Flashback
Os discos da minha vida (9)
Mais um capítulo da saga sobre os discos que governaram a minha vida — esta semana, em versão ansiosa, prematura. Comentários breves e irresponsáveis (escritos entre o plantão de eleições e o início das minhas férias) sobre dois álbuns que, por coincidência, me levam a uma época em que eu era muito novo e ingênuo.
Amanhã (se tudo der certo) chego ao Festival do Rio. Devo escrever posts curtos sobre os filmes, mas adianto que será uma semana corrida. Pretendo ver muita coisa e, por isso, não juro fidelidade ao blog. Mas paciência: estarei de volta na semana que vem.
Lembrando: os discos deste ranking não são todos obras-primas (o critério é sentimental, totalmente duvidoso), mas garanto que eles soam, no mínimo, curiosos. Faça o download e concorde comigo.
084 | Behaviour | Pet Shop Boys | 1990 | download
Eu era um garoto de 11 anos, levava uma vida muito agradável e as minhas músicas preferidas ainda tocavam no rádio e apareciam na MTV. Qualquer hit me satisfazia — mas lembro que este disco do Pet Shop Boys (sejamos fiéis à realidade: era uma fita cassete) me mostrou um traço melancólico do pop que me surpreendeu como algo totalmente novo. Mais tarde, descobri que era um disco muito forte sobre temas que eu ainda não compreendia em 1990. Mas o que guardo dele é aquela sensação inocente, pré-adolescente: existe algo errado com essas melodias tão perfeitinhas. Top 3: Being boring, How can you expect to be taken seriously?, So hard.
083 | Under a blood red sky | U2 | 1983 | download
Este é um disco importantíssimo para mim, talvez um dos mais emocionantes da lista, e por um motivo totalmente pessoal: foi o único álbum que eu gravei numa fitinha cassete para uma viagem de fim de ano, em 1993, em que (vejam que meiguice) passei dias incríveis com a primeira garota por quem me apaixonei. Era uma época em que, para mim, tudo parecia possível: meus desejos se realizavam integralmente, não havia frustrações. Hoje percebo o quanto essa gravação do U2 — interpretada por um Bono Vox que parece prestes a dominar o planeta — ecoa aquele meu sentimento otimista de que, no fim, tudo daria certo. Não foi bem o que aconteceu, mas é uma boa lembrança. Top 3: I will follow, Sunday bloody Sunday, Gloria.
Write about love | Belle and Sebastian
Para quem acompanha a história do Belle and Sebastian desde o início, Write about love será um dos discos mais agradáveis do ano.
Ao mesmo tempo, ele soará um pouco incômodo. Pelo menos um pouco.
A melhor comparação possível: é um álbum que equivale ao dia em que você reencontra uma namorada de infância. Dez, vinte anos depois.
Num primeiro momento, você se curva ao poder de uma lembrança longínqua. Ela, a ex, ‘adulteceu’ graciosamente. Continua com o mesmo sorriso, o mesmo humor, os mesmos tiques (adoráveis) e também sentiu muito a sua falta.
E essa sensação provoca conforto, familiaridade, alívio. “Ainda bem que tudo terminou bem”, etc.
Num segundo momento, você começa a notar as diferenças. Ela, a ex, hoje tem outros interesses, conheceu pessoas, superou decepções, criou novos planos, aprendeu (e desaprendeu) – e se tornou, na soma de todos os traços alterados pelo tempo, uma pessoa muito diferente daquela por quem você se apaixonou. Ainda que pareça igual.
Write about love é um disco que acena (de longe) para o Belle and Sebastian que conhecíamos. A faixa-título, por exemplo, é uma crônica falsamente ingênua sobre tipos comuns, gente que fantasia o amor enquanto se tranca em escritórios cinzentos. É, aparentemente, o mesmo mundo da obra-prima If you’re feeling sinister. Mas quanto tempo passou desde então? 14 anos!
Na época, o Belle and Sebastian era uma banda que guardávamos em segredo. Sabíamos pouco sobre eles e, por isso, ainda havia mistério. As canções nos apresentavam uma juvenília que era um pouco nossa (sob a ironia à Morrissey, Stuart Murdoch sempre foi um sujeito franco e dramático, devoto de Nick Drake) mas, ao mesmo tempo, eram escritas com a finesse literária de um fã de J.D. Salinger e L.P. Hartley. Um estilo.
Os versos que abrem It could have been a brilliant career estão entre os melhores dos anos 90: “Ele teve um ataque aos 24 anos. Poderia ter sido uma carreira brilhante” (e seria possível que um adolescente de 16 anos, metido em provas de pré-vestibular, não se identificasse apaixonadamente com isso?).
Não que o tempo tenha maltratado o Belle and Sebastian. Não. O tempo apenas… Passou. Desde o início da década, a banda parece escrever discos que tentam recriar uma sensação que é antiga. Muitos dos adolescentes de 16 anos que os acompanhavam conseguiram, de fato, seguir carreiras brilhantes. E sobreviveram à idade adulta. Eis a ironia da coisa.
Acredito que, desde Dear catastrophe waitress (de 2003), a banda também tenta se adaptar à maturidade. Tenta se sentir confortável em ternos e gravatas. Ao mesmo tempo, se esforça para preservar uma certa sagacidade, um certo desespero juvenil. É uma banda que cresce (em matéria de técnica, eles nunca estiveram melhores) sem desapegar do que a fez relevante, grande.
Mas seria possível combinar as duas ambições? Talvez sim, talvez não.
The life pursuit (de 2006) foi muito elogiado por mostrar um B&S preocupado em refinar a própria sonoridade. A produção de Tony Hoffer (que esteve nos rocambolescos Midnite vultures, do Beck, e 10.000 Hz legend, do Air) podou os últimos resquícios de crueza que ainda resistiam e ajudou o grupo a criar arranjos elegantes, com alguma influência de soul music e pop setentista. Um disco quase pomposo que, de certa forma, ajudou a criar a onda vintage-delicadinha que produziu genéricos como o She & Him. Pior: um disco quase inofensivo (talvez por isso tenha feito tanto sucesso na parada inglesa).
Write about love segue a “evolução” de The life pursuit, mas com alguns avanços: é um álbum mais compacto e menos obcecado por perfeccionismo técnico (uma característica, aliás, que nunca combinou com as atitudes do Belle and Sebastian). As duas últimas faixas, I can see the future e Sunday’s pretty icons, nos transporta ao tempo de Tigermilk (1996): novamente, uma banda que soa próxima, falível. “Para frente, este é o único caminho que você deve seguir. Eu vejo o seu futuro e não há ninguém por perto”, eles avisam, docemente cruéis.
É, ainda mais do que The life pursuit, um disco que nos acomoda num ambiente aconchegante – uma poltrona de veludo que nunca, em hipótese alguma, dá choque. É um disco, como eu disse, agradabilíssimo (e que pode provocar flashbacks emocionantes em quem viveu os anos 90). Mas, após a quinta audição, comecei a me perguntar se é isso que espero do Belle and Sebastian. Conforto e apenas conforto? Conforto e (medo!) comodismo?
A canção-símbolo dessa fase é, obviamente, aquela que tem a participação de Norah Jones – Little Lou, ugly Jack, prophet John. Soa como um presságio, na verdade: é assim que o Belle and Sebastian soará em 10 anos, quando organizará espetáculos no Carnegie Hall para fãs quarentões. Absolutamente manso. Para os padrões de Norah Jones, é uma bela canção (com todas as arestas aparadinhas e atmosfera jazzy-de-pelúcia). Mas que (eis o choque) poderia ter sido incluída em qualquer disco da cantora.
O restante do álbum é – felizmente – menos perfeitinho, ainda que previsível. I want the world to stop é um encontro entre os vocais amanteigados do Mamas and the Papas com a psicodelia do Love. E I’m not living in the real world poderia ter entrado num dos discos que o Blur gravou antes de Parklife: a pré-história do britpop. A produção de Hoffer cria os tons exatos, “sofisticados”, para o exercício de nostalgia (nada que se aproxime da densidade que encontramos num disco do Clientele, mas eles estão chegando lá).
O destaque, para mim, não deixa de provocar alguma frustração: a faixa-título, com participação de Carey Mulligan (a atriz de Educação), conta a historinha de uma mulher que sonha com um homem “intelectual e quente, mas que me entende”. Enquanto isso, Stuart ensina: “Eu conheço um feitiço que pode te ajudar. Escreva sobre amor: pode ser em qualquer tempo verbal, mas tem que fazer sentido”.
Write about love é gentil assim: faz sentido, aperta o coração, sugere cenas bucólicas, sorri maliciosamente e termina muito antes de provocar silêncios constrangedores. Um encontro feliz, ainda que um tanto rasteiro, com uma antiga namorada. Ela continua muito bonita. Ela sobreviveu. Mas a vida segue.
Oitavo disco do Belle and Sebastian. 11 faixas, com produção de Tony Hoffer. Lançamento Rough Trade. 6.5/10
Guns N’ Roses em Brasília
O palco do Guns N’ Roses é um campo minado. Um rojão explode a cada 10 minutos. Ninguém está seguro. O bombardeio, quando chega, é tão extremo que solta algum cheiro de apocalipse. O estádio estremeceu? Em tempo de terremotos emmerichianos, não há como não ficar (pelo menos um pouco) estressado. Mas tudo é artifício. A terra treme, espalha fumaça, cospe fogo, dispara faíscas coloridas de festas juninas e, depois do vigésimo estouro, estamos anestesiados. É só um show de rock.
Antes de começarmos, um rápido flashback: comprei ingresso para o show do Guns N’ Roses (domingo à noite, no ginásio Nilson Nelson, Brasília) talvez disposto a reencontrar o Tiago meninão que, em 1991, queria ser Axl Rose. Chamem de masoquismo. Minha pré-adolescência, como muitas outras, foi estranha. Ainda não entendo como, naquela época, eu conseguia amar simultaneamente os hits medonhos do Information Society, Roxette, Skid Row, The Simpsons (sing the blues!), Paula Abdul, New Kids on the Block e… Guns N’ Roses. November rain era minha Bohemian rhapsody.
Dois anos depois, eu me envergonharia disso tudo. É natural. A pré-adolescência, como eu ia dizendo, pode ser pavorosa. Daí que entrei no ginásio, 30 anos no meio da testa, com aquela aparência esnobe de quem assiste a um megashow de rock com o distanciamento de quem se submete uma “experiência pop”. Ã-hã. Mal sabiam que o Tiago pré-adolescente, tinhoso e cruel, pulsava de saudades, faminto por sucessos radiofônicos moribundos. O show de abertura (Sebastian Bach!) provocou arrepios de nojo e nostalgia. 18 and life é mesmo um horror, mas diz muito sobre o babaca sentimental que eu era naquela época (e que ainda está um pouco vivo, e vaso ruim não quebra).
O que mais me agrada na ideia de escrever textos em blogs é que temos o direito de mandar os bons modos às favas: desculpem-me os fãs mais talibãs e os adeptos tardios da axlmania, mas o show do Guns N’ Roses em Brasília foi uma bela merda. Uma fedida, imensa, cafona, barulhenta, estúpida, bela merda. Mas, antes que o primeiro fanático grude este post numa comunidade odiosa do Orkut, peço para que reparem no adjetivo: uma bela merda não é qualquer merda. E, quando eu digo que o show foi uma bela merda, estou fazendo uma espécie de elogio. Acreditem em mim.
No início dos anos 90, essa fanfarronice ganharia o apelido da moda: farofa. Como todo legítimo espetáculo farofeiro, a turnê do Guns não tem limites. Perde a medida logo nos primeiros cinco minutos. É Onde vivem os monstros dirigido por Baz Luhrmann. A produção escolheu uma banda de heavy metal de Brasília para abrir os trabalhos, mas a quem eles querem enganar? Guns N’ Roses nunca escondeu no armário a quedinha por Queen, Elton John e Kiss. Se existe uma definição para esse som escancaradamente festivo, seria algo como glam-hard-rock. Sabe Extreme? Sabe Mr. Big? Axl Rose pairou sobre tudo isso feito um urubu-rei.
Não é um show que pede licença, e isso me agrada. Axl Rose não mira o cérebro, mas o intestino. Daí as explosões desagradáveis no palco. Que irritam. E pregam sustos no público. Daí a chuva de confete e serpentina. E a lista de pedidos estranhos à produção (muito champanhe, alguma cachaça, toalhas brancas). As imagens nonsense exibidas no telão (em You could be mine, o que significam as cenas de corrida de Fórmula 1, tio Axl?). Os solos ridiculamente exagerados. Cada música é devassada numa escala monumental. Impossível sobreviver às 2h45 de show sem ficar pelo menos um pouquinho cansado.
Eu admito: fiquei exausto. Às 2h45 da madrugada, quando Axl deixou o palco, tudo o que eu queria era deitar meus neurônios num balde de gelo.
Lá pela terceira música, quando meus tímpanos zuniam com o eco de uns cinco cabeções-de-nego, notei que o Guns N’ Roses que estava no palco não era exatamente o Guns N’ Roses da minha pré-adolescência. Não é nem poderia ser. A banda estava totalmente remodelada (um septeto formato por tipinhos calculadamente exóticos) e o próprio Axl era um avatar inflado daquele ídolo que, lá por volta de 1994, morreu e voltou na pele de um esquisitão obcecado por new metal e política chinesa.
E àqueles que me perguntam se o Axl ainda canta, respondo o seguinte: não sei. Pergunte a outro. Da arquibancada, ouvíamos absolutamente tudo (a bateria, a percussão, os chocalhos, o piano, a metralhadora de bombinhas, os ruídos bizarros à rock industrial), menos a voz de Axl Rose. Não é curioso? O que esperamos encontrar de aparentemente genuíno num show do Guns N’ Roses é a figura de Axl, a celebridade-problema, o monstro congelado no início dos anos 90, o Macaulay Culkin crescido. E tudo o que vimos foi um sujeito de bandana gesticulando agoniadíssimas canções de amor. Um videokê.
Coisas assim acontecem, eu sei. Shows são imprevisíveis, eu sei. Lembro de um da Marisa Monte: espremido na beirada da arquibancada, não consegui ver o palco (que estava aprisionado por um freezer luminoso de arte moderna) e não ouvi o som (cheio de delicadezas sussurradas). Em Brasília, no ginásio Nilson Nelson, esse tipo de coisa acontece com certa frequencia.
Sorte a minha que, no caso do Guns, consegui entender o que acontecia no palco. Os músicos improvisam melodias engraçadinhas (o tema de James Bond, David Bowie, Pantera cor de rosa) enquanto Axl some no camarim (e ele sumia tantas vezes que começamos a suspeitar que ele estaria assistindo ao Oscar e tocando nos intervalos da transmissão). Axl retorna e intercala um hit com uma faixa desconhecida de Chinese democracy. Bombas explodem. É uma guerra, é uma guerra, e ela continua assim por quase duas horas.
A banda (cover) o acompanha com muita precisão. No telão, vemos imagens de meninas depressivas e suicidas. Axl, para quebrar a rotina, vai ao piano e toca November rain. O povo chora, mesmo sem ouvir a voz do moço. Daí ele toca Patience (e dá a deixa pra todo tipo de piada maldosa – esperamos 1h30 para a montagem do palco). O povo se emociona e grita “esta é minha música!”, mesmo sem ouvir a voz do sujeito. Ele sai do palco e volta. Canta outra faixa obscura do Chinese democracy. E termina com Paradise city, que reprisa o entusiasmo com que recebemos o momento bombástico e irado da noite, Welcome to the jungle. Chove serpentina. É carnaval na farofalândia. Axl, bonachão, pede desculpa aos pais que precisam levar os filhos ao colégio. Muita gente boceja.
E é isto: um showzaço escroto e safado e muito ca-fo-na que esfrega na nossa cara o quão grosseiro era o nosso gosto musical em 1991. Tomem isto. Dancem com isto. Chorem com isto. E ainda houve quem disesse que Brasília nunca viu um evento tão grandioso, tão espetacular, tão bonito e poderoso. Então é isso que vocês querem, é? Farofa, suor e rock ‘n’ roll? Nós, brasilienses, ainda seremos devastados pelo nosso complexo de inferioridade.
Para mim, funcionou como uma espécie de terapia. Agora entendo por que, na minha autobiografia íntima, pulo essa temporada confusa da minha vida. Para todos os efeitos, nunca tive 11 anos de idade. Nunca comprei fitas cassete do Guns N’ Roses. Nunca usei bandana em bloco de carnaval. E nunca, em nenhum momento, juro que não quis ser Axl Rose quando eu crescesse.
Quero menos ainda. Pelo menos até o dia em que o fantasma da minha pré-adolescência resolver me atazanar de novo. Eu era um menino muito estúpido, já disse isso? Mas e o Poison, ainda faz turnês?
Remind me | Röyksopp
Já que o momento é de flashback da década (e volto com a lista dos melhores discos no início da semana que vem, prometo), aí vai um clipe que descobri recentemente e entraria seguramente num top 20 meu. Criado pelo estúdio francês de animação H5, o vídeo de 2007 explica o mundo, a vida e tudo o mais num punhado de infográficos.