Dragonslayer
Dragonslayer | Sunset Rubdown
Quando estivermos velhinhos e finalmente decidirem escrever um livro parrudo e ambicioso sobre a música pop do início do século 21, haverá lugar para Spencer Krug?
Consigo imaginar alguns dos capítulos dessa obra: 1. O “novo rock” nova-iorquino: Strokes, Yeah Yeah Yeahs, Interpol e congêneres; 2. O avanço do mp3 e a retração do CD – estudo de caso: Radiohead e o fim dos tempos; 3. Fragmentação e hibridismo no rock independente: Sufjan Stevens, Arcade Fire e as possibilidades criativas do álbum; etc. O livro seria publicado por uma editora de hippies e distribuído no circuito universitário. No coquetel de lançamento, roqueiros nostálgicos e calvos, com barbas brancas e bastões coloridos à new rave.
Uma bela cena. Acontece que Spencer Krug provavelmente não será lembrado por ninguém. Aposto. As injustiças estão em todo canto, não? Vou fazer minha parte: copiar os arquivos de Dragonslayer num CD-R e escondê-lo num cofre programado para ser aberto em 2050. Taí minha contribuição para o futuro das nossas criancinhas.
Spencer Krug tem 32 anos, é canadense, guitarrista e compositor, toca num punhado de bandas de rock geniais e isso é tudo o que sei sobre ele. Todo fã de rock sonha em roubar duas horas do ídolo com perguntas que nada têm a ver com música. Eu conversaria com Krug sobre cinema. Para mim, tudo o que ele canta e grava sugere planos, travellings e efeitos visuais. Apesar de obviamente cinematográfico, o rock de Krug não me remete a um filme específico ou a um cineasta. Soa como intensa e interminável trilha sonora para uma obra misteriosa, ainda inédita.
Por que um compositor capaz de imaginar cenas tão sugestivas será esquecido completamente? É que a arte de Krug fica no meio do caminho entre o que há de mais urgente no pop contemporâneo (numa frase: é uma voz que poderia ter vindo de qualquer país, de qualquer década, de qualquer geração, simultaneamente Bowie, Francis e Bejar) e o que existe de mais ultrapassado (a ambição de transformar cada álbum num capítulo de uma longa obra em progresso, na tradição do rock progressivo dos anos 70; as canções perdem muito do sentido quando distribuídas separadamente).
Mas é essa dualidade que me aproxima do sujeito. Em 2050, se alguém precisar de um exemplo para os paradoxos desse período de transição do pop, encontrará um bom material de reflexão em álbuns como At Mount Zoomer (do Wolf Parade, onde o prog rock encontra o blog rock) e este Dragonslayer (que soa prog até no nome, mas é gravado com os procedimentos do novo garage rock). Krug personifica uma série de contradições e o som que produz pode ser chamado de esquizofrênico sem que isso pareça um defeito.
No Wolf Parade, a “banda oficial”, Krug negocia muitas das decisões com Dan Boeckner, um compositor mais dócil e afinado a formatos convencionais de indie rock. Para quem procura um close-up do compositor, será inevitável recorrer ao Sunset Rubdown, que funciona como uma espécie de laboratório de ideias. Uma combo underground no sentido datado da palavra: experimental, “difícil”, despreocupada com mercados (vale reforçar que, hoje, o indie rock transformou-se numa opção viável e rentável ao mainstream, vide casos como Sub Pop, Matador Records e Merge).
É no Sunset Rubdown que Krug expurga loucuras sem qualquer tipo de filtro. O primeiro disco, Snake’s got a leg, de 2005, era um projeto solo. A partir de Shut up I am dreaming (de 2006, cujo título resume o tom simultaneamente agressivo e onírico do projeto), passou a alimentar uma banda paralela, que se transformaria num monstro irreconhecível em Random spirit lover (2007), o disco maldito desta década.
Em Randon spirit lover, o interesse de Krug era testar as possibilidades de estúdios de gravação. Era um álbum-colagem, fantasmagórico, superproduzido (para padrões indies) e frágil. Um disco que, radical, dividiu até os fãs do Wolf Parade (eu mesmo ainda não sei por onde começar). Dragonslayer foi concebido como uma reação àquela besta: uma obra “direta, natural e honesta”, com improvisações que poderiam ter sido captadas numa performance ao vivo. “A banda espera que o álbum soe como um amigo que parece normal, mas que, quando você o conhece intimamente, revela-se claramente um louco.” (eles avisam, no texto de divulgação).
Não preciso dizer que é daqueles discos que imploram para serem mastigados lentamente – mais um motivo para que ele se perca do radar de uma crítica cada vez mais apressada (e que prefere ser conquistada de imediato, vide a reação quase unânime ao novo do Yeah Yeah Yeahs). As canções começam de um jeito e terminam de outro. As referências a dragões, deuses, virgens, príncipes, castelos e personagens bíblicos podem parecer barrocas demais para quem nunca abriu um livro de RPG (mas eu nunca abri um desses, vejam só). E, numa tacada só, deve ser um martírio atravessar uma faixa de 10 minutos, duas de seis e três de cinco (a mais curtinha dura 3:48).
Mas, para quem se desafia a aprender as regras de um universo musical (e o mundo de Krug está mais para os delírios de Rufus Wainwright que para os contos de fadas sombrios do Modest Mouse), Dragonslayer sobreviverá como dos jogos mais brilhantes do ano. O rock de Krug é tão cerebral quanto emotivo, e descobrir a existência dessa faceta dupla é a chave para entrar no disco.
As oito canções desenham cenários surrealistas – como nos sonhos, até as cenas mais ridículas provocam enorme impacto sentimental. As primeiras audições do disco nos soterram de forma implacável. A primeira faixa, Silver moons, é um fluxo de consciência sobre lembranças. “Eu acredito em envelhecer graciosamente”, diz Krug, antes de descambar num incompreensível “debaixo das rendas do vestido que você usa há um oceano e uma maré e uma rebelião numa praça.” A seguinte, Idiot heart, desaba feito um surto epiléptico. “Nunca fui um bom dançarino, mas conheço o suficiente para saber que você deve mexer o seu corpo idiota”, ele ordena. Com guitarras pontiagudas, tensas, os acordes nos atingem nos rins.
Não é fácil seguir adiante, mas o disco vai se abrindo maravilhosamente a outros cenários. Paper lace, a faixa mais exótica, lê a psicodelia do The Doors numa estética lo-fi, vazia de ornamentos. “O que existe no coração das meninas bonitas?”, Krug quer saber. Em Nightingale/December song, ele dança sob estrelas cadentes. “Nós somos chamas solitárias”, canta. Os 10 minutos de Dragon’s lair resultam no clímax perfeito para o álbum: um solo repetitivo de guitarra que costura os climas de uma guerra imaginária. “Esta é para os críticos e suas mães decepcionadas”, diz a letra. Não me pergunte por que.
(O álbum todo sugere o que teria acontecido se Viva la vida, do Coldplay, tivesse sido produzido inteiramente num manicômio).
Mais aventureiro que Shut up I am dreaming e não tão impenetrável quanto Random spirit lover, Dragonslayer é meu álbum favorito do Sunset Rubdown (e um pouco aquém de Apologies to the Queen Mary, do Wolf Parade, mas só um pouco). O que eu guardaria num cofre para abrir quando todos estivermos velhos e cansados dos artifícios da música pop. Um disco imponente de rock progressivo que também pode ser interpretado como a soul music do futuro. Spencer Krug sangra do alto de uma torre medieval. “Meu coração é um reino onde o rei é um coração”, ele avisa. O sonho ainda pulsa.
Quarto álbum do Sunset Rubdown. Oito faixas, 48 minutos de duração. Lançamento Jagjaguwar Records. 8.5/10