David Bowie

Os discos da minha vida (top 10)

Postado em Atualizado em

Neste episódio prateado da saga dos 100 discos que reluziram na minha vida, um great oldie que sempre vai soar jovem. Ou: nenhum top 10 faz sentido sem Bowie. Para quem não conhece, recomendo o seguinte: pule o texto (que está qualquer nota) e vá ao MP3. Em 3, 2, 1…

007 | The rise and fall of Ziggy Stardust and The Spiders from Mars
David Bowie | 1972 | download

Não ouço este disco já há algum tempo. A vantagem é que posso observá-lo com um certa frieza, sem que este texto se transforme num melodrama cósmico. Se bem que, no caso, todas as músicas começam a rodar no meu cérebro – uma jukebox alienígena – assim que leio o nome do álbum.

Ziggy Stardust and the Spiders from Mars. Ah. Este, para mim, é a piada mais sincera: um grande disco de rock e, ao mesmo tempo, uma perfeita caricatura daquilo que esperamos de um grande disco de rock. Uma farsa muito da esperta, às vezes cínica — mas que nos emociona, ô, sim.

No post anterior desta saga de 100 discos, tentei explicar meu amor por Doolittle, do Pixies. Não consegui. Este aqui me parece um caso mais fácil. É que o disco de Bowie consegue (naturalmente!) combinar ironia e afetuosidade, em medidas equivalentes. E essa alquimia é a poção mágica que sempre procurei em filmes, livros e que, mais tarde, eu tentaria (sem sucesso, eu sei) aplicar aos meus textos.

O que Bowie faz é complicadíssimo, mas às vezes parece tão jocoso — quase vulgar — que muitos fãs do sujeito preferem se escorar em álbuns mais respeitáveis: Low, até Aladdin Sane. Ziggy soa como uma troça, uma charge grotesca dos excessos de popstars. É ingênuo. É pueril. Parece até que pede para não ser levado a sério.

Mas vamos lá: é nesse formato teatral, camp, debochado, que Bowie encontra os balangandãs para cravar os dentes num pop melódico, fácil, maquiadíssimo. É desse desejo pelo chiclete mais doce que surgem canções como Moonage daydream e Suffragette City. Conheço poucos discos de rock que soam tão viciantes. Parece que ele ri da nossa cara: você vai ter vergonha de amar tudo isso com tanta intensidade.

Essa, no entanto, é só a parte mais rasteira da lenda.

Lembro que descobri o disco numa época em que eu estava fissurado em Daft Punk e Air — principalmente na forma como os franceses iam buscar no pop mais fuleiro, kitsch, as sucatas para converter em love songs futuristas, soft rock com coração, synthpop de morango (e aqui, meu irmão, não estamos falando em sarcasmo, mas em amor pelo sarcasmo). O disco de Bowie, naquele contexto, me parecia um elo perdido.

Daí que, quando descobri Ziggy Stardust, me vi abandonando todas as minhas bandas preferidas para dar um mergulho na gelatina de Bowie. Descobri álbuns extraordinários — e personagens que renderiam as mais surreais das graphic novels. Mas Ziggy permaneceu acima de todos: era o disco para onde eu voltava todas as tardes, faminto, como quem faz questão de exagerar na sobremesa.

São dois efeitos provocados pelo disco, e acho que eles se complementam: pode ser ouvido como uma das mais perfeitas coleções de hits (e existe outra tão adorável?), e também como uma sci-fi delirante sobre uma década que explodiu em glicerina, purpurina e teclados estridentes (no fim do disco, quando nosso herói sai melancolicamente de cena, começam os anos 80).

Dizem que o álbum ajudou na invenção de um gênero (o glam rock). Pode ser que sim. Minha relação com ele é descomplicada: desde a primeira audição, entendi onde eu pisava. Adolescentes gostam de implodir os clássicos, certo? Em mim ele provocou o mesmo impacto dos primeiros discos dos Beatles: antes que eu pensasse em avaliá-lo objetivamente, eu já estava hipnotizado, perplexo, flutuando no espaço sideral. Top 3: Moonage daydream, Ziggy Stardust, Soul love.

Após o pulo, veja os outros discos que apareceram neste ranking.

Leia o resto deste post »

Os discos da minha vida (36)

Postado em Atualizado em

Os 100 discos da minha vida, edição especial. Edição comemorativa. Ou algo assim.

Minto, minto. Todas as edições deste ranking são especiais. São porque elas mexem aqui na minha essência, no meu eu interior, nas profundezas das minhas sensações, no lado esquerdo do peito. Você sabe como é, meu irmão. Admito que tenho um pouco de medo de escrever sobre esses disquinhos. Medo de ter um ataque cardíaco e desabar aqui no chão gelado do apartamento.

Sério! Ok. Não tão sério.

É que (repetindo toda a ladainha que vocês curtem à beça) este é um ranking estritamente pessoal, com os discos que abalaram a minha vida, portanto não espere encontrar indicações lúcidas sobre as obras fonográficas mais influentes, importantes, ambiciosas (deus!) da música pop. Não. É só uma listinha modesta, criada com um tanto de orgulho e outro de desleixo, mui sentimental, honesta, digna e que (ainda) está na flor da idade.

Ninguém quer saber dela, mas ela não tá nem aí. Se é que vocês me entendem.

Novidade! A partir desta edição, você pode clicar num linkzinho ali embaixo e conferir o restante do ranking. Pra refrescar a memória. Recordar é viver.

No mais, os dois discos de hoje não são apenas obrigatórios. São incontornáveis. Históricos. Fundamentais. São diamantes. São coisinhas tão bonitinhas do pai. São créme de la créme. E tudo o que mora acima desses elogios todos.

030 | Nashville skyline | Bob Dylan | 1969 | download

Em 1969, este não era o disco que o mundo queria de Bob Dylan. Ele, o auteur folk que trocou violões por guitarras, deveria estar matutando algo mais complexo: era uma época em que o rock era a arte moderna que todos os garotos sabidos da classe queriam experimentar. Mas nosso herói resolveu sacar não o álbum que esperavam dele, mas aquele que queria gravar. Que parecia, em tese, uma bolachinha singela: uma coleção curta de country rock sobre os momentos felizes na vida de um sujeito que (por um momento) encontrou na vida doméstica uma espécie de idílio. Nashville skyline se entrega já na capa: Dylan sorri como nunca antes, segura o chapéu num gesto elegante, encara a câmera sob o sol de um dia quente. Pois é nesse álbum tão banal, tão pouco inventivo, que o homem o conforto, a plenitude, a paz de espírito e o amor. É tão bonito que machuca (já que nós, pobres ouvintes melancólicos, estamos sempre à procura desses momentos totalmente felizes). E, se vocês buscam um motivo prático para colocar este disco pequeno entre os seus favoritos, Dylan canta como se estivesse descobrindo a própria voz. Uma interpretação serena, despreocupada, sublime – de um jeito que não existe em nenhum outro álbum do homem. Top 3: Tonight I’ll be staying here with you, Lay lady lay, Girl from the North Country

029 | Low | David Bowie | 1977 | download

Quando descobri a discografia de Bowie (aos 15, 16 anos), decidi seguir o itinerário sem grandes estripulias: em ordem cronológica, álbum a álbum. Parecia que eu havia embarcado num foguete que se afastava lentamente do solo. Desde o começo da carreira, o compositor se cercou de símbolos de ficção científica, talvez por não encontrar outra forma de definir uma sonoridade ao mesmo tempo mutante e imprevisível, lost in space, flutuando em gravidade zero. Quando cheguei a Low, bateu em mim a desconfiança de que não havia mais para onde ir: a nave chegou ao ponto mais extremo da viagem. Era como se nosso comandante tivesse decidido abandonar todas as convenções mundanas que ainda apareciam nas jornadas anteriores para se escorar num estilo ainda virgem, ainda em gestação. Work in progress. Expedição inacabada. Nos discos posteriores, o encontro com o produtor Brian Eno ganharia um formato mais preciso, mais palpável. Mas foi em Low que Bowie dividiu com o público o prazer da descoberta de um planeta exótico, de um som novo. Ele gravaria ainda meia dúzia de belos discos: nenhum tão insólito quanto este. Top 3: Sound and vision, Speed of life, Warszawa.

Após o clique, confira os discos que já apareceram neste ranking.

Leia o resto deste post »

Superoito express (32)

Postado em

The age of adz | Sufjan Stevens | 8.5

Quem ouve apressadamente este The age of adz pode ficar com a impressão de que Sufjan Stevens escolheu um itinerário semelhante àquele que M.I.A. e MGMT tomaram recentemente: a aventura da autosabotagem. Afinal de contas, esta zoeira de ruídos eletrônicos, orquestrações pomposas e arranjos sinuosos é o sucessor de  Illinois (2005), o disco que fez de Stevens uma espécie de Colombo indie. Uma parte numerosa do público, que não acompanha os “projetos paralelos” do músico, possivelmente ainda espera dele uma nova fornada de crônicas americanas narradas com uma caligrafia delicada e pessoal. Esses continuarão esperando, já que The age of adz é um desvio de rota.

Se Illinois era uma viagem de dentro para fora (o homem investiga o país e se enxerga nele), The age of adz se volta a um território sentimental, íntimo. Viagem ao redor do próprio quarto. Mas, ao contrário do EP All delighted people (que apontava para a sutileza folky de Illinois e especialmente de Seven swans), The age of adz envolve essas confissões de Stevens numa colcha de excessos – com barulhinhos, coros angelicais e furacões de sintetizadores -, numa explosão cósmica que nos atira diretamente ao buraco negro do prog rock dos anos 70. 

Quanto mais ouvimos o disco, mais fica claro que a provocação não é gratuita – ele não foi planejado como um suicídio comercial, mas como afirmação de princípios. É como se as faixas, quase sempre incontroláveis, refletissem um compositor de pulsos abertos, afetado por decepções amorosas (e I walked é uma canção de despedida muito direta e tocante), desejo de espiritualidade (Get real, get right), medo da passagem do tempo (Now that I’m older) e outras crises que se enfrenta aos 35 anos. A reação de Stevens a esse cataclisma informa a música que ele produz, mais tensa e caótica do que de costume: The age of adz vai desagradar a quem o conhece como o bom-moço capaz de escrever melodias agradáveis que inspiram publicitários e fãs de Belle and Sebastian; e vai confirmar a fé dos que procuram em Stevens um artista.     

Pop negro | El Guincho | 7

Pop negro soa como o “lado A” de Alegranza! (2008), um disco mais labiríntico (e que me parece mais denso e interessante) do que este aqui. O espanhol Pablo Diaz-Reixa continua combinando loops siderados como um legítimo herdeiro do Animal Collective, mas desta vez ele usa esse método a serviço da sensação de conforto e euforia que se espera de um disco pop. É um álbum que, por isso, deve até incomodar os fãs do anterior – muitas das canções soam como remixes nada radicais para o repertório do Mutantes ou de bandas como Café Tacuba e Aterciopelados. Dito isso (e quebrada essa resistência em relação ao disco), o que fica é a ótima impressão de que Pablo sabe como extrair o sumo de boas canções comerciais e contaminá-lo com psicodelia. É uma festa boa, quente, e que não nos aborrece em momento algum. E ela termina tão rapidamente que dá vontade de ficar ouvindo o disco sem parar.    

Maximum Balloon | Maximum Balloon | 6

Um disco criado para nos provar que Dave Sitek (o “cientista louco” do TV on the Radio) também curte a vida adoidado. Não que ele consiga nos convencer totalmente disso (o pop “desencanado” do sujeito se revela tão engenhoso, tão excessivamente maquinado quanto qualquer outra coisa que ele produziu), mas consegue algo raro em discos superpovoados por participações especiais: ele dá ao som do Maximum Balloon uma unidade forte, como se adaptasse as referências do TV on the Radio (Bowie, Byrne, pós-punk) ao clima febril de uma pista de dança. Agora é esperar que, nos próximos discos do projeto, ele consiga usar essa sonoridade para criar canções tão boas quanto Young love, das poucas que me interessam aqui.

Postcards from a young man | Manic Street Preachers | 6

Depois de reencontrar a fúria (e a ansiedade adolescente) no ótimo Journal for plague lovers (2009), o Manic Street Preachers retorna ao ponto em que haviam parado em Send away the tigers (2007). Isto é: de volta às tentativas de fabricar rock de arena, comercial até a costela, com alguma dignidade. Sabemos que, nesse aspecto, eles não têm noção de limites: daí momentos constrangedores como Hazelton Avenue, que rouba o riff the It ain’t over til it’s over, de Lenny Kravitz. Mas o disco anterior parece ter energizado a banda, que parece mais confiante do que nunca na luta para voltar ao trono do britrock. Quantos euros o Bon Jovi pagaria para escrever uma canção como (It’s not war) Just the end of love? De volta à realidade, pois.

False priest | Of Montreal

Postado em

Kevin Barnes, nosso herói. Nosso Scott Pilgrim (15 anos depois). Nosso Ziggy Stardust (transfigurado por efeitos grotescos de Photoshop). O homem, o mito, o supergeek.

No episódio de hoje, preparem-se: Kevin namora uma colegial, enfrenta o mundo e grava um disco pop. Mais ou menos nessa ordem.

Antes, um rápido flashback: no gibi anterior, Skeletal lamping (de 2008), o intrépido protagonista se transformou em George Fruit, um “homem negro que passou por várias mudanças de sexo”. Agora, pelo menos aparentemente, o band leader do Of Montreal está de volta ao normal.

Skeletal lamping era uma graphic novel proibida para menores de 21 anos, com cenas de sexo, perversidades à rodo, sarcasmo refinado, black music safada, desejos carnais. E um narrador com déficit de atenção. Cada uma das páginas se desdobrava em duas, três ou trezentas. Uma sandice.

(Também era, falando a sério, um disquinho corajoso, que radicalizava o temperamento frenético e bipolar do Of Montreal. As canções se confundiam umas com as outras, se perdiam e não se encontravam, iam da euforia à depressão em questão de segundos).

Mas essa fase passou. False priest é um mangá adolescente, proibido para menores de 14 anos, tão perigoso quanto aquele pônei que sua irmã pequena sonhava em ganhar de presente. Mas falsamente ingênuo. Falsamente infantil. Um gibi pop escrito por um sujeito de 36 anos.

De certa forma, Kevin nos preparou para essa mutação. Apareceu, quase domesticado, no disco da Janelle Monáe (que retribui em duas músicas novas). Lançou um EP com faixas remixadas por Jon Brion, um fã de power pop (que produziu Fiona Apple e Kanye West). E, agora, solta um disco que ele descreve como “ear-candy”. Um doce.

Primeira grande mudança: ao contrário de Skeletal lamping (e até do agoniado Hissing fauna, are you the destroyer?, o melhor disco que ele gravou), Kevin passa a namorar um formato de composição que se aproxima do convencional. As faixas estão quase sob controle: têm verso e refrão, raramente grudam umas nas outras, têm DNA de rhythm & blues e deliram de olhos abertos.

Exemplo: Coquet Coquette começa como um hit do Black Keys, com guitarras de blues-rock e um refrão grudento, e depois, lá no fim, vai se perdendo numa névoa de space-rock, até finalmente congelar no espaço. Dura 3:44.

Outro exemplo: Famine affair começa como guitarras mecânicas à Phoenix (via Strokes), embala no hard rock, tem um interlúdio amalucado (com coros, manhas psicodélicas), e depois volta ao começo, repetindo o refrão. Dura 3:49 (e é a minha preferida do disco).

Essa estrutura se repete em quase todas as faixas, como se Kevin compactasse o estilo do Of Montreal dentro de um pote de geleia de morango. Quem acompanha a banda já conhece quase tudo o que está neste disco, mas nunca de uma forma tão polida, tão imediata, tão calorosa (mais intrumentos, menos sintetizadores!), tão oferecida, tão Jackson Five meets David Bowie. Jon Brion, é possível especular, domou os chiliques de George Fruit.

Seria gratuito, mas o novo visual veste muito bem o Kevin teenager que passeia por essas canções. Ele define o disco como uma obra-prima (não é tudo isso!) talvez por entender que está escrevendo crônicas da juvenília que soam tão ardidas, tão irônicas quanto as de um Damon Albarn, de um Jarvis Cocker. Our riotous defects é talvez a melhor que ele compôs, sobre uma “garota maluca” que testa os nervos do narrador. “Eu até ajudei o seu blogzinho estúpido”, reclama Kevin, mais Scott Pilgrim do que o próprio.

E maravilhas desta estirpe: “Coquete, com você eu só consigo ver constelações de luz negra. E outras merdas que não tenho o vocabulário para descrever.” (em Coquet Coquette).

Isso quando o rapazinho não inventa uma passagem secreta entre a discoteca e o hinduísmo. “Levei séculos para me especializar em você. Na próxima vida, vou precisar aprender mais rapidamente” (em Sex karma, com participação de Solange, irmã da Beyoncé). Ou quando não nos surpreende e, num rompante, se rasga todo. “Se eu tratasse outra pessoa da forma como eu me trato, eu estaria na prisão” (Girl named hello). As crises depressivas vêm no pacote, vide a lindíssima Casualty of you e o desfecho esquizo You do mutilate?.

Para seguidores calejados, False priest pode parecer um passo em falso rumo às paradas de sucesso. Uma distração. Ok, ok, Kevin merece chegar lá e está fazendo o possível. Mas, antes que o crucifiquem, o disco também deve ser lido como um sobrinho de Midnite vultures, do Beck: uma traquinagem pós-moderna, dançante e tola as hell, que se diverte (e, ao mesmo tempo, faz graça) com pedacinhos de hits ultracomerciais dos anos 70 e 80. Uma bobagem seríssima.

Prince acusaria de plágio. Já o Girl Talk daria um sorriso. E Kanye West pediria autógrafo. Temos ou não temos o disco pop mais sem-vergonha do ano?

Nosso herói.

Décimo disco do Of Montreal. 13 faixas, com produção de Kevin Barnes e Jon Brion. Lançamento Polyvinyl Records. 8/10

Congratulations | MGMT

Postado em Atualizado em

Você já foi o primeiro da classe? Eu já. E garanto: não é tão divertido quanto parece.

Foi assim: aos 14, eu era um aluno muito tímido e, por isso, discreto – daqueles meninos invisíveis que fazem o possível para não tirar notas inferiores ou superiores a 7. Sempre 7. Naquela época, minha meta era desaparecer na lista de chamada. Eu vivia para não ser notado: preferia as roupas em tons neutros, podava meu cabelo com máquina 3 e lia revistinhas do Batman. Meus amigos me tratavam como um chapa razoavelmente bacana, já que eu era igual a eles. E as garotas, como que por tradição, me confundiam com as pilastras do colégio. Mais tarde descobri que todos – meninos e meninas, sem exceção – éramos simplesmente desinteressantes. Uns comuns.

Mas, naquela época, eu ainda era um rapazinho muito inocente. Tão ingênuo que, num surto de vaidade e fôlego olímpico, resolvi gabaritar uma prova de português. Não que eu precisasse dos pontos no boletim (eu era um estudante nota 7!), mas, na falta de algo melhor a fazer, resolvi me desafiar. Estudei duas horas por dia e, um touro!, tirei 10. O único 10 da classe. Os meus amigos começaram a me evitar na hora do recreio. Quando tirei meu segundo 10, comecei a receber sorrisos orgulhosos da professora. As garotas passaram a me encarar como uma geladeira vazia. No mês seguinte, milagrosamente, eu era o representante da turma numa maratona de gramática.

Aceitei. Eu mal sabia que, meu amigo!, aquela seria uma das experiências mais desagradáveis da minha vida. Passei três horas trancado numa sala gelada, preenchendo lacunas em textos de revistas semanais e respondendo questões enigmáticas que faziam minha cuca ferver. Saí da sala desencantado, insatisfeito com aquela sina solitária. Para meu alívio, fiquei em último lugar na competição. Salvei minha pele. Após cinco ou seis valentes notas 7, recuperei meu lugar entre os medíocres.

Às vezes acho que estou lá até hoje.

Mas chega de devaneios. Fim do flashback. E o que essas lembranças tão tolinhas têm a ver com o disco novo do MGMT?, você me pergunta. Eu respondo: é que eu entendo o que acontece com o MGMT. Sei muito bem que um hit pode representar uma espécie de condenação.

Meus hits (as notas 10 em português) me colocaram numa desconfortável posição de destaque diante dos meus colegas invejosos (mas muito queridos). Transformaram o Tiaguinho Sem Qualidades num cidadão de primeira classe (e tudo o que eu queria era me espreguiçar nas poltronas econômicas!). Os hits do MGMT fizeram estragos mais profundos: converteram Ben Goldwasser e Andrew VanWyngarden em astros pop. Lá no topo da classe. Gabaritaram o teste das rádios. Hoje sabemos que não era bem esse o objetivo deles.

Mas não é mesmo extraordinário ser um astro pop? Fama, moçoilas afoitas, programas bizarríssimos de auditório, clipes com CGI, trilha sonora de comédia retardada, contratos extravagantes, mansões em Miami Beach, champanhe e cerejas. Quem não quer? Mas e se você nunca tivesse desejado sinceramente nada disso?

Não conheço Ben e Andrew (e eles me parecem uns sujeitos bem convencidos), mas a história de Congratulations é essa aí: depois de acertar com três hits grandahões (Time to pretend, Kids e Electric feel), eles resolveram se dedicar ao que importa (a eles): reatar com os antigos amigos da turma do indie rock. Para os fãs, pode parecer uma reviravolta frustrante: aquela bandinha tão simpática, que se deleitava com o algodão-doce radiofônico, decidiu gravar um disco sem singles, sem gosto de milkshake de Ovomaltine, uma trava-língua psicodélico sem um único candidato a chacoalhar o assoalho e sangrar a pista de dança.

Sim, é um mistério. A Sony que se cuide. Enfezado, o MGMT penaliza os fãs que se deixaram enfeitiçar pelos três hits (e só por eles). Aposto que são muitos. Se você ignorar essas três faixas, o disco anterior deles (Oracular spectacular, de 2007, superestimado toda vida) soará até parecido com este novo: uma homenagem singela, mas carinhosa, ao rebanho sagrado do rock lisérgico, de Love a David Bowie, de Roxy Music a Syd Barrett.

Congratulations é a continuação desse álbum “paralelo”, adquirido por um milhão de pessoas, mas incompreendido por quase todas elas. Nos shows, sempre muito confusos, a dupla sofreu com comentários de que só os hits faziam a diferença (sorte a nossa: eram três!). Daí o salto corajoso: Ben e Andrew podiam simplesmente bolar mais um LP irregular porém acessível (e ninguém reclamaria disso: álbuns são tão démodé!). Mas preferiram gravar um disco que finalmente honra as influências setentistas do grupo – um disquinho coeso e esperto que quase mereceria ser chamado de “conceitual”.

Nada de efeitos rasteiros, portanto. Preocupado em criar uma obra respeitável (taí uma ambição saudável e difícil), o MGMT compôs um disco menos para os fãs e mais para os ídolos. Repare que duas músicas são homenagens: uma a Dan Treacy, da inglesa Television Personalities, e outra a Brian Eno (o Eno sapeca do Roxy Music, e não aquele que zanza por aí produzindo o Coldplay). As outras, ainda que não explicitamente, são declarações de amor: a de abertura, It’s working, é o mais próximo que eles chegaram de sintonizar as vibrações de Arthur Lee. E Siberian breaks, com 12 minutos, se desdobra infinitamente num épico esquizo com um quê de Frank Zappa. Parece até a trilha para o funeral da new rave.

Escalar esse arranha-céu sem o escudo dos hits é o desafio imposto pela banda. Com versos sobre a ressaca do sucesso, Congratulations até pode ser considerado a estreia deles no mundo dos álbuns. Como se, no encarte, eles reconhecessem que tomaram o caminho equivocado e, por isso, merecem uma segunda chance. Acontece que, nessa versão mais vulnerável, o MGMT revela fragilidades que já existiam no disco anterior: acima de tudo, a forma superficial como eles tratam referências que, nas mãos de um Beta Band (ou até de um The Coral), rendem experiências menos genéricas.

O importante é que Congratulations promete ao MGMT alguma longevidade. A partir de agora, podemos levá-los um pouco a sério. Talvez, no fim das contas, Ben e Andrew tenham mais admiração pelo Flaming Lips do que pelo Empire of the Sun. Não estão apressados para chegar ao fim desse arco-íris fluorescente. E, enquanto batem perna, estão dispostos a deixar pelo caminho álbuns sinceros, imperfeitos, álbuns quase à moda antiga, como este aqui. Um típico (e valente) nota 7.

Segundo disco do MGMT. Nove faixas, com produção de Pete Kember e do MGMT. Lançamento Sony/Columbia. 7/10

PS: Para quem acompanha este blog (vocês são poucos, mas são vips), informo que vou postar a mixtape de março às 21h de quarta-feira. Estão avisados: não quero ninguém reclamando quando os arquivos evaporarem, ok?

Superoito express (17)

Postado em

Hidden | These New Puritans | 8

O segundo disco do These New Puritans é a trilha sonora não-oficial (e ok, não-intencional) para De olhos bem fechados, de Stanley Kubrick. Talvez inspirados pela jornada de Tom Cruise na noite escura, o quarteto inglês escreveu um ciclo de canções que oscila entre o delirante (juro que não entendi a letra de Hologram, que lembra um Thom Yorke depois da terceira dose de Red Bull) e o operístico (We want war é um espetáculo em 3D com início, meio, fim e pelo menos duas variações de humor).

Vivemos numa época que exige muito de bandas de “art rock” — o conceito parece ter se diluído em todo canto (o disco novo da Shakira, por exemplo: tem gente dizendo que é um bocadinho arty). O TNP banca o desafio sem medo de engasgar com o próprio veneno. Daí que Hidden soa, nos momentos mais bizarros, como uma colaboração insana entre System of a Down, TV on the Radio, M.I.A. e Why. Seria só virtuosismo e falta de noção, não fosse o feixe de melancolia que amolece todas essas loucas melodias.

There is love in you | Four Tet | 7.5

Desde o inesquecível Rounds (2003), Kieran Hebden me decepcionava por compor dentro dos limites de uma zona de segurança que, para ele, parecia cada vez mais confortável. O novo do Four Tet mostra um geniozinho novamente irrequieto, ainda que se movimentando em direção a uma eletrônica mais previsível. É o álbum menos irregular que ele já gravou, sim, mas também o menos aventureiro. Dito isso, Hebden reencontra o equilíbrio entre dance music, sensibilidade ambient (Brian Eno adoraria tudo isso), um senso de melodia próximo do pop e barulhinhos quase sempre sublimes. Os melhores momentos do disco são também alguns dos maiores do ano: a fantasmagórica Angel echoes, a sensual Love cry, a hipnótica Sing. Diante dessa trinca, nem dá para reclamar muito.

Broken Bells | Broken Bells | 6

Devo admitir que sujeitos hiperativos e agoniados como Brian Burton — o seu, o nosso Danger Mouse — me incomodam um pouco. É que, apesar dos esforços para despertar simpatia, eles simplesmente não conseguem se concentrar. Daí que, pouco depois de trocar pílulas coloridas com o Sparklehorse no disco Dark night of the soul, cá está o moço novamente entre nós, à frente de mais um projeto interessante porém prematuro. No caso desta parceria com James Mercer (The Shins), o bolo também sai do forno meio solado: as canções, que não fogem da fórmula do Shins, ganham uma maquiagem apressada do produtor e DJ. Poucas respiram, como o single The high road (Beck cuspido e escarrado) e a maresia psicodélica de Sailing to nowhere, cujo título resume o disco.

Scratch my back | Peter Gabriel | 3

Se a ideia era criar uma longa, lenta marcha fúnebre para a música pop, Peter Gabriel conseguiu: difícil ouvir este disco até o fim sem ficar com a impressão de que o sujeito está matando alguma coisa. Produzido por Bob Ezrin (The wall), esta coleção aleatória de covers bate em duas teclas: ora soa como muzak superproduzido (com arranjos apoteóticos de cordas), ora como um pocket show movido a piano e voz. Os novos arranjos são enigmáticos: só pode ser irônica a forma como Gabriel infla uma canção do Magnetic Fields e ameniza todo o drama que existe nas confissões de Bon Iver ou em Heroes, de David Bowie, que abre o disco. A interpretação é sempre triste, cabisbaixa, como quem pede desculpas pelo golpe baixo. Mas taí: na próxima ida ao dentista, talvez você ouça uma música do Arcade Fire.

2 ou 3 parágrafos | Lunar

Postado em Atualizado em

Desde o lançamento de Avatar, ouço a reclamação de que, apesar de todo o deslumbramento visual, o filme de James Cameron tem um problema: a trama é fraca. A esses, indico Lunar (Moon, 6/10), uma ficção científica muito engenhosa — mas que, pelo menos na tevê lá de casa, não pareceu nem um pouco hipnótica.

Duncan Jones, o diretor (e filho de David Bowie), tenta uma provocação sobre a ética da ciência. Para isso, joga com as expectativas do público, que fica meio perdido entre personagens que, isolados numa estação espacial, podem ou não ser clones. Como reconhecer um ser humano?, eis a questão. Sam Rockwell embarca no delírio solitário como quem tenta superar o Robert Duvall de THX 1138.

As ideias são até atraentes; o visual, old school (e, como Avatar, Jones cita um punhado de fitas de ficção científica, de 2001 a Alien). Mas me incomoda a falta de domínio da narrativa, a dificuldade de traduzir as filosofices em situações vivas, fortes, singulares. Parece até que a trama está emperrada, embolada. E, se é assim, do que adianta uma trama supostamente complexa? Em matéria de clareza e fluência, ninguém tem muito a reclamar de James Cameron. E me parece um erro essa história de confundir ficção científica inteligente com ficção científica que, às custas da nossa paciência, se faz de inteligente. São duas coisas bem diferentes. De aparente simplicidade, o mundo de imagens criado em Avatar me parece mais autêntico.