Feist
Mixtape! | Outubro, o filme
A mixtape de outubro é a trilha sonora de um filme que eu não vi, que você não viu, que ninguém no mundo teve o prazer de ver – até porque ele não existe.
Se você lê o meu blog, sabe que outubro foi um mês em que escrevi muito sobre filmes e pouco sobre discos (ainda que eu tenha ouvido muitos discos, mas isso é conversa para outros posts). Por isso, resolvi criar uma mixtape que soasse como uma trilha de cinema. Sim, isso mesmo.
A compilação que vocês encontram a seguir (e espero sinceramente que vocês a ouçam porque, modéstia à parte, é a melhor de todos os tempos) reúne músicas de alguns dos meus filmes favoritos, faixas instrumentais, trechos de diálogos e, é claro (já que estamos falando de uma mixtape mensal mais ou menos igual às outras), faixas de discos recentes.
A trilha de um filmezinho imaginário, digamos.
Dedico este disquinho aos meus colegas de Mostra de São Paulo: Chico, Felipe (o Lahm), Michel, Diego, à minha namorada (Alê, e ela sabe que todas as mixtapes são um pouco pra ela), ao Leon Cakoff (que se foi neste mês) e a quem gosta dos filmes Drive, Mal dos trópicos, A viagem de Chihiro, Super-8, O poderoso chefão – Parte 2 e Os Goonies.
Difícil listar todas as músicas (e os artistas) que aparecem aqui (a lista de músicas está na caixa de comentários), mas tem Feist, Justice, James Blake, Radiohead (remixado por Jamie XX), The Caribbean, Jens Lekman, Desire e um monte de gente. São 16 faixas, mas que passam rapidinho (o CD dura 39 minutos; nem dói nem nada, garanto). E tem músicas das trilhas de Mal dos trópicos e de A viagem de Chihiro, atenção!
Como de costume, ele é embalado em dois formatos: você pode fazer o download do CD ou ouvi-lo aqui no site. Seria bacana se, após a audição, você deixasse um comentário sobre o disquinho. Mas, se o leitor for tímido, eu o compreenderei. Este é um mimo para cinéfilos e nós somos assim mesmo, uns bichos-do-mato.
Boa sessão.
Faça o download da mixtape de outubro.
Ou ouça logo aqui:
Vídeos do VodPod não estão mais disponíveis.
Compass | Jamie Lidell
De Jamie Lidell eu espero quase todo tipo de surpresas. Se o sujeito criasse um gênero e decidisse chamá-lo de neo-merengue ou de digisalsa, eu não me assustaria. Mas nada me preparou para um álbum caótico (na mais cruel das análises) e espontâneo (na mais generosa delas) como este Compass. É, numa descrição rápida, um fluxo de consciência em formato de música pop. Soa como uma novidade verdadeiramente inusitada – até para os parâmetros de um artista que sempre se portou como um menino irrequieto de três anos de idade.
Até hoje, Lidell era o nerd britânico, meticuloso, que controlava obsessivamente as próprias criações sonoras. Multiply, de 2005 (o primeiro álbum dele pelo selo Warp Records), ganhou logo o emblema “neo-soul”. Não era um disco conciso, mas todo ele se erguia sobre um conceito muito bem definido: o de contrabandear algumas heranças da black music (soul, funk) para o mundo pós-tudo das colagens eletrônicas. Uma operação quase matemática – para alguns, é um disco que soa frio, congelado em câmara de gás e bits.
Pode ser. Mas o admiro. Desde o início, os gostos de Lidell sempre me pareceram muito sinceros. Ele sabe que nunca será tratado como um autêntico soulman, mas não se contenta com o destino. Consigo imaginar os traumas sofridos por um adolescente de Cambridgeshire, branquelo, míope, que insistia em cantar como Otis Redding.
Mas, contra tudo e todos, no disco seguinte Jamie resolveu prestar uma homenagem até certo ponto sóbria, direta, afetuosa, aos ídolos setentistas: James Brown, Marvie Gaye, Otis e tantos outros. Fácil e polido como um antigo álbum da Motown, Jim (2008) assombrou o fã-clube. Era como se ele dissesse: vocês modernos que se virem com a tradição. Um disco agradabilíssimo, incompreendido, falsamente conservador (já que, de ponta a ponta, desafiava as regras da cartilha indie) e talhado para exibir a voz furiosamente negra de Jamie.
Só havia uma semelhança entre Jim e Multiply: eram discos apolíneos, arquitetados cuidadosamente, discos-experimentos, discos-conceito; mais para Prince e Beck, menos para James Brown e Ray Charles.
Em Compass, Jamie altera exatamente esse padrão: tenta criar um álbum menos planejado, mais “irracional”, mais “humano” (como se os outros não o fossem). As 14 canções foram escritas no período de um mês – e é exatamente assim que o disco soa.
A história do álbum começa quando Beck convidou Lidell para participar do projeto Record Club – uma reunião de amigos famosos cujo objetivo prático é regravar um grande álbum. Com Wilco e Feist, ele colaborou para a versão de Oar, de Alexander Spence. Entusiasmado com o clima da gravação, Jamie convidou a turma para gravar Compass. O disco, produzido por Chris Taylor (do Grizzly Bear), tem convidados como Beck, Feist, Gonzáles e Pat Sansone (do Wilco). Foi gravado em Los Angeles, Nova York e no Canadá.
Esse método mutante de criação está no DNA de Compass. Jamie tenta organizar a “grande bagunça que estava armazenada no laptop” (como ele próprio explica, no site oficial) e, sinceramente, nem sempre consegue. O que vale, no entanto, é o tamanho do empreendimento: desta vez, Jamie soa como o Prince dos anos 90, especificamente o de Chaos and disorder (aliás, ele bem que poderia ter roubado o nome daquele disquinho). Testar um ou outro conceito não é o suficiente: o rapaz quer tudo ao mesmo tempo, de preferência com um punhado de chantilly em cima.
Essa ânsia de multiplicar-se faz de Compass um disco exaustivo (de propósito, parece), confuso, enervante, looongo demais. Cada uma das faixas parece pertencer a a galáxia diferente. Completely exposed, a abertura, lembra um pouco a soul music quebradiça de Multiply, mas Your sweet boom, a seguinte, se aproxima das invencionices psicodélicas do Of Montreal. I wanna be your telephone é Prince dos mais alucinados, compactado nos ritmos mecânicos do Beck fase Modern guilt. The ring = blues-rock. E Gypsy blood é exatamente o que o nome indica: algo exótico.
Descrever cada uma das canções seria tão cansativo quanto ouvir o disco do início ao fim. Melhor pular para as combinações mais felizes: orientalismo chic + vocais emotivos + violões dedilhados por um aluno em fase de iniciação no instrumento + eletrônica hipnótica (a faixa-título, Compass), corinho sessentista + bateria endiabrada + funk rock à Red Hot Chili Peppers (You are waking), lamento doloridíssimo à Pearl Jam + arranjo letárgico (Big drift).
E (tirando algumas baladas até simplórias) a coisa fica ainda mais improvável.
O importante é que, a partir de agora, sabemos o seguinte: Jamie Lidell sabe fazer uma bagunça dos demônios. É corajoso. É um guerreiro. É um exemplo de vida. Faz o que dá na telha. E, em vez de criar um disco planejadinho para agradar aos críticos ranhetas que desprezaram Jim, dobrou o quarteirão e seguiu em frente. Bom para ele. Boa sorte! Agora, eu? Demorei um tempinho para perceber que essa bagunça não me satisfaz e, na maior parte do tempo, me deixa com saudades do músico obsessivo e perfeccionista (e às vezes frio, ok?) de Jim e Multiply. Talvez Compass seja o rascunho para uma nova fase – mais sangue, menos cérebro.
Talvez sim. E vou esperar essa primavera chegar. Por enquanto, o Jamie Lidell impulsivo de Compass me deixa mais frustrado do que desnorteado.
Quarto disco de Jamie Lidell. 14 faixas, com produção de Jamie Lidell e de Chris Taylor. Lançamento Warp Records. 6.5/10