquê. É a primeira vez que passo por uma separação tão brutal – foi o meu namoro mais longo – e, por isso, tento manter a concentração e a calma. Ajuda, é claro, não saber o que acontece na realidade paralela onde ela vive. Já escrevi sobre isso. Mas tento, se bem que nem sempre consigo, fabricar a aparência de que estou melhorando, que estou seguindo em frente. O cotidiano vai às mil maravilhas, o tempo é santo remédio e sou um sujeito forte, mais resistente do que eu imaginava. Perguntam se estou bem e respondo: melhor a cada dia!
Tento não transformar o caso num drama, já que há tantas coisas mais importantes acontecendo no mundo.
Mas é uma mentira.
Talvez seja algo que passamos de geração a geração: quem se separa tem o direito a se fazer de órfão, de vítima (mesmo quando não há algozes), ganha passe livre para chorar pitangas e pedir asilo a desconhecidos. Mas quando o desespero dessa fase inicial perde o impacto, quando o tempo passa e a performance começa a parecer corriqueira aos olhos da plateia, o processo entra numa etapa ainda mais dolorosa, já que solitária.
Hoje sou eu e as fotografias. Eu contra as fotografias. Elas me entendem, me denunciam mesmo quando tento fugir de todas as memórias que elas ressuscitam. Eu as escondo (as fotos e as memórias) para que eu não as encontre. É um esforço inútil. Procuro a menor gaveta do meu armário, aquela que quase nunca abro, para obrigar que, mais cedo ou mais tarde, eu esqueça todas essas lembranças que permanecem, contra a minha vontade, ainda vívidas.
Elas acabam sumindo? Se sim, cedo ou tarde? Falta muito ou pouco? Estamos quase lá? Como a história acaba? Existe redenção? Falta muito ou pouco? Estamos quase lá?
Devemos ser realistas, pelo menos por um parágrafo: percebo que, como aconteceu com a temporada mais terrível do meu namoro, minha reabilitação será uma história longa, secreta e desinteressante – um espetáculo enfadonho de tão repetitivo, que inspira textos muito semelhantes aos que já foram escritos; que fracassa antes de entrar em cartaz.