Experiência

Nine types of light | TV on the Radio

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Passei os últimos três dias lendo o livro novo do Dave Eggers, que se chama Zeitoun e conta a história real de um sobrevivente do Katrina, furacão que afogou Nova Orleans em 2005.

Para abrir a reportagem, Eggers usa um trecho de A estrada, de Cormac McCarthy. Boa escolha, já que a trama retrata um mundo que, aos poucos, acaba.

Ainda estou na página 212. O livro tem quase 400. Por enquanto, o personagem principal não virou o símbolo de resistência e perseverança, o herói de Homero que, creio eu, será eleito monumento para a luta e a tragédia de uma comunidade. O sírio Abdulrahman Zeitoun é, ainda, apenas um mestre de obras teimoso, forte, carismático, generoso… e comum.

O início do livro, por isso mesmo, é o diário de um trabalhador, pai de família, que tem uma história de vida talvez um pouco mais tocante (não muito) que a minha ou a sua. Quando pequeno, ele gostava de pescar no litoral sírio, acompanhado dos irmãos. Depois conheceu o planeta à bordo de um navio. Aportou nos Estados Unidos, abriu uma empresa de reparos, casou, cresceu.

A história edificante de Zeitoun começa quando a borda do Katrina esbarra na casa onde mora, no dia 28 de agosto. É uma tempestade violenta, mas não tão atípica. O desastre seguinte, quase silencioso, se mostra mais dramático: após o rompimento dos diques, a cidade amanhece submersa num líquido escuro, lamacento.

Dias depois, grupos de bandidos começam a saquear lojas, estuprar crianças, matar. Os jornais comparam Nova Orleans ao Velho Oeste. O prefeito ordena que os moradores façam as malas e saiam de lá. É quando Zeitoun desaparece.

Aqui chegamos ao meio do livro, que me parece o melhor de Eggers (gosto muito do primeiro que ele escreveu, Uma comovente obra de espantoso talento). O aspecto fascinante, para mim, está em como o escritor descreve com total simplicidade as atividades corriqueiras de um homem. Zeitoun trabalha, ama, encontra amigos, lembra dos irmãos, faz preces, toma café com as crianças.

Não é um deus. Pelo menos não até a metade do livro.

Me peguei devorando os parágrafos enquanto ouvia o disco novo do TV on the Radio, e taí uma experiência que recomendo a vocês. E não só porque algumas das músicas, como Keep your heart, são love songs mundanas para a véspera do apocalipse. “Mesmo se tudo desmoronar”, avisa Tunde Adebimpe, “eu vou preservar seu coração”.

No livro, o personagem se transforma gradativamente, sem que perceba, num ícone, numa referência associada a um grande episódio histórico. O TV on the Radio, nosso herói, parece caminhar no sentido oposto: uma banda que, depois de ter explorado galáxias, retorna lentamente ao solo, à vizinhança.

Parece absurdo comparar livro e banda, mas pense de novo: se há um personagem recorrente nos discos do TV on the Radio, ele é o homem comum confrontado com um mundo em crise. A banda sempre observou temas urgentes por uma perspectiva íntima. Até Dear science (um disco cujo estilo foi descrito como “rock cósmico”) fecha com uma música chamada Lover’s day.

Desde Ok calculator, o primeiro disco (de 2002), o grupo tenta conciliar o desejo quase científico de experimentar sons (e aí entra Dave Sitek, o “cérebro” das invencionices da banda) com a vontade de interpretar o início do século 21. É tanta ambição que, não por acaso, algumas das músicas soam como objetos alienígenas: perfeitos, polidos, mas sem fragilidades humanas.

Talvez essa mania de perfeição perturbe a banda, já que Nine types of light é o álbum mais mundano que eles gravaram. Nas três primeiras faixas, soa como um disco de amor em primeira pessoa, macio e palpitante (Keep your heart e You são postcards românticos). A sonoridade testada em discos anteriores – que combina funk, eletrônica, R&B, rock e soul music – aqui aparece com bordas arredondadas, com uma luminosidade pop que nos lembra o projeto mais recente de Sitek, Maximum Balloon.

Imagino o que teria acontecido se a banda fosse corajosa o suficiente para expandir o tom dessas três primeiras faixas ao restante do disco. Não é bem o que acontece. Há outras três faixas que apontam para essa nova fase (Will do, Killer crane e Forgotten). Mas, para cada passo adiante, o TV on the Radio acende uma lanterna para o passado: o funk eletrificado, em mil cores, agressivo de No future shock, New cannonball run, Repetition e Caffeinated consciousness remete aos dois discos anteriores e, apesar de vibrante, desvirtuam o álbum, amenizam o choque.

Ainda assim, mesmo nos momentos de deja vu, Nine types of light nos mostra uma grande banda (uma das maiores que temos) com total domínio da sonoridade que encontrou para si. A coesão é tanta que fica difícil identificar quem faz o que, ainda que Kyp Malone e Jaleel Bunton se façam notar. Mas o desafio de “humanizar” o estilo e os temas preferidos do TV on the Radio é vencido apenas até certo ponto.

E isso acontece porque, ao contrário do livro de Eggers, o que percebo é um grupo de super-heróis num duro processo de transformação em homens comuns.

A naturalidade do livro falta ao disco — é como se o TV on the Radio se esforçasse para abandonar o peso de responsabilidades quase sobrenaturais. Fica a impressão de que, quando se mete a comentar aquilo que faz parte do nosso cotidiano mais trivial, a banda perde um pouco a razão de ser.

Ainda assim, nos resta o som que esses incríveis cientistas produzem: tão reluzente que nos afeta mesmo quando tentamos olhar numa outra direção. Poucos discos de 2011 vão nos atingir dessa forma, com essas melodias de neon e acrílico, criadas com uma tecnologia que desconhecemos.

Taí a ironia da coisa: o disco mais humano do TV on the Radio – o mais frágil, o mais amável – ainda paira acima de todos nós, mortais.

Quinto disco do TV on the Radio. 10 faixas, com produção de Dave Sitek. Lançamento Interscope Records. 8/10

We’re new here | Gil Scott-Heron & Jamie xx

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Meu primo mais crescido – o primo que imitávamos, o primo que venerávamos, o primo que queríamos ser quando um pouco mais velhos – fazia música. Sim. Não que ele soubesse algo sobre a técnica do violão ou da guitarra (era um vexame até no pandeiro, que todo mundo pensa que sabe tocar), mas entrou para a nossa história como o sujeito das melodias fantásticas, o chapa da ginga, o bacana e o máximo.

Ok, sem rodeios: meu primo era funkeiro.

Funk carioca, manja? Início dos anos 90, ‘o que eu quero é ser feliz’, o som ingênuo e tosco que invadia as festinhas e puxava as meninas para dançar passinhos coreografados. Lembra? Lembra? Eu lembro.

E lembro porque meu primo foi um dos tantos aspirantes a Claudinho, a Buchecha, a MC Qualquer Coisa – no bairro onde morávamos, no Rio de Janeiro, era um sonho que toda uma comunidade de petizes parecia compartilhar. Mas meu primo, como acontecia muito, tombou na pista. Abandonou o batidão para cuidar das três filhas, trocou de esposa duas vezes, trabalhou para encher panelas, até fez de conta que nunca pensou em ser médico, mas tudo isso é outra história e cá estamos fugindo novamente do assunto.

Voltemos ao funk, que este é um post sobre o funk.

Para meninos como eu, o funk não era nada. Era uma brincadeira, no máximo uma boa bobagem, uma distração, uma troça. Ao mesmo tempo, era um mundo. Era uma música, sim, mas não qualquer música. Era uma música que parecia ser nossa, dos garotos da periferia, dos subúrbios, dos bairros pequenos. Parecia brotar dentro dos nossos quartos. E às vezes brotava mesmo.

Testemunhei pelo menos três músicas nascendo – e nascendo de parto normal, na varanda do meu primo. Ele sorridente, malandro, sobrepondo batidas singelas e criando versinhos tolos, depois gravando as camadas e exibindo o mix a meninos perplexos, abismados, estupefatos com a novidade: ‘diga a verdade, primo, foi você quem fez? Você? De verdade?”

Era o barulho de uma revelação. Pedíamos para que ele rodasse a música de novo. A mais ordinária. A mais vazia. A mais barata. E rodava de novo. Mais uma vez, e a danada rodando, grudando nos nossos pensamentos, se instalando para sempre.

Lembro daquela sensação febril. De querer engolir uma música. De querer papar a canção com ketchup, maionese e fritas. De querer tomá-la e não devolvê-la. Roubo. Coisa feia e suja. Um susto. Ouvir os funks ridículos do meu primo – que nem funk eram, meu primo nem sabia quem era George Clinton ou James Brown – fez de mim um devoto da arte pueril e anêmica, que nasce quase por acidente, que não tem valor algum, que nos agride inocentemente. Tudo isso, percebi naquela época, pode ser algo belo.

E (pode parecer uma heresia, mas não consigo evitar) lembro dos funks do meu primo – em frangalhos, ocos, mas, na minha infância, mais inspiradores que a sétima de Beethoven – a quando ouço discos como a estreia de James Blake (meu favorito de 2011, por enquanto) e estes remixes de Jamie xx para Gil Scott-Heron.

Não porque são discos paupérrimos, juvenis – nada mais distante da realidade. Mas porque eles provocam em mim o tipo de entusiasmo ingênuo, de criança, que aquelas aberrações domésticas provocavam. São discos que apontam para nossas fuças e dizem: eu sou um pouco como você; e você, se tivesse um pouco mais de talento, poderia ter me criado.

São álbuns que podem despertar uma intensa impressão de proximidade (ainda que falsa). Existe um quê de motivação punk nesses projetos. Do it yourself. No caso de Jamie xx, ainda mais. Temos aqui um disco incomum de remixes, que só encontra pontos de contato nos mashups de Danger Mouse, especialmente The grey album. Com a arrogância feliz de um adolescente, Jamie desmonta e reinventa o linguajar de Scott-Heron.

Um daqueles discos complicados que soam fáceis, sim. Mais do que isso, um daqueles discos atrevidos, que impõem uma identidade à prática do decalque, do “recortar e colar”. Eu admiro.

Desde a estreia do The xx, Jamie exercita um pop lacunar e sutil. É com essa palheta de cores escuras que ele cria uma atmosfera onde os versos, a fala de Scott-Heron se movimentam e respiram. Isso sem a necessidade de preencher todos os espaços, todas as crateras que marcam as canções do sujeito que, há um ano, lançou o assombrado I’m new here.

Aquele é um disco, aliás, que ainda me perturba um pouco. Não consigo escrever sobre ele, talvez por me parecer autoexplicativo. O que temos é a voz de um velho poeta americano, que viveu muito, que talvez nem esteja mais tão lúcido quanto imaginamos (hematomas expostos) – isso, a voz, as ideias, as lembranças, e quase nada mais. Mas, diante desse retrato saturado, por que cobraríamos mais? (eis a questão).  O que o inglezinho Jamie faz é se apropriar desse discurso, desse “personagem”, e inseri-lo num filme. Que poderia se chamar No silêncio da noite.

A exemplo dos álbuns de Blake e do The xx. há uma mise-en-scene noturna, fantasmagórica, ao redor dessas canções. Tal como Blake, Jamie se limita a apontar pequenas variações entre uma faixa e outra, ainda que, aqui, a eletrônica minúscula saia dos limites do dubstep para às vezes soar como a arquitetura de uma colagem do DJ Shadow: camadas de samplers sujos, mofados, colhidos de uma antiga coleção de vinis.

Os três momentos mais diretos do disco, que renderiam singles excelentes, mostram as oscilações de uma obra que, numa primeira audição, soa uniforme (às vezes irritante de tão uniforme; se você cair em tédio, eu entenderei). My cloud, o algodão-doce do parquinho, é trip hop manso, acolchoado. Já NY is killing me mergulha em paranoia, sob chuva de pedras digitais. O disco termina com, I’ll take care of U, uma faixa que leva ao pé da letra um ensinamento de Heron: “Jazz music is dance music”. E não é? Jamie dá uma risada de moleque e entra na pista.

Não dá para dizer que é um disco inventivo, que entusiasma pela originalidade. Que nos leva a recantos desconhecidos. Essas canções, no entanto, têm algo de espontâneo, de lúdico (é apenas música pop, não é nada muito importante, mas essa besteira pode acabar salvando as nossas vidas), que me leva às tardes em que meu primo reunia os meninos na varanda para apresentar a criação da semana. Silêncio total. Três minutos depois, ele deixava de ser gente – e se transformava no nosso herói.

Disco de remixes de Jamie xx, a partir do repertório de I’m new here, de Gil Scott-Heron. Produzido por Jamie xx. Lançamento XL Recordings. 8/10

2 ou 3 parágrafos | A caixa

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Notem o quão interessante seria a experiência (e seria bem simples, nem tomaria muito tempo): você vai a uma sala de cinema que exibe A caixa (3/5), espera a sessão terminar e toma anotações sobre as reações dos espectadores. Nem será necessário submetê-los a questionários. Observe-os. Minha hipótese: a maior parte das cobaias mostrará sinais febris de frustração e, nos casos mais extremos, de fúria. Aposto que um engraçadinho vai ameaçar pedir de volta o dinheiro do ingresso.

É que o filme de Richard Kelly (o diretor de Donnie Darko e Southland tales) rejeita a principal regra para um relacionamento saudável com o público menos aventureiro (infelizmente, eles estão em maioria): cria uma trama de mistério que, após os créditos finais, permanece misteriosa. Um turbilhão de perguntas sem respostas. Quando Onde os fracos não têm vez entrou em cartaz, lembro que ouvi um comentário que ia mais ou menos assim: “Paguei para ver um filme que nem os próprios diretores souberam como terminar.” Oh, vida!

Por isso, muita gente vai desdenhar o que este filme tem de melhor. Que não é a trama (um episódio alongado de Além da imaginação, sustentado por um dilema moral que daria arrepios em M. Night Shyamalan), mas a euforia camicase de Kelly, que transforma uma corretinha fita de época num sonho louco, lynchiano. O sujeito é destemido (e narcisista à beça), dirige sem cinto de segurança, e comete a sandice de oscilar entre a ficção científica mais juvenil (portais reluzentes de CGI!), o thriller de teorias conspiratórias (a Nasa tem culpa no cartório!) e a tortura filmada (Jogos mortais!). Sem medo do ridículo (e a coisa fica muito ridícula, prepare-se). O importante é que o espectador não sabe onde está se metendo. E isso é bom, não é? Deveria ser bom? Se você acha que não, recomendo uma maratona de Fringe. Só de castigo.