Festival de Brasília
top 100 | Os filmes da minha vida (10)
Ei, amiguinhos, tudo pronto pra mais um episódio do ranking dos 100 filmes mais especiais da minha vida? Hoje serei breve porque este é um fim de semana movimentado, muita coisa está acontecendo, e não dá pra perder tempo com esse tipo de hobby.
Antes, um resuminho das regras do jogo (imaginando, por exemplo, que você tenha caído neste blog exatamente hoje, por falta de sorte): esta é uma lista com filmes que não são necessariamente os melhores, mas aqueles que, de alguma forma, marcaram a minha vida. Nos textinhos de cada post, tento explicar por que eles foram tão importantes pra mim.
Tentei achar semelhanças entre os filmes de hoje e não as encontrei. Se você quiser procurá-las, be my guest. Abraço.
082 | A Outra Face | Face/Off | John Woo | 1997
Na época da estreia, confesso que não dei muita bola pro filme: os elogios para a fase americana de John Woo me pareciam exagerados (eu havia detestado O Alvo), e eu era um menino que procurava realismo até no filme de ação mais surreal (como assim? Eles trocaram os rostos?). Alguns anos depois, quando passei a me interessar justamente pelos filmes mais delirantes, A Outra Face se tornou uma referência que usei para defender as liberdades criativas que eu identificava em fitas de gênero tidas como descartáveis. Hoje, o vejo simplesmente como um dos grandes filmes dos anos 90. As interpretações de Travolta e Cage (um imitando o outro, e com muito rigor!) são inesquecíveis.
081 | Deus e o Diabo na Terra do Sol | Glauber Rocha | 1964
Ainda me impressiono quando lembro que, apesar de ter me matriculado em quase todas as disciplinas do curso de cinema da Universidade de Brasília, nenhum professor exibiu Deus e o Diabo na Terra do Sol. Um lapso que, no fim das contas, se mostrou até muito positivo: assisti ao filme pela primeira vez numa sessão especial de encerramento do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, na tela grandalhona do Cine Brasília. Não sei se devo tratá-lo como o melhor filme de Glauber, desconfio que não seja o melhor brasileiro, mas ainda o vejo como o maior filme de aventura do diretor. E um que me parece criar o projeto de um país cinematográfico: em amarelo, verde, preto e branco. Uma sessão tão forte que, quando acenderam as luzes, eu não fazia mais a menor questão de saber os nomes dos vencedores daquele festival.
Festival de Brasília | Vencedores
Melhor filme (júri oficial): Filmefobia, de Kiko Goifman
Melhor filme (júri popular): À margem do lixo, de Evaldo Mocarzel
Diretor: Geraldo Sarno, Tudo isso me parece um sonho
Ator: Jean-Claude Bernadet, Filmefobia
Atriz e atriz coadjuvante: elenco feminino de Siri-Ará
Prêmio de crítica: Filmefobia
O restante da lista de vencedores está neste link aqui.
Ou seja: os filmes não entusiasmaram, mas os jurados (de longe o destaque da mostra) foram extremamente sensatos ao não se deixar levar pelo oba-oba do público e consagrar os longas mais “difíceis” do festival: Filmefobia, mais odiado que amado, ficou com cinco prêmios (filme, montagem, direção de arte, ator e crítica) e Tudo isso me parece um sonho levou direção e roteiro.
Favoritos da platéia, À margem do lixo e O milagre de Santa Luzia ficaram com, respectivamente, júri popular (e prêmio especial de júri) e trilha sonora.
Foi como se, aos 46 do segundo tempo, o júri tivesse decidido corrigir a rota desenhada pela comissão de seleção dos longas, que privilegiou documentários acadêmicos a criações mais arriscadas. Deram a vitória ao risco, à (tentativa de) invenção.
Para mim, não poderia ter sido melhor. Aliás, até eu, um dos poucos defensores de Filmefobia por aqui, fiquei surpreso com a coragem do júri. Em outras edições do festival, o longa de Goifman talvez teria de se contentar com um prêmio especial. Este ano, a premiação caiu como um manifesto a favor de um cinema que não se deixa amarrar pela função meramente informativa. Por obras um tantinho complexas, enfim.
A equipe do jornal onde trabalho decidiu entregar o Prêmio Saruê (para o melhor momento do festival) a Se nada mais der certo, de José Eduardo Belmonte. Também funcionou como uma alfinetada na seleção dos longas: foi a primeira vez que escolhemos premiar um filme ausente da mostra competitiva.
No mais, a insatisfação com o festival é generalizada e até Vladimir Carvalho, que participou do júri, escreveu um artigo sobre a crise do evento. Num trecho, ele protesta: “O Festival de Brasília envelheceu, esclerosou-se e precisa urgentemente de uma reforma ampla, geral e irrestrita”. No texto, o documentarista chega a criticar o excesso de documentários na competição. “O júri enfrentou sérios problemas porque não havia filmes para premiar nas categorias previstas no regulamento”, contou.
“Uma sombra escura desceu sobre este que já foi o maior e mais importante festival de cinema”, ele lamenta. Está coberto de razão.
Festival de Brasília | Encerramento e apostas
O júri do Festival de Brasília ficou trancado durante toda a madrugada para escolher os vencedores da edição. Fiquei sabendo que o encontro não resultou em bate-boca, mas numa negociação demorada. “E o festival nem estava tão complexo assim”, ouvi de um jurado. Posso imaginar a dificuldade.
Numa mostra em que os integrantes do júri provocaram mais interesse que os cineastas em competição (e aposto que Vladimir Carvalho, Murilo Salles, Sandra Corveloni, Sérgio Machado, Carlos Reichenbach e Maria Flor prefeririam ter passado a semana diante de filmes mais fortes), a vitória de Tudo isso me parece um sonho, de Geraldo Sarno, soa bastante provável. Não que me impressione tanto assim (ainda que deva conquistar o apoio apaixonado de muita gente boa), mas é o único na competição que apresenta a assinatura de um autor.
Os prêmios de atuação devem ir para Siri-Ará (o único longa que se assume totalmente como ficção) e Evaldo Mocarzel deve ficar com um prêmio de júri ou até de direção. O sanfoneiros de O milagre de Santa Luzia devem ter mobilizado o júri popular. Por mim, o Candango de melhor filme ficaria com Tudo isso me parece um sonho, um documentário em crise que desagradou o público (mais da metade do Cine abandonou a sala no decorrer das 2h30 de projeção) e encerrou a mostra num estranho anti-clímax.
Quer dizer: estranho não, já que o desfecho foi até coerente com o clima de desânimo que pairou sobre esta edição.
Tudo isso me parece um sonho | Geraldo Sarno | ««
Antes que o classifiquem como obra-prima, vale lembrar que Geraldo Sarno desenvolve há muito tempo (na surdina) o projeto de fazer documentários que desmontam e discutem o processo de criação artística. Nada mais oportuno que iluminar a obra do diretor num momento em que a metalinguagem contamina profundamente o gênero (vide Santiago e Jogo de cena).
Neste caderno de anotações para um filme sobre o general José Ignácio Abreu e Lima (um herói pernambucano esquecido, que lutou ao lado de Simon Bolívar e participou da Revolução Praieira), Sarno filma um ensaio sobre revoluções e movimentos fracassados. Não é à toa que o próprio filme pareça inacabado, indeciso, errado.
Faz sentido. Sem acesso a imagens do general, Sarno coloca em xeque a existência do próprio filme. Isso nas primeiras cenas. Depois decide encenar os momentos derradeiros do personagem, inverter a narrativa num making of, que logo se transforma num documentário-dentro-do-documentário sobre os canaviais pernambucanos. A colagem de idéias poderia se desdobrar infinitamente.
É uma premissa que qualquer cinéfilo ou crítico de cinema compraria de olhos fechados. Mas a experiência de assistir ao filme deixa a sensação de um passeio desgovernado por momentos de grande inspiração e declives que exigem paciência e boa vontade. Há seqüências que valem pelo festival inteiro, como aquela em que uma menina analisa em off a performance desastrosa de Sarno como cortador de cana. Só que aí esbarramos em entrevistas didáticas, intermináveis, e a coisa desanda.
O ritmo esparramado de Sarno – que leva os entrevistados para a rua e, nos melhores momentos, prefere filmar o mundo que se movimenta ao redor deles – dificulta o acesso à narrativa. Mas, num diálogo inusitado com Filmefobia, o formato do longa se constrói com o acúmulo de tentativas. Nem sempre faz justiça à ambição, mas é, antes de tudo, um filme de cinema – artigo em falta neste festival.
Festival de Brasília | À margem do lixo
À véspera da cerimônia de premiação, o Festival de Brasília criou uma controvérsia dentro da controvérsia. Primeiro, o motivo de preocupação era o predomínio de documentários entre os longas-metragens. Agora, o que se discute é algo mais trivial: a qualidade dos filmes selecionados. Se o festival queria valorizar o bom momento do gênero documental, o tiro parece ter saído pela culatra – a precariedade dos filmes nos faz sentir saudade de uma boa ficção.
Aliás, tudo o que quero saber neste exato momento é os nomes dos filmes de ficção que ficaram de fora da mostra competitiva. O híbrido Sagrado segredo, excluído da disputa, continua à frente da maior parte das produções exibidas nas sessões noturnas do Cine Brasília. E, por enquanto, o melhor filme do festival é disparado Se nada mais der certo, do José Eduardo Belmonte.
Entre os curtas-metragens, a situação também não é animadora. Mas a seleção resultou menos desastrosa que a do ano passado. Por enquanto, o documentário Minami em close-up, sobre a Boca do Lixo, é o favorito tanto da crítica quanto do público. É um filme divertido, com a compilação de cenas bizarras que se espera de um projeto com esse perfil, mas que parece o prólogo para um longa-metragem (ironicamente, um curta com personagens mais interessantes que todos os apresentados nos documentários da mostra até aqui).
À margem do lixo | Evaldo Mocarzel | «
Até quem esperava pouco de Mocarzel parece ter se decepcionado com esta terceira parte da tetralogia iniciada com os bons À margem da imagem e À margem do concreto. No primeiro longa da série, Mocarzel discutia o roubo da imagem de moradores de rua. O tema foi desdobrado como um filme-guerrilha no segundo episódio (o clímax era uma invasão de sem-teto, filmada como uma seqüência de fita de ação) e, agora, serve de palanque para as reivindicações dos catadores de lixo de São Paulo.
A proposta inicial do projeto continua intacta: lançar uma luz de dignidade sobre tipos marginalizados. Mas o diretor – que parecia ainda instigado pela reflexão sobre a imagem em Jardim Ângela – dá alguns passos para trás ao fazer política de uma forma automática, como quem sai a campo para apurar mais uma reportagem de jornal diário. A estrutura do longa alterna depoimentos sobre a vida e origem dos catadores com seqüências que, inspiradas em Vertov, dão um quê abstrato ao processo mecânico de reciclagem. Nesses momentos, o diretor se liberta de um formato desgastado e faz cinema. Nos outros, frustra pela forma segura e unidimensional como encara um tema (a indústria da reciclagem) que merecia um debate mais amplo.
Festival de Brasília | Ñande Guarani
Se a seleção de longas-metragens do Festival de Brasília já provocava reações de desânimo antes da exibição dos filmes, já podemos afirmar com alguma certeza que os pessimistas não estavam errados. Faltam dois concorrentes na mostra 35mm (um Evaldo Mocarzel e um Geraldo Sarno) e, por enquanto, o clima oscila entre a mais decadente edição de Gramado e uma morna seleção do Festival Internacional de Cinema Ambiental de Goiás Velho.
Isto é: um festival nas últimas (e, para mim, não é nada engraçado ou divertido chegar a essa conclusão). A insatisfação é geral: está nas conversas de jornalistas, no bate-papo da praça de alimentação e até no júri. Aliás, atiraram uma batata quente para os jurados: como eleger a melhor atriz numa seleção que não apresentou nenhum papel feminino de destaque (e nem vai apresentar, já que os próximos filmes são documentários)? Mistério.
Tudo indica que o melhor longa da programação será mesmo Se nada mais der certo, de José Eduardo Belmonte, que passa hoje na Mostra Brasília (seleção de filmes da cidade excluídos da competição). O curioso é que, ontem, a sessão paralela exibiu o novo longa de André Luiz Oliveira, Sagrado segredo – que, ainda que irregular, provoca mais interesse que todos os filmes escolhidos como atrações principais (com exceção de Filmefobia).
O que aconteceu com o Festival de Brasília? Provavelmente um curto-circuito entre a organização da mostra, que se recusa a rever as regras do evento, e uma postura conservadora da seleção de comissão de longas, que privilegiou documentários puramente informativos que ficariam escondidos na grade da TV Sesc.
Sagrado segredo | André Luiz Oliveira | «
O projeto mais pessoal do diretor de Meteorango Kid caminha em pelo menos três direções: é um documentário sobre a via sacra da cidade de Planaltina (um espetáculo comunitário que mobiliza uma multidão todos os anos), um ensaio sobre religiosidade e a encenação da crise existencial do cineasta, que não lança um longa desde Louco por cinema (vencedor do Festival de Brasília em 1994).
Com apenas 70 minutos de duração, o filme é (perdoem o trocadilho) uma via crúcis que acumula informações de uma forma errática, mas quase sempre provocativa (é um documentário sobre a encenação da via crúcis ou sobre Jesus Cristo?). Para um longa maldito que demorou nove anos para ser concluído, o resultado não frustra as expectativas de ninguém: é caótico e bastante precário, todo manco (e escorrega na pregação de uma religiosidade introspectiva). Mas trata-se pelo menos de uma experiência cinematográfica arriscada, inclassificável, que por isso não deve ser tratada apenas como a egotrip (ainda que seja um pouco isso) de um cineasta em transe.
Ñande Guarani (Nós Guarani) | André Luís da Cunha | «
Um documentário que cumpre um papel muito específico (foi encomendado pelo Ministério Público para registrar as condições de vida dos índios Guarani) com função exclusivamente informativa. Segue a cartilha do formato com austeridade, mas sem a fluência que se espera de uma produção que quer apenas transmitir uma série de dados e depoimentos ao espectador. A situação dos índios é mesmo grave – mas não me peçam para explicar por que a comissão de seleção decidiu incluir este relatório maçante na mostra competitiva de um festival de cinema.
Festival de Brasília | Siri-Ará
Em 1993, um ano depois da minha chegada à capital, eu já era um freqüentador do Festival de Brasília. Na época, o cinema brasileiro ainda cambaleava das pancadas recebidas pelo governo Collor, que fechou a Embrafilme e a mostra servia de reflexo melancólico para a crise. Não havia muitas filas para as sessões e os filmes selecionados eram verdadeiras peças de resistência: precários, esqueléticos, eles pareciam celebrar a própria sobrevivência.
Foi exatamente naquele ano que assisti ao meu primeiro Rosemberg Cariry: A saga do guerreiro alumioso. Duvido que algum leitor deste blog dê alguma importância ao diretor cearense. No meu caso, um laço afetivo obriga que eu lembre do cineasta sempre que penso naquele cinema em frangalhos do início dos anos 90. Ele retornaria ao festival com Corisco e Dadá e Lua Cambará, mas foi aquela alegre alegoria do Nordeste, colorida e orgulhosamente pobre, que deve ficar na minha memória como uma espécie de marca d’agua borrada para o estilo de Cariry e para minhas primeiras experiências no festival.
Não consigo descrever muito do longa-metragem, mas tenho absoluta certeza de que ele era – apesar dos excessos visuais, e taí um diretor apegado a excessos – uma viagem espontânea, fluente, por símbolos da cultura regional. Se me perguntarem, direi que gosto do filme, mesmo correndo o risco de estar redondamente enganado (e não pensamos poucas bobagens aos 14 anos de idade).
Por que o flashback? É que retornei àquela sessão de 1993 ontem à noite, na sessão do novo filme de Cariry, Siri-Ará. Não por uma boa razão, infelizmente. Logo no início da sessão, abandonei o setor de poltronas reservado à imprensa e decidi assistir ao filme nas últimas fileiras, junto com o público que fez filas e comprou ingressos. A experiência não foi nostálgica nem nada – foi só triste.
Se o público já parecia minguado para uma noite de sexta-feira, a debandada no início da sessão deixou várias poltronas vazias e um clima de abandono que me atirou instantaneamente a 1993. O filme não ajudou: Cariry parece ter perdido o entusiasmo, a vibração desajeitada que ainda vive na minha memória (talvez como uma forma de miragem, não sei). Parecia até o fim da festa.
Otimismo é bom e a gente gosta, mas taí a realidade difícil que corre entre as poltronas: este Festival de Brasília, com exatamente esses mesmos filmes que estão na seleção, poderia ter ocorrido em 1993. Num dos piores momentos do cinema brasileiro. É verdade: estamos sim diante de um dos festivais mais sofríveis de todos os tempos.
Parece até Gramado. Sério.
Ainda faltam três documentários e podemos sim tropeçar numa obra-prima. Mas as uma simples comparação com qualquer outra edição da mostra deixará o ano de 2008 em séria desvantagem. O júri terá um trabalhão para escolher os vencedores, e por enquanto não vimos nenhum filme com perfil de ganhador (e, goste ou não de Baixio das bestas, é um longa que resolve várias questões básicas de conceito ou narrativa que faltam a cada noite da competição).
Sejamos sinceros, pelo menos uma vez (e a tradição que cerca o festival abafa esse tipo de opinião direta): dá até desânimo acompanhar as sessões. Há esperanças de surpresas, mas acompanhar uma mostra à 1993 em pleno 2008 deixa a sensação incontornável de que há algo muito errado em cena. Não com o cinema brasileiro, que vai razoavelmente bem. Mas com a organização do evento cultural mais importante da cidade. Deu tilt?
Siri-Ará | Rosemberg Cariry | «
Em Siri-Ará, Cariry dá continuidade ao resgate histórico e folclórico do sertão nordestino com um delírio que, em muitos momentos, chega a lembrar os momentos mais abstratos de Júlio Bressane. Na trama, um homem velho que retorna da Europa adentra o sertão cearense acompanhado de uma índia – e perseguido por guerreiros do reisado, banda de pífanos e alucinações que remetem a um Nordeste lírico, imaginário. Para tecer essa visagem, o diretor nega o convencional: o filme corre com a liberdade de um fluxo de consciência.
É uma idéia que poderia ter soado fascinante, mas o que continua a incomodar em Cariry é a forma pouco imaginativa (eis a ironia da coisa), e até tosca, como ele compõe alegorias – e alegoria não é para qualquer um. Apesar da secura da fotografia, é um filme que quase nunca deslumbra (as fotos de divulgação provocam mais impacto que qualquer cena do longa) e se arrasta numa narrativa truncada, que penaliza o espectador com uma lição enfadonha de história popular brasileira desde os créditos iniciais. É superior a Lua Cambará – mas sente o peso de traduzir uma premissa delirante com os recursos limitados de uma produção de baixo orçamento.
Festival de Brasília | Filmefobia
Passou um furacão aqui na cidade: ele se chama Filmefobia. Todo Festival de Brasília tem um filme que monopiliza os debates e divide opiniões do público e da crítica. Geralmente esse papel é assumido por um Júlio Bressane ou um Cláudio Assis. Com o filme de Kiko Goifman acontece algo parecido: muitos detestam, outros respeitam, ninguém sai apático das sessões.
Ontem à noite houve debandada do público e (previsíveis) vaias nos créditos finais. Os dois curtas que o antecederam também foram vaiados – e, como eram filmes que não rezavam a ladainha das histórias com início, meio e fim, dá para desconfiar de uma certa má vontade da platéia (que provavelmente preferiria assistir a mais um clipe do Dominguinhos).
Muita gente reclamou das cenas de tortura (é um documentário fictício que submete fóbicos a verdadeiras máquinas do terror) e alguns não compraram o jogo de Goifman, acusado de ter feito um experimento excessivamente cerebral. Eu gostei. Do longa (que, se não é um grande filme, tem idéias para três ou quatro edições do festival) e dos curtas (No 27 e Cidade vazia são um tanto singelos, mas que privilegiam as sensações dos personagens às obrigações de um roteiro fechadinho).
Por falta de tempo (e para não repetir o trabalho de uma manhã inteira, tenham paciência), aí vai uma versão reduzida e sutilmente modificada do textinho sobre Filmefobia que escrevi para o jornal (a versão integral sai amanhã vocês sabem onde).
Filmefobia | Kiko Goifman | ««
O diretor Kiko Goifman chama Filmefobia de “filme torto”. No contexto do 41º Festival de Brasília, seria melhor defini-lo como um artefato explosivo. Atirado em meio à polêmica sobre o predomínio de documentários na seleção da mostra, o primeiro longa-metragem de ficção do cineasta é um ataque despudorado – e cerebral – às certezas dos que teimam em delimitar fronteiras entre gêneros e artes. Gostar ou não desta provocação é o de menos – difícil mesmo é classificar um experimento que bagunça signos do horror psicológico e da comédia e, sem obedecer a regras de conduta, se deixa envenenar pelas artes plásticas, pela fotografia e pelo ensaio acadêmico.
Que filme é este? Documentarista experiente, Kiko levou para o terreno da ficção a crise de um formato que ele questiona a cada novo projeto (em 33, o cineasta adotou clima noir para narrar a própria jornada em busca da mãe biológica). Registro inacabado desse processo, Filmefobia provoca incômodo ao disparar um jorro de possibilidades narrativas e de perguntas que ficarão sem respostas.
Metido num jogo intelectual, cabe ao espectador a decisão de participar do debate ou de, incrédulo, simplesmente abandonar a sala (ou zombar da “pretensão” da premissa, sobre o medo e o status da imagem no mundo contemporâneo). Mais complicado é adotar uma posição de passividade diante de uma sucessão de grotescas (e às vezes cômicas) cenas de tortura catalogadas com o distanciamento de um relatório científico.
Em um determinado momento da trama, Zé do Caixão (José Mojica Marins) é convidado para dar palpites na direção do falso documentário que confronta um grupo de fóbicos com bizarros objetos de terror. O público não sabe se deve rir ou se irritar como o “mau gosto” do diretor, que aplica a descarga de angústia num elenco de cobaias apavoradas por borboletas, palhaços, botões e ralos de banheiro.
A falta de traquejo de Kiko com a ficção responde, para o bem e para o mal, pela estranheza do que bate na tela – do tom onírico acoplado às máquinas delirantes construídas pela artista plástica Cris Bierrenbach à queda pelo trash e pela escatologia. No tiroteio de artimanhas, não são poucas as que resultam gratuitas e pueris (como a agulhada no olho de Jean-Claude, interpretado pelo crítico Jean-Claude Bernadet, justificada didaticamente logo em seguida). O perfil de Jean-Claude, que serve de eixo para a narrativa, é quase sabotado por um roteiro que privilegia as divagações filosóficas do anti-herói ao mergulho numa imaginação doentia.
Mais decisivo é notar como, sob o barulho intencionalmente provocado pelo show de pavor, Kiko vence pelo menos um desafio: filma o medo sem condenar o público a uma sessão de sadismo.
Festival de Brasília | O milagre de Santa Luzia
Sabemos que um filme é um filme, certo? Quase. No Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, um filme é principalmente um evento.
Impossível entender esta mostra sem levar em conta a atmosfera que cerca a exbição dos longas e curtas-metragens. Quando cineastas destacam a importância do público do festival, eles não estão fazendo campanha antecipada para votos do júri popular. Em tese, o termômetro da torcida não deveria contar na avaliação do que é exibido na tela do Cine Brasília. Mas, em muitos casos, soma pontos valiosos para o sucesso de um candidato aos prêmios principais.
Por aqui há o filme que “o público adorou”, o filme que “o público detestou” e o filme que “o público achou difícil”. Antes que alguém pergunte “que público é este?” (e não perguntem a mim, já que só vou conseguir rascunhar duas ou três simplificações bestas sobre o assunto), deixemos claro que, para o bem o para o mal, taí uma audiência acostumada a tomar partido.
Tudo isso para informar que, no primeiro dia de mostra competitiva, Brasília viu um desses filmes que contam com apoio irrestrito e apaixonado da platéia. O milagre de Santa Luzia é um documentário que não difere tanto daqueles que encontramos na programação de canais de tevês por assinatura. O que não seria exatamente um problema, mas pode parecer esdrúxulo que uma produção com ambições tão modestas (um filme-catálogo sobre as adaptações sofridas pela sanfona em diversas regiões do país) tenha sido tratada pelo público como uma espécie de Santo forte.
O fenômeno da supervalorização de filmes é comum em festivais de cinema brasileiro, e Brasília, para não fugir à regra, costuma receber os convidados com carinho muitas vezes exagerado. Sempre foi assim. Este ano, a história se repetiu logo no primeiro dia.
Aos que criticavam o excesso de documentários na competição (o que nem é uma questão a ser discutida ao pé da letra, já o importante é a qualidade dos filmes), a primeira sessão da mostra competitiva parece ter encerrado o debate. O público adorou. Aplaudiu seis vezes durante a projeção. Mas me pergunto: não haveria no filme questões mais interessantes que a da aprovação popular?
Quem freqüenta o festival há muitos anos notou que poucas foram as edições recentes que selecionaram um documentário tão convencional. Mas esses foram silenciados pelo coro da multidão.
O milagre de Santa Luzia | Sérgio Roizenblit | «
Entendo a comoção provocada por depoimentos de artistas como Patativa do Assaré e Sivuca (e as conversas são boas). Mas, para um documentário que pretende uma viagem musical pelo Brasil, me incomoda como o filme vê o país por uma janela tingida em cor-de-rosa.
Ao final da sessão, o diretor disse aos jornalistas que não aceita a idéia de filmar as mazelas do país. Quer mostrar um “Brasil maravilhoso”. É um projeto que pode soar duvidoso (nas andanças por cidades do Nordeste, será que o diretor só encontrou belezas?), mas que também parece honesto. Digamos que Roizenblit seja o Breno Silveira dos documentários – um diretor que, ao lançar um olhar ingênuo para a realidade, nos convence pela sinceridade do discurso.
Então tá: O milagre de Santa Luzia é um filme simples e sincero. Correto em todos os detalhes. Que não trai o tom otimista do diretor. O que vejo como um problema sério é como o documentário se contenta em preencher alguns “requisitos básicos” e acaba se esquivando dos principais desafios que ele próprio sugere. A tal “viagem musical” se resume a uma agenda de entrevistas com personagens famosos e/ou extravagantes. E a história da sanfona é apenas esboçada, sem muitos pormenores (talvez isso entediaria metade da platéia, mas trata-se de um filme sobre a sanfona, oras).
Tem tudo para se transformar no filme-xodó do Festival de Brasília. Calculado e cuidadosamente fotografado, eis o “Brasil real” que – incrivelmente – foi abraçado com entusiasmo pela cidade que consagrou Amarelo manga e O invasor. Isso eu juro que não entendo.
Festival de Brasília | Abertura
Parece até tradição: não existe Festival de Brasília de Cinema Brasileiro sem polêmica. Mas algo estranho parece ter acontecido na edição deste ano. Antes, os filmes provocavam controvérsia. Agora, o que se discute é a seleção dos filmes.
Dos seis longas concorrentes na mostra de 35mm, quatro são documentários – os outros dois são filmes de ficção com forte inspiração do gênero. Filmefobia, de Kiko Goifman, é definido como “o making of de um documentário fictício”. Há um filme sobre a sanfona no Brasil. E outro sobre os índios Guarani.
Há quem defenda a comissão de seleção com o argumento (meio simplório) de que os documentários estão em alta e o festival soube captar essa tendência. Há quem a ataque com a suspeita de que o critério de ineditismo aplicado pela organização da mostra acabou prejudicando o público, que assistirá à rebarba de outros festivais.
Dá para concordar com um e com outro. Mas o que ouço por aí é que pouca gente tem esperança de encontrar um grande filme no cardápio da mostra. A ausência de cineastas conhecidos (e relevantes) e de temas minimamente curiosos chega a provocar frio na espinha. Ano passado fizemos filas para ver os filmes de Julio Bressane, Carlos Reichenbach e José Eduardo Belmonte. E agora? O máximo que temos é Kiko Goifman, um (imprevisível) Geraldo Sarno e um filme-jogo com 11 opções de desfecho.
Quem acompanha este blog sabe que (por motivos profissionais, mas também por uma quase obsessão) minha vida pára durante o Festival de Brasília. Até terça que vem, este será meu eixo. Reconheço que os quatro leitores deste sitezinho metido a bacana não estão nem aí para o novo longa de Rosemberg Cariry. Mas um festival (e este festival especialmente) nunca é feito só de filmes. Há também as insanas batalhas travadas entre repórteres e cineastas, para ficarmos num exemplo infame de uma história que costuma se repetir ano a ano.
Torço para estar enganado. É óbvio que o rapaz aqui, que enfrentará maratonas de trabalho enlouquecedoras, preferiria passar o tempo diante de bons filmes (a vida é breve). Só que nem sempre tenho esse tipo de sorte – e prometo não usar o blog como muro de lamentações. Quer dizer: vou tentar, ok?
São Bernardo | Leon Hirszman | « « « «
Se podemos esperar o pior possível dos longas em competição, a boa notícia veio logo na abertura do festival. Foi uma das melhores em muitos anos. Desconfio até que tenha sido a melhor de que participei (e freqüento a mostra desde 1992). Exibido em cópia restaurada, São Bernardo ganhou a pompa que faz por merecer. É uma obra-prima, e espero que seja relançada também nos cinemas (o DVD chega às lojas esta semana).
O filme de Leon Hirszman, adaptação da obra de Graciliano Ramos, tem um quê premonitório. É uma alegoria para as trevas do capitalismo (muito antes de Sangue negro, o fazendeiro Paulo Honório é o self-made man bruto, mesquinho, condenado à solidão) que usa a narração em off do protagonista como um contrponto para as imagens de miséria e submissão provocadas por ele (muito antes de Tropa de elite, taí um filme cuja voz se opõe à do narrador).
No início da sessão, a filha de Leon, Maria Hirszman, disse que se tratava de um filme “atualíssimo”. Está coberta de razão. Mas não é um filme que se mantém vivo apenas como reflexo dos jogos de poder na vida brasileira (e, se cumprisse apenas esse requisito, já seria formidável). O uso de planos longos e silêncios como recursos para abafar e assombrar o discurso do protagonista é uma lição para a onda de filmes ‘de arte’ que abusam de imagens lentas, mas sem estofo.
Enfim: uma preciosidade que deve ser redescoberta urgentemente. E um filme de ficção que é uma aula para os documentários sobre a vida brasileira que vemos por aí.