Eduardo Coutinho

mostraSP | Dias 8, 9 e 10

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Nesta rodada de textinhos sobre os filmes que vi na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, parágrafos sonolentos e constipados que possivelmente não vão acrescentar muita coisa às experiências dos espectadores que acompanham o evento. Mas, para não deixar acumular serviço (como diria minha avó), cumpro a obrigação com mais divagações curtas, mais rascunhos, mais reflexões apressadas que, eu sei!, não levam a lugar algum. Deixe-me afrouxar a gravata, ok?

A cotação que uso para avaliar os filmes, como vocês bem sabem, vai da letra D (de, digamos, dodói), à letra A+ (de, digamos, atlético). Por enquanto, ainda não esbarrei em nenhum filme A+. Se vocês souberem onde esse danadinho está, portanto, sejam simpáticos e me avisem. Tá bem?

Histórias da insônia | Sleepless nights stories | Jonas Mekas | A | Até para quem é leigo na obra de Mekas (o meu caso), Histórias da insônia desce como um caderninho-de-anotações muito convidativo: lá pelas tantas, o próprio cineasta se dirige à câmera e, numa homenagem a uma diretora amiga que fez filmes minúsculos sobre o cotidiano, desanuvia as próprias intenções. O metiê de Mekas, aqui, é este: o da crônica etílica, o da conversa jogada fora, o do encontro com amigos (daria, portanto, uma ótima sessão dupla com qualquer filme do Hong Sang-soo), o de uma cinema íntimo, doméstico, que não quer (e não quer mesmo) se impor como monumento para qualquer coisa. Daí que a prosa do bom velhinho flui gentilmente, alegremente, como o videolog de um artista que não tem mais nada a provar, e que se sente confortável numa arte ultrapessoal que, para alguns espectadores, ainda pode soar como um grande insulto (ou como uma enorme bobagem). Um dos melhores filmes desta mostra (onde, talvez por coincidência, não faltam ótimos filmes caseiros).

Las acacias | Pablo Giorgelli | B+ | O argentino que venceu o Câmera de Ouro (prêmio para longas de estreantes) no Festival de Cannes deste ano é um road movie lacônico que pode ser tomado de uma forma simples (um conto humanista, à la Walter Salles, sobre três pessoas que precisam conviver por um certo período de tempo dentro de um espaço fechado, um caminhão) e como uma espécie de metáfora para as relações truncadas, silenciosas, entre países sul-americanos. De uma forma ou de outra, Giorgelli traça esses percursos com uma concisão que assusta: apesar das manhas sentimentais (o que um bebezinho adorável não faz por um “filme de arte” minimalista?), ele nos poupa de qualquer excesso, confiando mais nos gestos dos atores que nos diálogos. Filmezinho preciso assim, tão sutil e tão doce, periga ser tratado como obra-prima. Acredito que não seja isso tudo. Mas que deixa a impressão de ser uma estreia incomum, deixa sim.

Low life | Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval | B | Para que o cinéfilo de Brasília entenda o impacto de Klotz na Mostra de SP, basta pensar nas expectativas que um filme de Julio Bressane provoca quando exibido no Festival de Brasília: por aqui, o diretor francês é tratado como uma espécie de convidado de honra, recebido sempre com entusiasmo por um fã-clube já acostumado às manias de um cinema engajado/filosófico/sisudo que fluta entre o ensaio sociológico (sobre crises da Europa contemporânea) e referências a Robert Bresson e Jean-Luc Godard. Low life trata de uma juventude em colapso, implodindo em agonia, que marcha sabe-se lá para onde, sem um inimigo de fácil identificação. Um tema atualíssimo (vide os tumultos londrinos, por exemplo), que Klotz usa como um terreno cinzento habitado por personagens estilosos&desesperados. O sentimento de mal estar é constante e inevitável, e será sorvido com prazer pelos admiradores do diretor, mas me parece um golpe singelo quando aplicado à trama principal do longa: o romance amaldiçoado entre uma francesa e um migrante afegão (que, é claro, sofrerá as consequências de uma Europa falsamente livre). Leitura sugerida: o anterior, A questão humana, ainda mais incômodo.

As canções | Eduardo Coutinho | B | Um Coutinho-standard, que retorna ao formato de Jogo de cena (sem reflexões metalinguísticas), como um cantor veterano que distende os músculos, desabotoa a camisa e grava um disco pop após dois álbuns experimentais. Um tanto frustrante, tenho que admitir (imaginem aí o Radiohead anunciando um novo The bends), mas não há como negar os prazeres provocados por um um cinema que cria uma relação sentimental tão imediata com o espectador – e que não tem vergonha de chorar diante das câmeras. Pra todo mundo cantar junto, como se diz.

Cut | Amir Naderi | B | Este fight-club japonês, que poderia atender por O retrato de um cinéfilo quando saco de pancadas, não redime um personagem que lida com o cinema de uma forma masoquista (e sim, é claro que me identifiquei um pouquinho com ele). Bônus: no clímax, um top 100 de melhores filmes de todos os tempos.

Uma longa viagem | Lúcia Murat | C+ | Um doc doméstico, cheio de afeto e nada austero, com um personagem larger-than-life (o irmão da diretora, que deu a volta ao mundo duas vezes durante o exílio, na ditatura militar brasileira) e um recurso cênico que me irrita quando penso nele: Caio Blat contracenando com imagens projetadas numa parede.

Elena | Andrei Zvyagintsev | C | O diretor russo de O retorno faz um drama familiar lento, solene (feito marcha fúnebre), que investiga as banalidades do cotidiano como quem procura as evidências de um crime. Cada personagem tem os 20 minutos de contemplação que faz por merecer. Mas a encenação se torna tão embotada que, encerrada a tragédia, deixa um rastro de preciosismo: muita pompa para pouco filme.

Vulcão | Eldfjall | Rúnar Rúnarsson | C | Um dos filmes que mais emocionam nesta Mostra de SP me parece uma apelação sem fim. Mas talvez eu tenha perdido a sensibilidade para esse tipo de drama familiar higiênico: todos me parecem a mesma coisa.

Frango com ameixas | Poulet aux prunes | Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud | C | O novo dos diretores de Persépolis me parece uma linda embalagem sem muita coisa dentro. Nota-se que a dupla está encantada pela técnica, pelo truque frívolo, pela caixinha-de-surpresas, e por um roteiro que vai despistando o espectador até as cenas finais. Os fãs de Amélie Poulain, no entanto, possivelmente vão curtir.

Nervos à flor da pele | Órói | Baldvin Zophoníasson | C | Apenas mais um filme teen europeu (perto dele, Low life fica parecendo algo magnífico), com aparência de piloto de seriado. Pule.

Drops | Mostra de São Paulo (7)

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'Mistérios de Lisboa', de Raúl Ruiz: obra-prima

!!! Mistérios de Lisboa | Raúl Ruiz | 5/5 | Esta adaptação gigantesca do romance de Camilo Castelo Branco (e vasta em todos os aspectos, a começar pela duração: 4h30) permite que nós, os espectadores, nos percamos num mundo de ficção que se desdobra cena a cena. Nesse ponto (e a comparação pode parecer inconsequente), ele me lembra a experiência de assistir a Inland Empire, de David Lynch: Ruiz conduz a narrativa com tanta autoridade, cria um sentido de encantamento tão intenso que, numa certa altura da viagem, não importa mais para onde ele está nos levando. Ainda assim, o filme me parece absolutamente rigoroso: não trai o romantismo de Castelo Branco (pelo contrário: ele o acentua, rejuvenesce, trata as reviravoltas e as coincidências folhetinescas com muito prazer) ou a estrutura labiríntica do livro: as tramas e personagens (dezenas deles) são como os tantos galhos de uma árvore cujo caule nunca ameaça tombar. É o monumento da Mostra: e daquelas sessões que não se esquece.

Um dia na vida | Eduardo Coutinho | 3/5 | No fim da sessão, Coutinho admitiu não saber ainda se este projeto deve ser classificado como uma obra acabada ou como uma pesquisa para um filme futuro. Lembrei de uma entrevista que fiz com ele, na época de Edifício Master: era época de Big Brother Brasil e ele comentou que gostaria muito de fazer um filme com os momentos do pay-per-view em que nada acontecia. Um dia na vida é algo próximo disso, ainda que muita coisa aconteça: uma “pilhagem” de imagens da tevê aberta, gravadas num período de 19 horas e editadas numa duração de 95 minutos. Coutinho diz que a colagem foi feita de uma forma quase automática (o filme não tem dono, é impessoal, ele diz), mas não posso (nem gostaria de) acreditar nisso: o que mais me interessa nesta provocação é o quanto do cineasta se revela na escolha desses trechos de programas. A febre da beleza feminina, a exploração da miséria humana, a grosseria kitsch dos folhetins e o mercado da religião são alguns dos temas que pipocam num zapping de bizarrices cotidianas que, infelizmente, não será exibido em lugar algum (e por uma questão de direitos autorais, nada mais). Coutinho seleciona cenas que, fora de contexto, nos perturbam por mostrar um país truculento e fútil, terrível de se ver. É uma comédia cruel – mas o tipo de argumento (resumindo: a tevê aberta é um lixo e um espelho do espectador) que não avança para além das velhas discussões sobre o tema. Talvez Coutinho tenha realmente um filme a ser criado a partir desta “pesquisa”: então, aí sim, veremos o que ele é.

2 ou 3 parágrafos | Chico Xavier

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Ouvi um comentário intrigante sobre Chico Xavier (2/5). Era segunda-feira à noite. A sala estava lotada. E o sujeito saiu da sessão com esta: “Gostei. É um filme muito informativo”.

Imagine isso: a trama narra a trajetória de um sujeito muito bondoso e humilde que, monitorado por um espírito Jedi, transcreve livros póstumos de Olavo Bilac. Muito informativo. Eu — e acredito em ETs! — fiquei um pouco incomodado quando a sala de cinema se transformou numa espécie de templo ecumênico. Todos muito compenetrados. Uma choradeira respeitosa. E um clima de “a verdade está na tela”. Não deixa de ser interessante: um filme realista sobre o insólito. É, como dizem, um filme “bem-sucedido naquilo que se propõe” (isto é: ele aperta direitinho os nervos da plateia disposta ao transe).

Mais curioso ainda (e não quero discutir crenças; minha prima acredita no poder dos cristais e, por mim, tudo bem): esse mistério é filmado de acordo com o modelo de cinebiografias que produziu 2 filhos de Francisco e Lula, o filho do Brasil. Está tudo lá: a infância sofrida, as descobertas da juventude, as primeiras controvérsias, a relação com a família, as lições de fé (encenadas no formato de um programa de tevê, já que Daniel Filho é um cineasta pragmático, ateu e muito irônico), a forma como Chico transformou a vida de tanta gente… Assistir a esse catálogo de fórmulas sentimentais fritou a minha paciência (e o filme me pareceu interminável, a imagem do purgatório), mesmo quando um iluminado Nelson Xavier apareceu na tela. Mas, ok, viva o cinema brasileiro: o blockbuster de 2010 vai estimular uma multidão a assistir ao blockbuster da próxima estação. E quando é mesmo que o filme do Eduardo Coutinho chega a Brasília?