Filme de cinema

2 ou 3 parágrafos | Ilha do medo

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No DVD de New York, New York (1977), Martin Scorsese conta que projetou o filme como uma espécie de experimento. A ideia era se apropriar dos grandes musicais hollywoodianos, mas com um olhar realista que estava muito em voga nos anos 1970. Uma América de arquitetura falsa — em miniaturas de neon — e sentimentos desvairados, imperfeitos. Acredito que o filme tenha incomodado muita gente (foi fiasco de bilheteria) por deixar a impressão de uma mistura heterogênea, muito desequilibrada (e curiosíssima, mas aí é outra história), entre dois cinemas.

Quando li que Ilha do medo seria um filme assumidamente artificial, inspirado num livro quase pulp de Dennis Lehane, fui correndo comparar aquele Scorsese (de 35 anos) com este aqui (já sessentão). E, como não?, lembrar da distância que separa o diretor de Last waltz (1978) do de Shine a light (2008), dois documentários sobre concertos de rock. No primeiro caso, ele filmou a despedida do The Band — um episódio que provocaria comoção independentemente da existência do filme. No segundo, preferiu encenar um show particular dos Rolling Stones — um momento cuidadosamente planejado para o filme (nas cenas finais, para acentuar esse tom de farsa, o diretor manipula a imagem com efeitos especiais).

Daí que Ilha do medo (4/5) me parece muito coerente com esse Scorsese de Shine a light (talvez este Shutter Island seja o grande filme dessa fase). O realismo é totalmente diluído num jogo de ilusões montado com as referências cinematográficas do diretor. Não é mais o caso de somar A (fantasia) e B (realismo), mas combinar uma infinidade de signos — filmes B, Hitchcock, surrealismo, horror, noir, romance — num redemoinho de imagens que acaba por derrubar o chão do espectador. Se não devemos confiar no narrador do filme, em quem acreditaremos? É esse tipo de incômodo — mais sutil, mais sofisticado — que Scorsese parece interessado em procurar.