Dylanology
The king is dead | The Decemberists
Entre todos os discos de Bob Dylan, se eu tivesse que escolher só um, Nashville skyline seria aquele que eu salvaria de um desastre atômico.
Não é o que transformou a minha vida (talvez Blood on the tracks). Talvez não seja o mais relevante, se começarmos a raciocinar como pesquisadores sisudos de música pop (Blonde on blonde). Mas eu o exibiria aos sobreviventes da tragédia para provar que sim, é possível criar uma obra-prima sobre o bem-estar – o marasmo bonito dos sentimentos agradáveis.
Era Goethe, talvez exageradamente, quem dizia: “Nada é mais difícil de suportar do que uma série de dias belos”. Os críticos que trataram Nashville skyline como uma passatempo, uma “obra menor”, talvez tenham procurado nuvens pesadas num céu quase sempre azul e claro. Como poderia um artista com essa imaginação, essa importância, e em 1969!, nos entregar uma coleção de canções singelas de country e folk? Soava como uma piada sem desfecho.
Se um menino de 15 anos começa a fuçar o passado da música pop, pode parecer estranhíssimo: no ano do Woodstock e de Altamont, de Abbey Road, de Let it bleed, de Stooges e Jimi Hendrix, o que Bob Dylan teria a nos dizer? Que a vida em família pode ser gloriosa, que o amor nos preenche de satisfação, que existe um sorriso sob o chapéu de palha. A ideia de plenitude parecia ter afetado até a voz do nosso ídolo, agora cristalina, serena.
O disco, apesar de tudo o que se escreveu contra ele, foi recompensado por gerações posteriores, já protegidas contra as paixões intensas e os radicalismos daquela época. Por bandas como The Coral, por exemplo, ou Wilco e toda a onda de “country alternativo” dos anos 90. Por críticos mais jovens que puderam ouvir o álbum exatamente como ele é: 10 faixas, 27 minutos e uma música chamada Country pie. Tão simples quanto eterno.
The king is dead, do Decemberists, é um dos muitos discos contemporâneos que provocam a sensação de afinar as mesmas ambições de Nashville skyline. Como aconteceu com Dylan, a banda de Colin Meloy se refugiou no campo (uma fazenda de 32 mil metros quadrados em Oregon) e selecionou um repertório que sugere um dia de verão na relva. É um álbum que passa por nós como uma brisa suave – sem intenção algum de provocar abalos ruidosos no nosso cotidiano.
Apesar da referência de Smiths logo no título, não é um disco tão ornado quanto The queen is dead. Pelo contrário. A referência declarada do Decemberists é o R.E.M. do começo de carreira. O guitarrista Peter Buck participa de três faixas – uma delas, Calamity song, soa como uma lembrança não tão distante de Murmur (1983). Mas, ao contrário da banda de Michael Stipe, que adensava o folk, o Decemberists adoça as experiências com gêneros tradicionais que eram comuns nas college radios do início dos anos 1980. The king is dead é primaveril, arejado, quase sempre muito objetivo.
O desafio de Meloy é muito parecido ao enfrentado por Jeff Tweedy em Sky blue sky (outro que deve muito ao tom de Nashville skyline): desnudadas, as canções passam a exibir o que elas têm de mais primário. Temos a canção e nada mais que a sustente – o disco nada mais é do que uma costura dessas canções autossuficientes. Pode parecer mais fácil do que gravar um álbum revestido por um ambicioso, cheio de firulas, efeitos de estúdio e ideias extravagantes. É mais difícil: para cada Nashville skyline (um disco com canções amáveis e aparentemente singelas, mas que ficam, que se impõem por si só), há muitos Sky blue sky e The king is dead.
E com isso não estou desqualificando totalmente o disco. Não. Este é um passo até inusitado para o Decemberists, uma banda que valoriza a pompa e sabe como tratá-la dignamente (Picaresque e The hazards of love são exemplos disso). Em comparação, The king is dead é quase um unplugged: mesmo quando usa todo o arsenal de instrumentos típicos do country rock (gaita, violão, slide guitars etc), a banda nos transmite a imagem de uma gravação descompromissada, de um outtake que, por acaso, foi vendido como disco oficial.
Para quem se sufocava com os excessos dos álbuns anteriores, é o momento de respirar. E fica difícil negar: existe força em canções como Dear Avery (a favorita de muitos que ouviram a minha mixtape de dezembro), June hymn e Down by the water. Se o clima despreocupado remete ao Dylan de Nashville skyline, a atmosfera das letras é mais melancólica, introspectiva, num flerte contínuo com referências pop (a América de 2011 pouco tem a ver com a de 1969), como se Meloy estivesse declarando amor não a uma pessoa, a uma família, a um estilo de vida ou a uma época, mas aos discos que o emocionam.
Um belo disco de country/folk rock escrito por um aluno estudioso, ainda que um tanto apressado nos sentimentos e nas referências que tenta evocar. De qualquer forma, ele engrandece a aura de Nashville skyline: aquele sim, um álbum que ainda parece tão simples, tão mundano. Mas ainda não encontrei quem conseguisse fazer igual.
Sexto disco do Decemberists. 10 faixas, com produção de Tucker Martine. Lançamento Capitol Records. 7/10