Excessos
Go tell fire to the mountain | WU LYF
No meu caso, antes acontecia assim: quando eu resolvia escrever, as palavras iam aparecendo em grupos de vinte, trinta, quarenta, e chegavam com tanta ansiedade que eu achava mais sensato não acalmá-las nem ordená-las: elas iam caindo no teclado de qualquer jeito, de barriga, de costas, de cabeça pra baixo. Era o caos.
A maioria, é verdade, mergulhava para a morte e era sepultada em parágrafos grotescos, sujando o monitor com gosma e boas intenções. Quando eu era um pouco mais novo, escrever era ejetar todas as frases que superlotavam a minha cabeça e tensionavam meus dedos. Eu as abandonava mais ou menos como um caminhão que estaciona no terreno baldio para descarregar o lixo.
Hoje as palavras aparecem em grupos menores, acredito que de dez a quinze por vez. E não chegam com a mesma intensidade, nem com a mesma fúria. Há os dias em que não noto gana alguma no desembarque, e me pergunto: se elas não me afligem da forma que elas me afligiam quando eu tinha 16 ou 17 anos, por que ainda me preocupo tanto com elas?
Há algum tempo, eu estava certo de que seria um escritor. Agora não sei mais.
Talvez seja sinal de maturidade (e isso existe?). Escrever menos, sem ir com tanta sede ao pote, pode ser indício de rigor e elegância. Em tese, adultos são mais rigorosos que adolescentes. Também são mais elegantes. Sabem o que querem ser, até porque já cresceram. No mais, o senso comum alerta que escrever é cortar palavras, ser conciso, exato, poupar tempo. Finitude é o termo.
Sim, sim. Só que dá um baita de um incômodo quando ligo o computador e fico admirando a tela em branco, o cursor vertical piscando. Às vezes até quero escrever. Mas vivo me perguntando: escrever para quê? Para quem? Por quê? E não encontro soluções para nada disso. Porque às vezes parece que ninguém está lendo, que ninguém merece ler tanta bobagem. E às vezes sinto que estou apenas sequestrando e matando palavras, por esporte.
Escrevo porque posso, e não porque devo.
Ainda acredito, contudo, que existe sim uma arte perversa (mas admirável) na carnificina de sílabas, nesse uso exagerado e infantil de frases, no exagero de significantes, no ato desmiolado de escrever por escrever, de escarrar as palavrinhas, de esparramá-las em parágrafos longos e feios, toscos de tão imaturos. Francamente, detesto os blogs que eu escrevia aos 16, 17 anos. Mas percebo algo romântico neles. Eram textos suicidas, que cheiravam mal e iam apodrecendo em público.
Não eram nada apresentáveis. Nada saudáveis.
Há alguns dias tento entender o que tanto me atrai ao disco de estreia da banda inglesa WU LYF (sigla para World Unite! Lucifer Youth Foundation), e acredito que tenha algo a ver com os textos que eu escrevia aos 16, 17 anos. Tai um álbum que tenta agarrar as palavras com um pulso adolescente. Elas praticamente derretem nos nossos headphones, esquartejadas após a outra. É uma matança cruel.
Adianto aos mais sensíveis: é quase impossível entender a interpretação do vocalista Ellery Roberts. Nem faça esforço. Ele não canta; ele grunhe. E não estamos falando da aspereza vocal de um ogro do thrash metal. Fico com a impressão de que Ellery está forjando um idioma próprio. É como se vestisse a persona de um homem pré-histórico que, depois de muita relutância, decidiu finalmente sair da caverna. Ele olha para o mundo de uma forma bestial. O que vê, em compensação, não é exatamente civilizado.
Mas a performance de Ellery, apesar de repulsiva, não tem a intenção de nos afastar dos versos da banda. Pelo contrário. No site oficial, o WU LYF publica as letras das canções para orientar os ouvintes. E é aí que as coisas começam a ficar, no meu ponto de vista, mais fascinantes. São canções que soam como o fluxo de consciência de um menino atormentado por um enxame de palavras. Chegou a hora de soltá-las no ar.
E Go tell fire to the mountain é, antes de qualquer coisa, um disco de palavras. Palavras de ordem, de guerra, de desabafo, palavras que vêm e voltam em ciclos, palavras cuspidas do esôfago, palavras de desencanto e fervor. Se Ellery fosse um vocalista menos excêntrico, mais fluente, e se as melodias acompanhassem o vigor e a vibração frenética das letras, estaríamos diante de uma banda comunicativa quanto um Arcade Fire. O WU LYF tem muito a falar.
É bem verdade que a garganta arranhada do vocalista colabora para que criemos toda uma mitologia em torno da banda, que bolou uma campanha misteriosa de marketing, na rebarba do Odd Future Wolf Gang Kill Them All. Também estamos falando de um coletivo que envolve músicos, artistas gráficos, cineastas etc; ainda que, no caso, o cerne do WU LYF seja um quarteto de rock até relativamente convencional.
Você ouve o disco e imagina um bando de bárbaros (e musicalmente, eles são pouco sutis – gostam de estrondo e da repetição de camadas de órgãos e guitarras; preferem a unidade à diversidade). Na realidade, o que temos são sujeitos de classe média alta, nascidos em Manchester. De qualquer forma, é muito convincente a fantasia criada pelo World Unite para capturar a nossa atenção.
E boa parte dessa ilusão é criada pelas letras, que conclamam o ouvinte a sair às ruas e mudar um mundo que, se levarmos a sério a ladainha da banda, está quase acabando. Um expediente até démodé, mas irresistível. O World Unite pede ao público para que “seja bravo”, para que “abandone as armas” e que viva intensamente, antes que a morte chegue e acabe com a festa.
São hinos, e não duvide disso. A banda cria uma sonoridade maciça, mas se aproxima do ouvinte como quem conta um segredo via MSN. “Ei, quantos de vocês têm medo da morte?”, eles perguntam, na faixa de abertura (que repete o bordão “te amo pra sempre”, sem perder a macheza). Na lista de agradecimentos do disco, que foi gravado numa igreja (naturalmente), citam Frida Kahlo e Tupac Shakur.
Não sei se o World Unite vai se transformar numa banda tão adorável, tão gente-como-a-gente quanto um Wolf Parade, um Hold Steady ou um Titus Andronicus, mas eles fazem o possível para se associar esse time de “adultescentes” que escrevem épicos para serem compactados em 160kbps. Spitting blood e We bros são faixas que fazem justiça a essa gangue de últimos românticos.
O diferencial, creio eu, está na fome de palavras que marca o disco do WU LYF. Em alguns momentos, mesmo diante das letras, me perguntei: sobre o que eles estão cantando? Para quê? E cheguei à conclusão de que, às vezes, não estão cantando sobre coisa alguma. São apenas palavras ocas, palavras suicidas, palavras em vão. Go tell fire to the mountain diz muito, exageradamente, talvez pelo prazer de dizer. O que ouvimos são palavras em pleno processo de digestão, retorcidas em suco gástrico, lambuzadas e incompreensíveis.
Acaba que não faz muito sentido. Mas a fricção entre a expressividade das palavras e a interpretação febril garante um sentido de urgência que nos emociona (mesmo quando não sabemos por que razão). Na última faixa, eles nos têm nas mãos. Mesmo quando notamos que os versos da banda não são muito diferentes do conteúdo de um blog juvenil – e daqueles ingênuos, desesperados, que nos fazem corar.
Primeiro disco do WU LYF. 10 faixas, com produção da própria banda e de Dave Jay. Lançamento L Y F. 8/10
Romance is boring | Los Campesinos
Vamos falar sobre você por um minuto?
Imagino que você, leitor deste blog, seja meus ou menos como eu: uma pessoa que não recebeu o Nobel, não escalou o Everest, não plantou muitas árvores, não teve muitos filhos, não escreveu uma série de livros memoráveis, não levou a Palma de Ouro, não faturou a Mega-Sena, não foi condenado à morte, não apareceu na manchete do jornal nem salvou o sujeito que estava prestes a ser tragado pela enchente. Você não é o melhor nem o pior, não está entre os cinco mais nem entre os cinco menos. Você, na hipótese mais provável, é uma pessoa decente e sensata, que trabalha (ou estuda) mais do que gostaria, ganha menos do que merece, se apaixona por pessoas difíceis ou impossíveis, teme a morte e comete erros constrangedores de vez em quando. Não é uma exceção. Não é extraordinário. E há muitos iguais a você.
É por isso que o terceiro disco do Los Campesinos talvez lhe pertença. É música para (e sobre) sujeitos comuns. E, nos melhores momentos, sobre o que há de espantoso, surrealista, hilariante em nossas vidinhas mais-ou-menos.
O disco abre com a frase que usei para começar este post: “vamos falar sobre você por um minuto”, provoca Gareth Campesinos, um vocalista que parece ter nascido de um experimento biológico com os genes de Jarvis Cocker (Pulp), Robert Smith (The Cure) e Eddie Argos (Art Brut). A canção, In media res, acelera feito action movie: primeiro tensa, depois sombria, mais adiante (quando os trompetes entram em cena) eufórica. Uma crônica esquizofrênica, em cores saturadas, em fast-forward.
A faixa começa com a narração de um (suposto) acidente automobilístico, depois de alguns jogos de palavras à beira do nonsense, termina com um desafio prático: “Se você tivesse a opção de morrer em paz aos 45, mas com o amor de sua vida ao seu lado, depois de uma vida plena e feliz, isso o interessaria?” E então? Interessaria?
Gareth parece conversar diretamente conosco, o tal público médio de rock. Gente que se importa com este tipo de coisa: riffs, piadas tortas, pop stars sarcásticos, love stories desengonçadas, listas de fim de ano. Eu, você. Qual é a nossa idade? 30? 25? 18 anos? Tanto faz. Estamos na outra ponta do diálogo, convocados a nos identificar com a verborragia ruidosa deste septeto galês. Somos, de certa forma, o tema das canções.
Era o que acontecia nos dois discos anteriores da banda, ambos de 2008: Hold on now, youngster e We are beautiful, we are doomed. Em Romance is boring, eles parecem ainda mais confortáveis nesse papel de talk-show-hosts do nosso cotidiano. É um disco “de amor”. Mas, ao contrário da delicadeza nerd de One life stand, do Hot Chip, um amor ordinário, pé-no-chão, cínico e safado. Um disco também sobre sexo, morte e sarcasmo. E cortes de cabelo.
Gareth, aparentemente, interpreta um personagem. E esse personagem é um cínico que, em algumas recaídas, se revela um sujeito adorável. A faixa-título, saltitante feito brit pop, enxerga a chatice dos romances (o melhor, como diz o vocalista, é provar um pouco do “bolo fálico” que ele acabou de preparar). Ela vem logo depois de uma faixa que narra a história de um amor obsessivo, sequelado, coisa de principiante (e admita: There are listed buildings tem um quê de Dashboard Confessional). Em Straight in at 101, eles pulam as preliminares: “Precisamos de mais pós-coito e de menos pós-rock.”
Apesar das tentativas de uma sonoridade mais sortida (eles conseguem lembrar Pixies, Sleater-Kinney e New Pornographers numa mesma canção), os versos de Gareth ainda soam mais excitantes do que a música dos Campesinos. Como acontece com o Art Brut, a banda ganha um outro porte quando entendemos sobre o que ela está cantando. A produção bruta de John Goodmanson ressalta a cacofonia e lima sutilezas. Tudo bem: desde o primeiro flerte, a banda nos seduziu a pancadas. Mas me parece justo perguntar se o terceiro álbum da carreira não seria o momento de surpreender também musicalmente (Boys and girls in America, do Hold Steady, serviria de belo exemplo).
Mas, como eu disse, não é isso que nos fará voltar aos Campesinos. Em Who fell asleep in, eles falam em religiosidade como quem discute um problema prático (como beijar uma garota que parece manter uma relação íntima com deus?). Em I just sighed, I just sighed, I just sighed, observam os efeitos provocados por um corte de cabelo na masculinidade. Mais comovente é The sea is a good place to think of the future, quando Gareth se rasga todo enquanto fala sobre uma menina deprimida, amaldiçoada pela beleza. “Ela não está comendo de novo, ela não está comendo de novo, ela não está comendo de novo, ela não está comendo de novo”, repete, enfático.
É um grande disquinho que explica por que os Campesinos estão fadados à incompreensão: aqueles que desprezam a banda logo de saída (já que a sonoridade ainda parece mesmo um tanto genérica — e que beleza seria se eles encontrassem um bom produtor!) não chegam à corrente sanguínea de um grupo que destoa de quase tudo o que está em cartaz. Atípico por lembrar aquele seu amigo de infância — nem extraordinário, nem desprezível, tão próximo de sua vida.
Terceiro disco do Los Campesinos. 15 faixas, com produção de John Goodmanson. Lançamento Wichita Recordings. 7.5/10