Entusiasmo

Sound Kapital | Handsome Furs

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Eu não esperava encontrar tanta melancolia, saudade e (alguma) dor profunda no momento em que resolvi trancar a matrícula na academia de ginástica. Mas foi o que aconteceu, amigos. Foi o que aconteceu.

Este não é um blog dissimulado. Portanto, devo contar a história inteira, sem esconder os capítulos mais ridículos.

Aconteceu que, naquela manhã fria de sexta-feira, a gerência da academia decidiu reajustar o valor da mensalidade. Já era cara. Muito cara. Mas (foi o que descobri) não o suficiente. Usaram a desculpa inevitável (a renovação muito tardia dos equipamentos) para anunciar a facada. Só que o golpe foi inesperado. Tão inesperado que minha mochila escorregou do meu ombro e caiu no chão.

“Não posso pagar”, avisei, num sussurro.

A secretária me olhou com falsa piedade.

“ Você pode fazer o plano anual”, ela declamou, como quem lê um panfleto invisível. “Vai pagar menos, e ainda vai ter direito a trancar a matrícula nas férias.”

Não parecia tentador.

“Sabe o que é?”, e o sussurro virou quase um código silencioso, “É que eu não posso fazer planos. Nenhum plano. Não sei o que vai acontecer comigo. Não sei, minha vida pode mudar completamente em uma semana, um mês. Não sei. Não posso”, e fiquei mudo por alguns segundos, já com a testa franzida, palpitando em agonia.

A reação da secretária me surpreendeu. Em vez de compreender a situação, ela foi um pouco mais fundo. Novamente, o golpe me pegou de surpresa.

“Tiago, olha só: você diz isso sempre. Que não pode fazer planos. Mas já está aqui há três anos. Nada mudou”, e ela tratou de sublinhar com tinta amarela a palavra “três”.

A observação (muito atenta, talvez indiscreta) acabou desatando um engarrafamento de dominós em queda. Primeiro tranquei a academia, num ato instintivo de vingança. Depois passei a manhã inteira metido em divagações muito tristes, numa auto-terapia angustiante. A secretária da academia me abriu os olhos: há três anos, há três anos não consigo fazer planos.

Nem preciso dizer que foi uma malhação vagarosa e especialmente dolorida. O sentimento de fadiga nos braços e nas pernas não foi maior do que o peso de alguns halteres na minha consciência. Por que passei tanto tempo nesse estado deprimente de incerteza? E por que (pergunta mais difícil) eu ainda me encontro preso nesse limbo?

As questões, é claro, ficaram sem respostas.

Depois fiquei me perguntando (mais perguntas!) por que tranquei a matrícula de uma forma tão destemida, decidida, como se não houvesse amanhã. É claro que sofri muito com a decisão (não consigo me desapegar facilmente nem de uma xícara velha), mas notei que estou numa fase de desapego, de mudança, de rupturas quase desesperadas (ainda que patéticas). E que a transformação está acontecendo um pouco antes do início da Grande Aventura.

Percebo que, talvez inconscientemente, estou lacrando as caixas com os meus pertences. Fechando tudo antes que chegue o caminhão de mudança. Saindo, indo.

A despedida da academia coincide com o período em que tudo na minha vida passou a parecer datado: meus discos, meus livros, meu carro, o apartamento onde moro, meu blog. É como se tudo isso pertencesse ao passado.

Também coincide, é claro, com o começo de um namoro que está transformando a minha vida. Transformando e transformando profundamente. Porque é a primeira vez que sinto, de verdade, que ganhei o direito a fazer planos. E planos sérios, que vão durar.

O episódio da academia, somado a tantos outros pequenos sinais do cotidiano, foi apenas o gatilho para que eu notasse algo mais grave: que estou pronto para, finalmente, começar.

Estou pronto para quebrar o movimento circular de uma vida sem planos.

Parece um alívio, certo? Mas não é um sentimento simples. Porque, por mais que se tente simular valentia, é sempre penoso começar. Bate nervosismo, tensão, frio na nuca. Não se sabe por onde. Não há quem dê conselhos. Os amigos não ajudam tanto quanto gostariam. Os pais não entendem. Não escreveram muitos livros (plausíveis) sobre o assunto. Não tem manual. A solução não está no Google.

E parece ainda mais complicado começar aos 31 anos, quando todas as pessoas partem do princípio (muito sensato) de que você já começou. Ou de que já deveria ter começado. Você se sente um pouco velho para zerar o placar. Mas também novo, jovem, disposto, entusiasmado, ainda que os outros não percebam nada disso.

Esse desejo de seguir em frente chegou com tanta força que me desapaixonei um pouco pelos discos e pelos filmes, os deixei em segundo plano. Não são muitos os que me comovem. Os bons livros me parecem um pouco mais tocantes, já que contém o tipo de complexidade enlouquecedora que bate à minha porta.

E é por conta dessas mudanças todas, acho, que este blog anda tão abandonado. Mas não tenho coragem de me desfazer também dele, de trancar esta matrícula e seguir adiante. Talvez, pensando bem, retratar essa fase estranha e complicada acabe garantindo alguma utilidade a ele. Não sei ainda.

No mais, talvez vocês queiram saber sobre filmes e discos. Não é uma boa hora. Entendo que há discos muito bons por aí, continuo ouvindo dezenas deles, e sei analisá-los com distanciamento (o do Bon Iver, o do Cults, e alguns outros). Escrevo resenhas para o jornal; este é um trabalho que faço com prazer e curiosidade.

Mas, no tempo livre, são poucos os discos que me sequestram. Sound Kapital, do Handsome Furs, é desses. Talvez não seja grande. Duvido que seja importante. Mas ele vai espelhando este meu período de vida. Talvez por se movimentar para frente, mundo adentro, e num ritmo frenético, urgente, às vezes histérico, chutando portas e fazendo malas.

Este é o terceiro CD da dupla formada por Alexei Perry e o marido Dan Boeckner. O mais luminoso e enérgico (características que notamos logo de cara), e o menos estático (as faixas foram compostas e gravadas durante a turnê da banda, em vários lugares do planeta). Ir embora é um dos temas do disco. Ir embora e voltar diferente, outro. A primeira música se chama When I get back e o refrão vai assim: “Quando eu volto, nada parece a mesma coisa”. Há uma que atende por Repatriated. Eu entendo tudo isso.

Também é, por consequência, um disco sobre a terra desolada que aparece após a mudança, depois do apocalipse pessoal. Sobram lembranças meio enevoadas (Memories of the future) e música rasteira (Cheap music), ecos em sintonia borrada. “Não há hits porque não existe mais rádio”, canta Dan. É um mundo ainda a ser explorado.

No site da Sub Pop, não fazem questão de nos avisar que este é o primeiro disco do Handsome Furs após o fim do mundo (ou: após o fim do Wolf Parade, ex-banda de Dan, que entrou num hiato por tempo indeterminado em maio de 2011). É uma informação importante, que nos ajuda a entender por que Sound Kapital é um disco cheio de grandes compromissos: um álbum que parece começar de novo. Antes, o Furs era um “projeto paralelo”. Hoje, é o ganha-pão do canadense.

Essa mudança de perspectiva pode parecer uma bobagem, mas me parece capital (perdoem o trocadilho) para o disco — e acredito que é isso, exatamente isso, que me aproxima tanto dessas músicas. Hoje, Dan faz do Handsome Furs uma máquina estridente, tecnológica, que revisa o rock eletrônico dos anos 1980 (New Order, Depeche Mode) com uma fúria, uma virulência que lembra muito o tom de celebração e libertação do último disco do Wolf Parade, Expo 86.

Os críticos que desprezaram aquele álbum possivelmente vão ignorar Sound Kapital. Talvez eles não entendam (ou não admirem) a maior qualidade do Wolf Parade, que é recarregar as baterias do pós-punk, feito de guitarras e uivos. Existe uma energia primal em jogo. O importante, no caso deles, não é tanto o esforço por originalidade, mas gana e empolgação. Qualidades por demais abstratas, que dificultam o trabalho de quem ama a banda e quer defendê-la.

São características que não faltam ao Handsome Furs. Por isso, acredito que o fã do Wolf Parade não terá dificuldades para cair de paixão por este disco. Como a transição de Peter Hook entre o Joy Division e o New Order, Dan altera a coloração do estilo sem mover o que há de essencial no que sempre fez: são músicas que não negam o poder do rock de instalar revoluções nos nossos headphones. De instigar mudanças. De nos surpreender com empurrões e rasteiras. De nos eletrizar.

Sound Kapital tem apenas nove músicas. Conheço todas de trás para frente. Amanhã, vou para São Paulo ficar três semanas na casa da minha namorada. Pode ser que esta se transforme na trilha sonora deste recesso. Um período que possivelmente vai me transformar num homem ainda menos apegado à minha vidinha antiga. Quando eu voltar, desconfio, nada vai parecer igual.

Terceiro disco do Handsome Furs. 9 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Sub Pop. 8/10

2 ou 3 parágrafos | Kick-Ass – Quebrando tudo

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Vou abrir uma exceção e elogiar um filme de um cineasta que me parece nada talentoso. Matthew Vaughn produziu Guy Ritchie, fez Nem tudo é o que parece (um sub-Ritchie) e o tedioso Stardust. O novo dele, muito superior àqueles dois, é uma adaptação de quadrinhos que me ganhou como poucas outras. Então taí: vocês não devem esperar muito do próximo longa de Vaughn, mas recomendo feliz da vida este Kick-Ass (3.5/5).

Quem lê este blog sabe que sou um sujeito muito difícil para adaptações de quadrinhos. Acho quase tudo igual e me entedio. Por que meu voto vai para Kick-Ass, então? Talvez por não seguir as normas de segurança do gênero (não é um filme “família”, não é calculado para entreter a vovó, a netinha e o cunhado fã de AC/DC). Ou por não transformar as cenas de ação em demonstrações grotescas de efeitos visuais, explosões geladas de pixels. E aí acredito que Vaughn, apesar de não me convencer como cineasta (ele picota referências unânimes, de Stanley Kubrick a Quentin Tarantino, e fica nisso), tem o mérito de conduzir o filme com muita fluência – o oposto de um típico Guy Ritchie, portanto.

O filme é todo metido a contemporâneo (exagera no falatório sobre cultura pop, mas acerta, por exemplo, quando engendra a ação via YouTube, SMS, câmeras de celulares), mas o que me agrada nele são os traços mais convencionais – o traquejo como Vaughn nos apresenta os personagens e narra a trama. E isso, no cinema de entretenimento, deveria ser algo simples, corriqueiro, mas vá lá ver Príncipe da Pérsia e depois conversamos. Até as cenas de ação mais mirabolantes são narradas com clareza. Nada de montagem histérica e câmera tremida, mas outras ideias: jogo de luzes, plano-sequência, balé sangrento (Kill Bill é sampleado explicitamente). Nada exatamente novo, mas nunca confuso. Até o tom esquizo da narrativa (é sátira ou homenagem?) soa premeditado – é o delírio um velho fã de fitas de super-herói, que vê o antigo objeto de culto com um tanto de carinho, um tanto de vergonha. Não é complicado de entender.

Astro coast | Surfer Blood

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Em fotos como esta e esta, o Surfer Blood deixa a impressão de ser uma banda formada por rapazes de 20 e poucos anos que resolveram defender o revival das jaquetas e blusas quadriculadas (de flanela?).

Não sei se a moda vai pegar. Mas ok, talvez a tendência venha para o bem. Tenho uma assim mofando no meu armário. No mais, antes isso do que ombreiras e gloss.

O curioso é que eu, que mergulhei numa promoção da C&A em 1992 e saí de lá igualzinho ao Eddie Vedder, não sinto saudades dos anos 1990. Por que o Surfer Blood parece sentir? Talvez seja uma espécie de síndrome, isso — a fascinação que algumas pessoas sentem por períodos que não viveram intensamente. “Eu trocaria minha vida medíocre pela experiência de dançar pelado na fazenda de Max Yasgur!” Esse tipo de sentimento.

Os jovens adultos do Surfer Blood habitam o mesmo rasgo temporal onde vivem o No Age (obcecado pelo noise rock de 1989, 1990) e o Japandroids (ah, se a vida fosse um disco antigo do Dinosaur Jr!). Também recriam uma década com o olhar distanciado de quem não participou da festa, mas com a afetuosidade de quem gostaria verdadeiramente de ter participado.

No disco, os anos 1990 são sintonizados numa espécie de halo, uma névoa. Reaparece nas guitarras cheias de ecos e camadas, num guitar rock lo-fi (que lembra o clima dos primeiros discos do Pavement), em riffs pegajosos (com um quê de Pixies, Nirvana) e uma atitude despreocupada, informal, que parece ter sido decalcada de um álbum do Superchunk. O disco foi quase todo gravado num apartamento universitário — e, mais importante do que isso, soa como se tivesse sido.

É bem verdade, no entanto, que os anos 00 passam por uma fresta. O calor da Flórida parece ter derretido o ranço de uma banda que, doce, também pega emprestadas as miniaturas sessentistas do Shins, do Band of Horses — e sabores tropicais à Vampire Weekend (em Take it easy, principalmente). Aposto que hoje, neste exato momento, alguém na Sub Pop está se chicoteando insistentemente por não ter percebido a existência deste grupo.

Daí vocês têm toda razão em notar que não há nada novo ou particular no Surfer Blood. É verdade. Talvez o estilo ainda esteja em fase embrionária, não sei, mas o que alegra na banda é o entusiasmo como essas referências são digeridas, adaptadas, transformadas em canções impecáveis. Neste início de ano, ouvi poucos discos que soam tão coesos e poderosos, como uma onda que nunca quebra na areia. As grandes estreias costumam deixar essa impressão: a de um repertório selecionado após anos e anos de depuração. Não há uma única faixa que eu deixaria de molho (e juro que, quando colocar um ponto final neste post, vou voltar a ouvi-lo porque já estou com saudades).

A encenação retrô (se é que podemos chamar os anos 90 dessa forma) pode parecer superficial, mas o Surfer Blood tem canções que poderiam sobreviver em qualquer outro modelito. Que culpa temos nós se eles estão enfeitiçados pelos discos do Built to Spill e por episódios de Twin Peaks? Talvez seja uma fase estranha. Acontece. Mas desconfio que, quando eles começarem a curtir Animal Collective e trocar as camisas quadriculadas por acessórios floridos, vão fazer um disco de rock psicodélico tão saboroso quanto este aqui.

Mesmo que em 2020, vá saber.

Primeiro disco do Surfer Blood. 10 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Kanine Records. 8/10