Felicidade
(anteontem, saída do trabalho, 19h)
Eu: Aí aconteceu: era quase meia-noite, eu sozinho no carro, relâmpago gritando pra todo lado, a chuva começando a apertar. E aquela pista vazia, vazia, ninguém. Sabe qual? Saindo do Setor de Clubes, perto ali do Eixo Monumental, a ruazinha que todo mundo pegava quando o cinema ainda tava funcionando. A ruazinha sinistra que corta o matagal. Meti o pé no acelerador pra passar logo, pra chegar depressa a algum lugar, se eu pudesse teria fechado os olhos, aí aconteceu. Nem sei como descrever. Não vou dizer que foi uma sensação estranha, vai parecer óbvio. Foi como se… Foi como se eu levitasse, entende? Acho que a palavra é essa. Levitação. Eu tava suspenso num limbo: mato, chuva, neblina, o vidro embaçado, o carro vazio, aquele céu pesando.
Ela: Comigo acontece sempre. Quando acordo, abro a janela e é domingo e não tem ninguém na rua. Só uns três meninos jogando bola no estacionamento, sem som, nada. Pergunto se não é sonho. Daí desco do prédio e vejo as duas pessoas de sempre que saem todos os domingos pra andar de bicicleta. E é um filme mudo. A gente sabe que não é uma cidade fácil. Mas você começou dizendo que tava feliz, Tiago.
Eu: É. Mas dá pra notar, não dá? Segunda-feira e eu já querendo contar pra todo mundo, parando as pessoas no corredor, na porta do banheiro: ei, olha o que aconteceu comigo! E foi engraçado, foi amargo porque cada uma das pessoas me respondia com um ‘parabéns, Tiago!’ e depois completava com um ‘mas a vida não tá fácil, meu velho’. Todos, todos sofrendo por algum motivo. Separações, falta de dinheiro, falta de amor, doença, uma tristeza pesada, tudo numa onda cinza. Comecei a me sentir culpado por estar feliz, daí parei de contar, fiquei na minha. Acho que o clima ajudou: o tempo chuvoso, todo mundo automaticamente melancólico. Aí comecei a pensar na cidade.
Ela: Que talvez não tenha nada a ver com isso. Quando faz sol, pode ser a coisa mais linda.
Eu: É lindo. As nuvens branquinhas. Comprei até um livro sobre nuvens! Mas não sei. Deve existir alguma diferença sinistra nas pessoas que crescem tendo que cruzar essas ruas vazias, esses terrenos muito abertos, essas caminhadas solitárias até o ponto de ônibus, esses domingos silenciosos, e se acostumam a isso, se fecham nos carros, sempre sozinhas, todas as noites flutuando entre um lugar e outro, dirigindo e estacionando, sempre as mesmas paisagens, e a certeza de que as ruas vão crescer pros lados mas a vida não vai mudar.
Ela: Deve ser por isso que elas vão embora, Tiago.
Eu: Pode ser que sim.
Avi Buffalo | Avi Buffalo
(Um texto sobre o disco Avi Buffalo, da banda Avi Buffalo. Com anotações sobre Becoming a jackal, do Villagers)
(Não, não vou fazer isso sempre. Fiquem tranquilos)
Há muito tempo, talvez uns bons cinco anos, entrevistei o Todd Solondz. O cineasta. Vocês sabem quem. Ele é, de fato, um sujeito esquisito. Sim, um pouco como o Milhouse, amiguinho do Bart Simpson. E, mais importante do que isso, o homem parecia um tanto desconfortável.
Talvez estivesse incomodado com a cidade (Brasília é um susto, e é por isso que eu a amo), talvez com os jornalistas que o acossavam (gravadores em riste!), talvez com as perguntas enviesadas de uma repórter que o confundiu com o Larry Clark. Talvez, na hipótese mais curiosa, ele fosse daquele jeito mesmo. Suava ao responder às perguntas. Uns vinte minutos depois, já exausto, pediu uma garrafinha d’água e zarpou para o quarto do hotel.
Antes de sair, respondeu à inevitável questão sobre esse tal de cinema independente. Azar de quem perguntou. O tio geek estava farto, exausto, irritado, uma pilha. Daí que respondeu algo ríspido, quase uma cusparada (e traduzo o desabafo para o português, para poupar-lhe trabalho):
“Cinema independente? Bull-shit! Isso não existe! Isso nunca existiu! Isso é uma farsa! O único cineasta independente que eu conheço é o George Lucas, que tem grana pra filmar o que bem entende. Poupem-me desses clichês ridículos”, e foi (se não me falha a memória) isso.
Obviamente (e vocês, que são mais inteligentes do que eu, perceberam isso), trata-se de uma declaração tão inconsequente quanto muitos dos filmes do diretor de Felicidade. Também: uma declaração que, apesar de feia, tem um quê de verdade – como são os filmes do diretor de Felicidade.
O que acontece é que sempre penso nela, naquela declaração, quando ouço um disco “independente” que me parece tão cômodo quanto aquilo que esperamos de álbuns lançados por corporações do mal. É o Solondz no meu ouvido: rock independente? Bull-shit!
Mas, se é assim, se todo maniqueísmo é ilusão, por que os selos independentes ainda despertam em mim infinita simpatia? Mais do que isso: por que eles evocam uma certa aura de pureza, de espontaneidade, como se fossem gerenciados por um bando de hippies que vive dentro de cabanas e se alimenta de frutas e peixe assado? E eu não sou o sujeito mais ingênuo. Eu também perdi a inocência quando descobri que meu pai e minha mãe resolveram fazer por conta própria o que deveriam ter encomendado à cegonha. Então… Por quê?
Bem-vindos, amigos, ao mundo de Avi Buffalo, uma banda californiana. E do Villagers, um projeto irlandês. Ambos saudáveis e esguios. Ambos agradabilíssimos. Ambos confortavelmente independentes.
A estreia do Avi Buffalo saiu pela Sub Pop, talvez o maior selo indie dos Estados Unidos. O do Villagers, pela Domino Records, um dos maiores da Europa. Antes que alguém me recrimine, são dois belos discos. Você deveria tê-los no seu iPod.
Não existe, pelo menos não que eu saiba, um “som Sub Pop” ou um “som Domino Records”, mas, naturalmente, existe uma certa coerência na forma como os selos escolhem as bandas contratadas e lançam discos.
Sabemos, por exemplo, que a Sub Pop prefere álbuns concisos (quando lançaram o CSS, foram logo cortando as gorduras do disco) e, depois de um tufão chamado The Shins, procura bandas que sigam uma certa linha folky, dreamy, levemente psicodélicas: daí vieram Band of Horses, Fleet Foxes e, agora, Avi Buffalo.
E sabemos também que a Domino Records tem a capacidade de facilitar o acesso a outsiders: foi o que aconteceu com o Animal Collective em Merriweather Post Pavilion e com o Dirty Projectors em Bitte Orca. Outro dia mesmo, eles lançaram um disco elegantemente melodioso do Wild Beasts. O slogan do selo seria algo como “estranheza sim; mas com ternura”.
Becoming a jackal, do Villagers, parece ter sido formatado para nos fazer lembrar de Two dancers, do Wild Beasts. Da mesma forma como Avi Buffalo está coladinho ali em Oh, inverted world, do Shins, e no primeirão do Fleet Foxes.
A história, portanto, funcionaria mais ou menos assim: se você gostou de Wild Beasts, ouça Villagers. Se curtiu Shins, vá de Avi Buffalo. Mais ou menos quando a Universal Music, digamos, tenta nos empurrar a nova Rihanna, o novo Kanye West. Não muda muita coisa.
O interessante, nos dois casos, é como as bandas lutam (discretamente) contra as expectativas criadas pelos selos. Sim, já que o Villagers não é o novo Wild Beasts e o Avi Buffalo não veio ao mundo (felizmente) para clonar os genes do Shins.
Daí que, resumindo, são dois discos no meio do caminho. Entre pontos de partida problemáticos (tudo o que eles deveriam ter feito era seguir caminhos já planejados) e alguns belíssimos desvios de rota.
O do Avi Buffalo, por exemplo, aos poucos vai se transformando numa cria até muito convincente de Neil Young e Grateful Dead. Five little sluts é algo muito mais próximo de um Thurston Moore do que de um Band of Horses (é claro, amaciado pelos travesseiros da Sub Pop). E Avigdor Zahner-Isenberg, o prodígio de 18 anos que escreve essas canções, canta maltratando a faringe, sentindo cada nota.
O disco do Villagers – projeto do faz-tudo Conor J. O’Brien, de Dublin – parece mais adaptável à programação das rádios que veiculam as baladas de Damien Rice e Jamie Cullum. Como o Wild Beasts, Conor vai do mundano ao bizarro. A primeira faixa, I saw the dead, resume esse equilíbrio: o compositor nos convida para entrar num porão onde vivem crianças mortas. Na faixa seguinte, avisa que está vendendo a alma (e, aparentemente, somos nós os compradores).
É um personagem forte, esse homem atormentado, esse lone ranger, essa pobre alma assombrada por sabe-se lá quantos fantasmas.
Mas, tal como o Avi Buffalo, o que há de singular nessa sonoridade é arredondado por uma produção que deixa tudo nos devidos lugares. A produção vende o disco muito bem. Faixas como Home e Pieces justificam a indicação do disco ao Mercury Prize: são corretas e, se você estiver no clima, tocantes.
Por curiosidade, eu gostaria de ouvir um disco do Avi Buffalo que não passasse pelo crivo da Sub Pop. E um álbum do Villagers sem a grife da Domino Records. Outro dia mesmo, eu comentei por aqui que as pressões de grandes gravadoras às vezes estimulam os nossos ídolos a nos surpreender. Nesses dois casos, no entanto, eu queria muito menos: o que eles fariam se tivessem toda a liberdade do mundo?
Talvez nada muito melhor do que isso. Veja o George Lucas. Mas seria um desafio.
Avi Buffalo. Primeiro disco do Avi Buffalo. 10 faixas, com produção de Aaron Embry. Lançamento Sub Pop. 7/10
Becoming a jackal. Primeiro disco do Villagers. 11 faixas, com produção de Conor J. O’Brien e Tommy McLaughlin. Lançamento Domino Records. 7/10