Documentário
Drops | Mostra de São Paulo (11)

Como acontece há três anos, acompanhar a Mostra de São Paulo me parece uma experiência ao mesmo tempo empolgante e terrível. Empolgante por conta dos filmes, é claro; e acima de tudo pelo encontro com pessoas em que, nas outras 50 semanas do ano, só consigo esbarrar via web. Mas terrível porque esses encontros, que intercalam os filmes, sempre se dão com muita pressa: impedem qualquer diálogo que vá além de um “o que você tem visto de bom?”. É um tanto frustrante. Mas deixarei claro: para mim, a Mostra perderia quase toda a graça sem os papos com o Diego, o Chico, a Alê, o Michel, o Bruno, o Carlos e tanta gente boa que acabo encontrando numa sessão e desencontrando logo depois. Abraço pra vocês.
E uma boa notícia para quem curte este blog e está cansado desta cinemaratona: só restam dois posts, ok?
Arcadia lost | Hameni Arkadia | Phedon Papamichael | 1/5 | E, para começar o dia com o pé esquerdo e perdendo de vez a fé na humanidade, uma produção grega (com personagens americanos e participação de Nick Nolte) que entra de imediato no topo do ranking dos filmes mais constrangedores desta Mostra. A projeção, num digital tão cristalino quanto um vídeo do YouTube, estava péssima – mas o filme, que nada tem a ver com isso, é ainda pior. Após um acidente de carro, dois adolescentes mimados se descobrem presos numa espécie de limbo hippie (imaginem aí uma versão de baixo orçamento para a última temporada de Lost) onde meninos e meninas sarados dançam ao redor de fogueiras. Na trilha sonora, genéricos para as baladas do Cranberries. Fácil matar o enigma da trama: o próprio filme é o purgatório, certo?
Memórias de Xangai – I wish I knew | Hai shang chuan qi | Jia Zhang-ke | 3/5 | Há alguns dias, estava eu aqui no blog condenando os documentários que adotam o formato mais manjado do gênero (depoimentos + imagens de arquivo). Pois bem: I wish I knew seria, em tese, convencional, já que Zhang-ke usa entrevistas e cenas da cidade para compor uma colcha de lembranças sobre a vida em Xangai. Mas não há nada mecânico, nada nem mesmo simples na forma como o cineasta organiza (melhor: desorganiza) as informações e, principalmente, as imagens que intercalam os depoimentos: Zhang-ke não tenta definir um retrato didático da cidade, ele parece nem acreditar nessa possibilidade. Prefere espalhar na tela fragmentos de memórias que nos permitem uma impressão de Xangai. Um filme, portanto, muito coerente com a trajetória do diretor; ainda que talvez vago, etéreo demais para quem não conhece a história política da cidade (o título em inglês resume minha frustração: I wish I knew…).
Se eu quiser assobiar, eu assobio | Eu cand vreau sa fluier | Florin Serban | 3/5 | O candidato romeno ao Oscar aplica uma grife já muito conhecida no circuito dos festivais (trama e atuações realistas, tom crítico em relação às instituições, uma câmera paciente, economia de efeitos, etc) a serviço de uma trama quadradinha: um jovem detento que precisa urgentemente sair do confinamento para resolver uma crise familiar. A situação-limite seria, por si só, insuportável; mas o filme a espreme (até o bagaço) num clímax prolongado, artificial. Melhor lembrar da primeira metade do longa, que nos transporta ao cotidiano dos personagens com aquela já típica sofisticação romena: parece simples, mas não é.
Atração perigosa | The town | Ben Affleck | 3/5 | O novo de Affleck está na programação da Mostra, mas entrou no circuito ainda na metade do festival. Um “jogo duplo”, aliás, que diz muito sobre as tentativas do filme de atrair públicos, em tese, diferentes: o fã de seriados policiais americanos e aquele espectador que talvez procure um thriller menos esquemático, com um quê reflexivo, na linha do primeiro longa dirigido pelo ator, Medo da verdade. É uma ambição saudável, mas Affleck nem sempre dá conta de dosar as intenções do filme: a história de amor, por exemplo, me parece uma bobagem típica de Jerry Bruckheimer; já o jogo de gato-e-rato entre os personagens, que rende um clímax muito forte, mostram que o ator/diretor entende de ação, está no caminho certo e talvez deva dirigir mais e atuar menos.
Drops | Mostra de São Paulo (10)

Copacabana | Marc Fitoussi | 2.5/5 | Babou é uma francesa com jeitinho brasileiro: cordial, otimista, desestressada, espirituosa, com muito jogo de cintura (também um pouquinho de malandragem; ninguém é de ferro) e o desejo quase avassalador de vestir plumas coloridas e cair no samba. O filme vê a personagem como um antídoto ao rigor por vezes sufocante da sociedade francesa – uma conclusão que, para o público brasileiro, pode soar irônica. Por sorte, o “gringo” Fitoussi tem Isabelle Huppert, que carrega uma comédia tão densa quanto um biscoito Globo.
O ultraje | Autoreiji/Outrage | Takeshi Kitano | 3/5 | Pode parecer uma contradição: depois de ter anunciado aposentadoria dos filmes sobre a máfia Yakuza, Kitano nos vem com um thriller que amplifica, agiganta, dá um close desagradável nos lugares-comuns do gênero: o sangue e a fúria. O tiroteio entre gangues rivais se torna tão repetitiva que, em vez da excitação típica de action movies, anestesia os nossos sentidos. Quando expõe exageradamente essa violência mecânica, banalizada da máfia japonesa (que não comove, que perde totalmente o significado e vira cartum), o diretor atira contra o gênero em que o filme supostamente se enquadraria. Mas, apesar de coerente com a fase autocrítica de Kitano, é um filme cujas ideias (sobre o cinema, sobre a máfia) me interessam mais do que a realização em si, que carece de uma artilharia de imagens poderosas.
Vênus negra | Vênus noire | Abdellatif Kechiche | 3.5/5 | Kechiche, o diretor de A esquiva e O segredo do grão, usa cada átomo da narrativa para esfregar nas nossas consciências o martírio da africana Sarah Baartman, exibida como atração circense para os pobres e os nobres ingleses do século 19. Não é, nem deveria ser, um retrato confortável: o cineasta organiza a trama de forma a acentuar, plano a plano, a intensidade do sofrimento da personagem, cujo corpo rechonchudo foi explorado cruelmente a serviço do comércio, do entretenimento, do sexo e, finalmente, da ciência. Os métodos de Kechiche têm um quê de chantagem sentimental (as cenas são estendidas implacavelmente dentro das 2h40 de duração; a câmera, grudada à ação, chega a pingar suor), mas eles se justificam por uma defesa incondicional, ferrenha mesmo, da dignidade humana. Como dizem, o feel-bad movie da Mostra.
Ondulação | Curling | Denis Côté | 1.5/5 | Um drama canadense projetado para preencher requisitos de festivais: paisagens exóticas (confirma!), famílias disfuncionais (confirma!), personagens lacônicos e solitários (confirma!), imagens lentas e silenciosas (confirma!), alguma reflexão sobre a banalização da violência (confirma!), roteiro inconcluso (confirma!), uma linda fotografia (zzzzzzzz).
Vocês todos são capitães | Todos vós sodes capitáns | Oliver Laxe | 3/5 | Como acontece em muitas estreias promissoras, este longa espanhol danta (às vezes sem conseguir) dar forma a um turbilhão de ideias interessantes – no caso, a meio caminho entre a ficção e o documentário. A intenção é das melhores; o resultado, um tanto vago: na trama, um diretor europeu quer fazer um filme “social” sobre crianças de um orfanato do Tânger, mas elas tomam o controle da câmera e obrigam a equipe a tomar um desvio imprevisto. Se Laxe desenvolvesse a narrativa com o mesma gana com que compõe imagens bonitas, estaríamos feitos.
Drops | Mostra de São Paulo (4)

Entre as sessões da Mostra, leio O homem do castelo alto, de Philip K. Dick. Mais do que preencher meu tempo enquanto os filmes não começam, o romance me hipnotiza de tal forma que o sistema de cotações que vocês encontram nestes drops do festival poderia muito bem obedecer ao seguinte critério: a nota mínima iria para os filmes que provocam em mim a imensa vontade de abandonar a sala de projeção e voltar ao livro, enquanto que a nota máxima ficaria com aqueles que me expulsam por completo do mundo de K. Dick. Dito isso, todos os filmes que vi ontem me deixaram com saudades do livro.
Lixo extraordinário | Lucy Walker, João Jardim e Karen Harley | 2.5/5 | O doc usa um formato informativo, pragmático, para registrar o processo criativo que envolveu o artista plástico Vik Muniz e catadores de lixo do Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro. As ambições do filme não são extraordinárias: mostrar o projeto e as pessoas que participam dele. É, digamos, simpático. Ainda assim, senti falta de um interesse menos superficial pela arte de Vik. Um longa mais forte certamente não precisaria usar trechos do Programa do Jô para orientar o espectador.
Agreste | Paula Gaitán | 3/5 | Este perfil siderado da atriz Marcélia Cartaxo mostra o quão retraída é a maior parte dos documentários sobre “figuraças” da cultura brasileira. Nas primeiras cenas, uma breve narração em off descreve tudo o que precisamos saber sobre a biografia da atriz. Imediatamente depois, Gaitán se deixa levar pelas sensações e impressões de Cartaxo. É uma divagação tão árida quanto as paisagens nordestinas do filme, por vezes tortuosa (e são muitos os que não resistem aos 78 minutos e abandonam a sessão). Não é uma experiência agradável, mas que me interessa mais do que um típico doc com depoimentos e cenas de arquivo.
O sequestro de um herói | Rapt | Lucas Belvaux | 3/5 | O thriller de Balvaux me parecia apenas um exercício sem muita ressonância (um empresário é sequestrado, mas a empresa que ele preside se recusa a pagar o resgate e cria um impasse político em torno do caso), mas é desses filmes que, aos 45 do segundo tempo, nos obrigam a rever as opiniões que formamos a respeito deles. Mais pontualmente, a virada acontece nos 30 minutos que antecedem o desfecho. É quando a narrativa, até então à mercê da ação, abre uma discussão moral que justifica muitos dos malabarismos do diretor. Termina bem, ainda que o estilão cinzento de Belvaux me pareça genérico demais.
Sentimento de culpa | Please give | Nicole Holofcener | 1.5/5 | Num mundo dividido entre pessoas sensíveis e insensíveis, uma nova-iorquina altruísta tenta enfrentar o cinismo da vida moderna. Um conselho: se você arriscar este drama lo-fi sobre famílias disfuncionais, não invente de fazer uma sessão dupla com Cyrus. No caso, ficará a impressão (talvez equivocada, tenhamos fé) de que, neste momento, o cinema ‘indie’ americano é o mais insípido e infantil do mundo. Mas são tramas e personagens que, pelo menos, produzem algo de reconfortante: eles me fazem perceber que, no fim das contas, minha vida não é totalmente uma merda.
No Twitter | 22-31 de maio
Uma compilação dos comentários-relâmpago sobre séries e filmes que postei no Twitter durante a semana. Em alguns casos, com adjetivos e interjeições que não couberam nos 140 caracteres.
Príncipe da Pérsia: as areias do tempo | Prince of Persia: the sands of time | Mike Newell | 2/5 | Está duríssima a batalha dos blockbusters abobalhados. Não sei qual é o mais palerma, se Fúria de Titãs ou Príncipe da Pérsia – esse último, aliás, é mais uma prova de que fazer os personagens saltarem no tempo é ótima desculpa para roteiristas preguiçosos.
Godard, Truffaut e a nouvelle vague | Deux de la vague | Emmanuel Laurent | 3/5 | Um doc didático e quadradinho, mas recomendo muito: as imagens de arquivo são incríveis (dois exemplos: Os incompreendidos em Cannes e entrevistas com o público à saída das sessões de Acossado).
Treme | s01e06: Shallow water, oh mama | 3.5/5 | A trama pouco avança, o que não chega a ser um problema – taí um bom momento para notar as atuações, quase todas excelentes.
Treme | s01e07: Smoke my peace pipe | 4/5 | Agora que nos afeiçoamos aos personagens, a série finalmente nos atinge com uma pancada. A cena dos caminhões é de machucar.
FlashForward | s01e22: Future shock | 3/5 | Um desfecho muito coerente com a série: pulpy, frenético, às vezes ridículo, tão sentimental quanto Grey’s anatomy.
Glee | s01e20: Theatricality | 1.5/5 | O mais pobre da temporada. A celinedionização de Poker face é totalmente constrangedora.
2 ou 3 parágrafos | Garapa
Gosto muito de Tropa de Elite, mas Garapa (4/10) não desceu.
O filme tem um objetivo muito claro: sensibilizar o espectador com imagens de dor, abandono e pobreza. Uma observação seca, num preto e branco de intensos contrastes (o estilo visual remete a Vidas secas, talvez de propósito), sobre o cotidiano de famílias que passam fome. Não há narração em off ou entrevistas com especialistas. Cinema direto. Como em seus filmes anteriores, Padilha dá o diagnóstico sem oferecer remédio para a doença social. É mesmo difícil ficar indiferente a imagens de crianças nuas cobertas de moscas, condenadas à desnutrição.
O que mais me perturbou, ainda assim, é a forma como Padilha se relaciona com os personagens. E aí vai minha insatisfação: são embates. Numa das cenas, um homem afirma um analgésico teria curado a dor de dente do filho. “Você sabe que esse remédio resolve a dor, mas não a doença?”, pergunta o diretor. O sujeito, obviamente, não entende nada do assunto. O cineasta reforça o alerta e, num diálogo curto, o filme revela toda uma carga pesada de paternalismo. Em outra cena, Padilha questiona a mulher miserável: “Se você não tem condições, por que continua a ter filhos?” Ela não faz ideia do que responder. O filme deixa transparecer essa fricção entre o homem que sabe (o diretor) e os ignorantes. Notícias de encontros impossíveis.
2 ou 3 parágrafos | O equilibrista
Neste O equilibrista (7.5/10), James Marsh conta como o francês Philippe Petit, equilibrado sobre um cabo de aço, cruzou o espaço que separava o topo das duas torres do World Trade Center, em Nova York, no dia 7 de agosto de 1974. Com clareza, o filme responde quase todas as perguntas básicas sobre esse fato: o que, quem, como, quando e onde. Mas, horas depois da projeção, nos deixa remoendo a questão que falta: por quê?
Por que Petit invadiu as Torres Gêmeas como quem assalta um banco? Por que fantasiava, desde jovem, com o desafio de apropriar-se daquele prédio? Quais as motivações daquele homem? Onde termina a busca por beleza e começa a loucura? Obsessão não se explica, mas qual seria o propósito de uma arte tão arriscada?
Perto do fim do filme, Petit ameaça uma resposta. Fala em rebeldia, em quebrar regras e lembra que, desde pequeno, gosta de “escalar coisas”. Não me convence. O diretor mostra o personagem da forma como ele quer ser visto. Não é intrusivo. As primeiras cenas são narradas como que num thriller de golpe. Mais adiante, descobrimos que, um dia antes de flutuar sobre Manhattan, o equilibrista passou a madrugada assistindo a fitas do gênero. As encenações à cinema mudo e a trilha sonora apoteótica tentam traduzir uma sensação de sublime que talvez guarde alguma relação com a filosofia de vida de Petit. De qualquer forma, é impossível saber. Por que ele faz o que faz? Acredito que o mistério, esse mistério, empresta uma terceira dimensão a um documentário que, caso contrário, seria apenas um perfil elegantemente correto. Ainda estou intrigado.