Fantasia
Os filmes da minha vida (3)
Começa agora mais um capítulo do romance-épico-bíblico de nome Os 100 Filmes da Minha Vida. Como expliquei no início da saga (e, aos aventureiros de primeira viagem, recomendo a leitura do primeiro post da série, que contém as instruções para o joguinho), esta é uma lista tão pessoal que deveria ter sido escrita à mão e distribuída apenas aos amigos e parentes, para ser recitada no jantar de Natal após cinco taças de cidra. Não sei, de verdade, o que ela está fazendo aqui na world wide web, sério.
Mas, já que começamos esta egotrip mágica, sigamos até o fim desta louca estrada da vida (e nem adianta perguntar, meu velho: o ponto final ainda tá lá longe; mas garanto duas ou três paisagens inesperadas no meio do caminho). Ainda nem completamos os 10 primeiros longas-metragens da série e muita coisa aconteceu por aqui. Portanto, fique ligadinho que há muitas histórias & lembranças de onde vieram todas aquelas outras. E isso é uma promessa, ok?
096 | Café Lumière | Kôhî jikô | Hou Hsiao-hsien | 2003
Este ranking começou com o primeiro filme que vi numa sala de cinema (Os Trapalhões no Auto da Compadecida), mas não é um top tão saudosista quanto parece. Café Lumière, por exemplo, eu vi pela primeira vez há alguns meses, em janeiro de 2011, numa sessão sem muito charme (estava até vazia, era uma quinta à noite). Ao contrário de 80% dos filmes desta lista, lembro de praticamente tudo o que acontece neste aqui, em tantos detalhes que eu poderia escrever um texto longo sobre o tema. Mas isso não vem ao caso: Café Lumière está aqui porque resume o que mais me atrai no cinema hoje, aqui-agora: filmes que criam ambientes singulares, misteriosos (mas às vezes tão mundanos, como acontece aqui), onde nós, os espectadores, podemos viver por um certo período de tempo. Outros filmes de Hsiao-hsien também desenham territórios muito específicos (que existem independentemente das vontades, das expectativas do público), mas este aqui é, para mim, irresistível: e a cena final tem sim algo de sublime, de sobrenatural, que mesmo um cinéfilo-velho-de-guerra como eu não consegue descrever.
095 | A história sem fim | The neverending story | Wolfgang Petersen | 1984
E aqui voltamos à minha neverending infância: tudo o que lembro sobre o filme são as cenas com o cachorro voador (olhe a foto aí em cima, que não me deixa mentir), mas tenho quase certeza de que foi ele que formou o meu gosto pelo cinema de fantasia, pela fabulação sem limites. Talvez a minha ligação com esse filme, que eu revi tantas vezes (e com alguns do Tim Burton, Joe Dante, Wes Craven), explique minha má vontade com as “fantasias realistas” de um Christopher Nolan, por exemplo. Porque A história sem fim não quer explicar nada: é um mil-folhas de mentiras, delírios, recheado de criaturas estranhas que acabaram se confundindo às lembranças da minha infância, aos sonhos que tive naquela época. Era um período em que o cinema ainda me parecia um passe de mágica, e em que os filmes me iludiam a sério – como se produzidos por uma trupe de ilusionistas, e não por técnicos de estúdios e especialistas em efeitos especiais. A época da inocência, digamos.
Drops | Mostra de São Paulo (2)

!!! O estranho caso de Angélica | Manoel de Oliveira | 4/5 | Os trechos mais fantasmagóricos talvez surpreendam os devotos de Oliveira (efeitos especiais!), enquanto que os mais verborrágicos e teatrais talvez entendiem o fã de filmes de fantasia. É, sim, um filme estranho, que nos obriga a lembrar de Méliès e Hitchcock (e até de Apichatpong Weerasethakul, outro que sai à procura de imagens mágicas) – e, nos melhores momentos, cria um túnel misterioso que nos leva a uma época distante, quando os filmes encenavam os delírios humanos de uma forma inocente, com truques singelos. Aos 101 anos, Manoel de Oliveira retorna a essa infância do cinema. Não podemos fazer muito além de acompanhá-lo, entre o espanto e a admiração.
!!! O mágico | L’Illusionniste | Sylvain Chomet | 4/5 | A animação do diretor de As bicicletas de Belleville poderia ter se contentado em ser apenas uma homenagem belíssima a Jacques Tati (o longa adapta um roteiro do escrito pelo mestre), mas vai um pouco além disso ao rever temas de filmes como Meu tio e Playtime (sobretudo as dificuldades de adaptação a um mundo moderno impessoal, frívolo; o personagem principal, um mágico à moda antiga, é uma réplica de Hulot) com um clima chuvoso, desencantado. Mais do que se inspirar em Tati, Chomet sente saudade.
Nostalgia da luz | Nostalgia de la luz | Patricio Guzmán | 3/5 | Num doc em primeira pessoa, que talvez queira nos lembrar algo de Chris Marker e Varda, Guzmán cria uma relação até curiosa entre os astrônomos que investigam os segredos do universo no Atacama e as mulheres que, naquele mesmo deserto, procuram os vestígios dos desaparecidos políticos da ditadura militar chilena. Mas, apesar da afetuosidade do projeto e da obsessão do diretor pelo tema (e desconte aí: eu sempre me rendo a esses discursos emotivos), a ideia me parece um tanto curta e forçada – e, no mais, uma desculpa para um desfecho supostamente poético, mas óbvio.
Cirkus Columbia | Danis Tanovic | 2/5 | O diretor de Terra de ninguém retorna ao lar… talvez cedo demais. Muito pouco me interessa neste folhetim sobre o cotidiano numa pequena aldeia bósnia à véspera da guerra. Pais, filhos, políticas, cor local etc. A última cena deveria dar um tom de gravidade ao filme, mas só reforça o esqueminha convencional que Tanovic nos 110 minutos anteriores.
Não me deixe jamais | Never let me go | Mark Romanek | 3/5 | Uma love story antiquada como aquelas que encontramos em adaptações de Jane Austen, mas encenada num contexto de ficção científica (nesta realidade alternativa, a clonagem de humanos é praticada diariamente). Não é com ingenuidade, no entanto, que Mark Romanek adota o visual rococó de uma típica fita de época: ele faz com que o espectador se sinta confortável o suficiente para entender o desconforto de personagens, que também ocultam um terrível mal-estar sob a aparência de normalidade. Quem adapta o romance de Kazuo Ishiguro é outro escritor: Alex Garland.
2 ou 3 parágrafos | O último mestre do ar
Não estou entre os devotos de M. Night Shyamalan e, portanto, vocês serão poupados do parágrafo em que tento argumentar apaixonadamente que existe sim um grande cineasta no comando deste O último mestre do ar (não acredito que exista). Aceito ser chamado de tolo e superficial (e cego, é claro), mas tudo o que encontrei foi um épico de fantasia aborrecido que cumpre uma série de procedimentos obrigatórios desse tipo de épico de fantasia aborrecido. Nem paraíso, nem inferno: chame de purgatório.
Mais curioso do que o filme em si é notar que esta superprodução poderia ter sido SIM a obra-prima de Shyamalan. Em tese, ela acumula uma série de elementos que são caríssimos ao cineasta – o amor pela fabulação, o olhar infantil, as imagens com um quê metafísico, a espiritualidade etc. O que me impressiona é a dificuldade enorme que o diretor encontra para garantir algum sentido, alguma força vital, alguma forma a um ambiente que parece (novamente: em tese) tão próximo de tudo o que ele criou até aqui. O último mestre do ar (2/5) teria como transcender a pecha de subproduto frívolo (e muita gente ainda torce para que o filme consiga! e muita gente vai encontrar um filme cheio de graça!), mas se sai tão corriqueiro quanto um episódio de As crônicas de Nárnia.
A composição visual, para começo de conversa, me parece profundamente entediante, a começar pelo uso das cores: o contraste entre ciano e laranja (manipulados digitalmente, das paisagens aos rostos dos atores) chega a lembrar os truques mais grosseiros de Michael Bay. Os efeitos de CGI, ainda que até razoáveis (o trailer sugeria um espetáculo muito mais tosco), também deixam a impressão de que saíram da mesma máquina que produz centenas de genéricos. A narrativa se arrasta. Difícil explicar o que acontece: Shyalaman parece estar presente em todos os temas do filme, mas, ao mesmo tempo, se ausenta, se apaga de uma forma que ainda não consigo compreender. Em alguns momentos, deixa o trabalho todo para um elenco meio perplexo, estático (à exceção do protagonista, que tem algum carisma), e perde o fio de uma trama bolorenta, que tenta condensar em tempo recorde os episódios de um desenho animado que parece desinteressar até ao próprio diretor. Quando a cena final abre caminho para uma continuação, soa como ameaça. Entendo as suas obsessões, Shyamalan; sei que, em tese, você é um cineasta brilhante. Mas (e a culpa é minha, não sua) taí um mundo de fantasia para onde não faço a menor questão de voltar.
2 ou 3 parágrafos | A hora do pesadelo
Você já notou que, nos filmes de Freddy Krueger, os personagens cochilam nos momentos menos apropriados? Este remake, equivocado em quase tudo, pelo menos recupera o guilty pleasure. A menina está caminhando no corredor do colégio e, ops!, dá uma apagada. O rapazinho, no meio do exercício de natação, tira uma soneca. O fulano está prestes a morder o sanduíche quando, susto!, prega os olhos e é retalhado pelas navalhas do malvadão. Isso é o que eu chamo de fantasia mórbida. E fantasia (com um elemento perverso, sempre) é o ramo de Wes Craven, o pai da besta.
Uma pena, por isso, que este novo A hora do pesadelo (1.5/5) tenha tomado um caminho muito mais ordinário, muito menos fantasioso: trata-se de uma espécie de Freddy begins, com explicações didáticas (e, até certo ponto, sóbrias) para a fúria do vilão. Freddy era um jardineiro outsider que, acusado de assediar crianças, é queimado vivo por pais preocupadíssimos que decidem manter o crime em segredo e… Sonolento, ahn? Eu não dormiria no meio de uma prova de natação, mas admito que cochilei duas ou três vezes durante a projeção. Não é um filme tecnicamente precário (Samuel Bayer, o diretor, usa os truques e filtros que aprendeu em clipes do Garbage e do Nirvana). Não é um filme que tenha me insultado. É apenas um porre de filme.
Eu, que assisti a todas as aventuras de Freddy (até o infame Freddy vs. Jason, que é pelo menos engraçadinho), tenho o direito à conclusão: é o pior da série. De longe. O que mais se leva a sério. O menos malicioso. O unidimensional. O menos imaginativo. O mais polido. O automático. E aquele que vai agradar a quem curte elogiar a “eficiência técnica” cheirosinha do remake de O massacre da serra elétrica. My ass. Esse nunca foi o espírito da coisa. Entre os produtores, é claro, lá está Michael Bay. Quando o mundo acabar de uma forma muito espetacular e monótona, coloquem a culpa nele, ok?
2 ou 3 parágrafos | A caixa
Notem o quão interessante seria a experiência (e seria bem simples, nem tomaria muito tempo): você vai a uma sala de cinema que exibe A caixa (3/5), espera a sessão terminar e toma anotações sobre as reações dos espectadores. Nem será necessário submetê-los a questionários. Observe-os. Minha hipótese: a maior parte das cobaias mostrará sinais febris de frustração e, nos casos mais extremos, de fúria. Aposto que um engraçadinho vai ameaçar pedir de volta o dinheiro do ingresso.
É que o filme de Richard Kelly (o diretor de Donnie Darko e Southland tales) rejeita a principal regra para um relacionamento saudável com o público menos aventureiro (infelizmente, eles estão em maioria): cria uma trama de mistério que, após os créditos finais, permanece misteriosa. Um turbilhão de perguntas sem respostas. Quando Onde os fracos não têm vez entrou em cartaz, lembro que ouvi um comentário que ia mais ou menos assim: “Paguei para ver um filme que nem os próprios diretores souberam como terminar.” Oh, vida!
Por isso, muita gente vai desdenhar o que este filme tem de melhor. Que não é a trama (um episódio alongado de Além da imaginação, sustentado por um dilema moral que daria arrepios em M. Night Shyamalan), mas a euforia camicase de Kelly, que transforma uma corretinha fita de época num sonho louco, lynchiano. O sujeito é destemido (e narcisista à beça), dirige sem cinto de segurança, e comete a sandice de oscilar entre a ficção científica mais juvenil (portais reluzentes de CGI!), o thriller de teorias conspiratórias (a Nasa tem culpa no cartório!) e a tortura filmada (Jogos mortais!). Sem medo do ridículo (e a coisa fica muito ridícula, prepare-se). O importante é que o espectador não sabe onde está se metendo. E isso é bom, não é? Deveria ser bom? Se você acha que não, recomendo uma maratona de Fringe. Só de castigo.