Experimentalismo
Public strain | Women
Moro perto de uma livraria enorme. Uma megastore, dessas que vendem discos, bonecos de plástico, revistas, sanduíches de salmão, jornais, DVDs, cartões de boas festas, milkshakes e, antes que eu me esqueça, livros.
A loja é uma das principais atrações (talvez a principal) do shopping que abriram aqui na região. Nos fins de semana, está quase sempre lotada. As filas dão voltas entre as bancadas de madeira. É uma imagem que me agrada: muita gente comprando muitos livros. Sempre me pergunto se eles, esses livros, são lidos. Infelizmente, aposto que não.
Se todos os compradores de livros lessem os livros que compram, as pessoas seriam mais interessantes.
E não quero dar uma de sabichão: eu mesmo fico arquitetando pilhas e mais pilhas de calhamaços nos cantos da sala, na mesa de centro, no deck da tevê. Tenho livros que escoram a minha cama e que caem na minha testa enquanto durmo. E são obras às vezes abandonadas no primeiro capítulo, lidas na pressa, devoradas pela metade ou simplesmente pobres almas ainda intactas, virgens.
As pessoas compram livros que não leem. Compram pensando que, no futuro, talvez consigam lê-los. Compram por comprar. Compram pela capa. Compram para matarem a fome de comprar. Não sei. O que interessa (e chegaremos logo ao disco do Women, prometo) é que esse tipo de amor estranho, interrompido, tão instantâneo quanto passageiro, não consumado, era raro na nossa relação com os discos. Sublinho: era.
Quando compramos um CD, quase sempre o ouvimos na íntegra, mesmo que sem muita cuidado. Ouvimos quando estamos dirigindo, ouvimos na festa ou enquanto penduramos roupas no varal. Lembro que, antes da internet, eu comprava um CD e ficava horas, dias, destrinchando o conteúdo da bolachinha prateada. Era uma análise quase microscópica, quase obsessiva. Como se eu decidisse ler A metamorfose, do Kafka, 20 vezes numa tarde.
Acredito que, hoje, essa história toda mudou. Os discos se tornaram tão virtuais (e literalmente virtuais, como diz o dicionário: existem apenas em potência) quanto os livros. Talvez ainda mais, já que pescamos na web (essa megastore) dezenas, centenas, todos, absolutamente todos os que queremos ouvir, e às vezes os abandonamos pela metade, ou sequer nos damos o trabalho. Há casos em que nos esquecemos deles. Há casos em que escolhemos um disco a esmo e apostamos nele, meio que ao acaso. Confiamos na sorte.
Não sei se é assim que acontece com você. Mas é o que acontece comigo. Em 2010, ouvi 78 discos. Mas nem imagino em quantos esbarrei sem dar muita importância. Tenho certeza de que, em 1994, ouvi cerca de 10% dessa quantidade de discos, mas prestei muito mais atenção a cada um deles.
E isso é bom ou ruim? Melhoramos ou pioramos? Não sei. Só sei que a tecnologia alterou a nossa relação com a música (e principalmente na nossa, ouvintes compulsivos) e esse desejo de urgência – queremos ser conquistados pela capa, pelos primeiros parágrafos, no máximo pelo primeiro capítulo – também deve ter modificado a forma como se cria música pop. Se alguém decidir escrever uma dissertação sobre o tema, eu gostaria de lê-la.
E o Women é um bom pretexto para essa conversa toda porque me parece uma cria e um ruído desse ambiente pós-web. O primeiro disco, de 2008, tinha apenas 29 minutos. E a sonoridade dos quarto canadenses, abrasiva, parecia compactada ao máximo, zipada em minicanções (ou miniprovocações, minitorrentes noise) de um, dois minutos de duração. É um disco que provoca impacto.
Lembro de ter lido algumas discussões em meios literários sobre como as narrativas curtas, em miniatura, espelham a vida alucinada que levamos nas cidades. A estreia do quarteto era um bom argumento a favor dessa ideia.
Não foi, no entanto, um disco que me interessou a longo prazo. Ouvi algumas vezes e guardei. Depois esqueci dele. Por isso comecei ouvindo pelas beiradas este novo álbum da banda, que só vai ser lançado em setembro. Tropecei nele três ou quatro vezes, enquanto ia digerindo outros discos no meu iPod. E sempre que isso acontecia, sempre que eu tropeçava nele, era como se eu tivesse batido o dedão do pé num pedregulho. O Women pode ser ainda uma banda imatura, mas sabe nos impressionar com um som cortante, que nos arranha.
Então nem preciso alertar: Public strain é um disco “difícil”, que amplia as narrativas curtas da estreia da banda e fica oscilando entre as guitarras agudíssimas e dissonantes de um Sonic Youth (fase Murray Street, Sonic nurse) e algumas paisagens sonoras que lembram drone, ambient e outras pirações que irritam muita gente. E é um álbum que parece agonizar. As guitarras se desencontram a todo momento, soam como se desafinadas, estridentes, e criam uma atmosfera rarefeita de desespero. Um deserto vermelho.
O som áspero nos pega de imediato. Mas este é um disco que se beneficia do ouvinte mais atento, aquele que compra o livro e vai corajosamente até o fim.
Public strain (tenso já no título) só começa a soar minimamente palatável lá pela quarta audição, quando começamos a notar a lava de melodia que corre abaixo das camadas de pedra. É aí que se descobre, por exemplo, o dedilhado quase doce de Locust Valley (que tem até refrão, procure lá), o mantra metálico de Heat distraction, o torpor tristíssimo de Venice lockjaw, a linha de baixo quase soul de Narrow with the hall (bem de perto, lembra My girl ou não lembra?), etc.
Fui deixando este disco aparecer de vez em quando e, hoje, ele é papel de parede para os meus dias de apreensão, de desconforto. São muitos esses momentos, daí a necessidade que sinto de retornar ao primeiro parágrafo deste caderno de rasuras e ouvir tudo novamente, repetidamente, como se essas canções quebradiças soubessem tudo o que estou vivendo.
Eu as recomendo, portanto. Com cautela, porém. Caso você as abandone pela metade ou as rejeite por antecipação, eu entenderei. Mas vá lá: guarde-as para um outro dia. Há livros no meu quarto, livros que não li, que provavelmente me pregariam bons sustos, que provavelmente me entenderiam. São feras que dormem, à espera do ataque.
Segundo disco do Women. 11 faixas, com produção de Chad VanGaalen. Lançamento Jagjaguwar Records. 8/10
Tomorrow, in a year | The Knife
Quando o The Knife anunciou que escreveria uma ópera inspirada no livro A origem das espécies (1859), de Charles Darwin, muitos se apressaram a enxergar ali uma anomalia pop. Mas vamos lá, gente! Pelo menos para mim, sempre pareceu óbvio que as descrições do naturalista britânico acabariam engolidas por um disco do Flaming Lips. A diversidade biológica! A evolução! A árvore da vida! A viagem do HMS Beagle! Os tentilhões de Galápagos!
No mundo pop, os mais destemidos também sobrevivem. Daí que o duo sueco teve a ideia primeiro e, numa colaboração com Mt. Sims e Planningtorock, escreveu as 15 faixas que compõem o álbum duplo Tomorrow, in a year, cujo repertório foi criado inicialmente para uma performance encenada pelo grupo dinamarquês Hotel Pro Forma. Depois de uma pesquisa exaustiva sobre a vida e a obra de Darwin, o Knife escreveu a primeira ópera da carreira.
No site da banda, Olof Dreijer comenta que não havia assistido a uma única ópera e desconhecia o significado da palavra libretto. Mas, num intensivão por conta própria, aprendeu tudo sobre os “gestos dramáticos” e, depois de um ano, finalmente conseguiu se emocionar com a interpretação de uma soprano. Talvez o grupo Hotel Pro Forma estivesse procurando algo do gênero: uma ópera desajeitada, virgem, naturalmente experimental, mais ou menos o que Lars von Trier buscava quando escalou a Björk para escrever as canções do musical Dançando no escuro.
É claro que, em casos como esses, só a experiência completa só é possível para quem assiste ao resultado da combinação entre música e performance. Em disco, Tomorrow, in a year soa lacunar. Quando ouvimos o som de cachoeiras e passarinhos piando, tudo o que podemos fazer é imaginar alguma cachoeira ou alguns passarinhos piando. Azar dos ouvintes pouco criativos. Sorte de quem comprou ingressos para as apresentações de Estocolmo, encerradas anteontem.
Talvez melancólico com o fim da jornada, o The Knife entrou em estúdio e resolveu registrar essa ópera-minimal (!) em CD. O resultado, previsivelmente, é o disco mais (espere um momento enquanto busco uma palavra gentil) desafiador desde Embryonic. Um projeto experimental com alguns respiros pop.
Para provar que não fujo dos desafios, ouvi o disco da forma como o The Knife recomenda no site da banda: com headphones e máxima concentração. É uma viagem insólita e entediante, adianto, mas que faz justiça ao caráter exploratório do conceito. Fica evidente que o The Knife se embrenhou por territórios desconhecidos (há trechos de passarinhos ou cachoeiras que foram gravados na Amazônia!) e aprendeu algo sobre ópera. Várias das canções são interpretados com pompa e agudos agudíssimos. As letras traduzem o espírito de descoberta e espanto que, sim, está no coração de A origem das espécies.
Ouvi o álbum de uma vez só, como se não houvesse como comprar ingressos para outras sessões, e saí do espetáculo com a impressão de que fui recompensado pelo esforço. A primeira metade do disco, talvez de propósito, soa quase impenetrável: ruídos minimalistas são sobrepostos a som ambiente e colorido new age, distorcidos por sopranos e valorizados por um registro curioso da natureza (há uma faixa que flagra um passarinho aprendendo a cantar, em diferentes estágios).
O segundo CD, mais amistoso, inclui uma canção arejada que poderia entrar no próximo álbum pop do The Knife, Colouring of pigeons, e mais divagações sobre biologia, sementes e as relações entre Darwin e a filha Anne.
Se o objetivo era captar a dimensão quase asfixiante da obra monumental de Darwin, o The Knife chegou perto. Tomorrow, in a year é um gigante construído com pedacinhos delicados. Apresenta, para os mais pacientes, um jeito inusitado de olhar o mundo, como se pela primeira vez. Não é um disco que eu ouviria várias vezes (talvez duas faixas e olhe lá), mas aposto que ele não quer ser ouvido várias vezes. Não é um álbum pop. Depois do primeiro contato, a tendência é que a sensação de familiaridade dilua a aura de mistério que cerca esse sonho de Darwin.
Então, e falo sério, siga meu exemplo: não ouça novamente. Desista. Fique com o primeiro gosto. E, exaurido, contente-se com as boas e más lembranças dessa estranha, impossível expedição.
Ópera escrita pelo The Knife, com Mt. Sims e Planningtorock. 15 faixas. Lançamento Rabid Records. Qualquer nota/10 (mentira, é 6).