Dan Boeckner

Sound Kapital | Handsome Furs

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Eu não esperava encontrar tanta melancolia, saudade e (alguma) dor profunda no momento em que resolvi trancar a matrícula na academia de ginástica. Mas foi o que aconteceu, amigos. Foi o que aconteceu.

Este não é um blog dissimulado. Portanto, devo contar a história inteira, sem esconder os capítulos mais ridículos.

Aconteceu que, naquela manhã fria de sexta-feira, a gerência da academia decidiu reajustar o valor da mensalidade. Já era cara. Muito cara. Mas (foi o que descobri) não o suficiente. Usaram a desculpa inevitável (a renovação muito tardia dos equipamentos) para anunciar a facada. Só que o golpe foi inesperado. Tão inesperado que minha mochila escorregou do meu ombro e caiu no chão.

“Não posso pagar”, avisei, num sussurro.

A secretária me olhou com falsa piedade.

“ Você pode fazer o plano anual”, ela declamou, como quem lê um panfleto invisível. “Vai pagar menos, e ainda vai ter direito a trancar a matrícula nas férias.”

Não parecia tentador.

“Sabe o que é?”, e o sussurro virou quase um código silencioso, “É que eu não posso fazer planos. Nenhum plano. Não sei o que vai acontecer comigo. Não sei, minha vida pode mudar completamente em uma semana, um mês. Não sei. Não posso”, e fiquei mudo por alguns segundos, já com a testa franzida, palpitando em agonia.

A reação da secretária me surpreendeu. Em vez de compreender a situação, ela foi um pouco mais fundo. Novamente, o golpe me pegou de surpresa.

“Tiago, olha só: você diz isso sempre. Que não pode fazer planos. Mas já está aqui há três anos. Nada mudou”, e ela tratou de sublinhar com tinta amarela a palavra “três”.

A observação (muito atenta, talvez indiscreta) acabou desatando um engarrafamento de dominós em queda. Primeiro tranquei a academia, num ato instintivo de vingança. Depois passei a manhã inteira metido em divagações muito tristes, numa auto-terapia angustiante. A secretária da academia me abriu os olhos: há três anos, há três anos não consigo fazer planos.

Nem preciso dizer que foi uma malhação vagarosa e especialmente dolorida. O sentimento de fadiga nos braços e nas pernas não foi maior do que o peso de alguns halteres na minha consciência. Por que passei tanto tempo nesse estado deprimente de incerteza? E por que (pergunta mais difícil) eu ainda me encontro preso nesse limbo?

As questões, é claro, ficaram sem respostas.

Depois fiquei me perguntando (mais perguntas!) por que tranquei a matrícula de uma forma tão destemida, decidida, como se não houvesse amanhã. É claro que sofri muito com a decisão (não consigo me desapegar facilmente nem de uma xícara velha), mas notei que estou numa fase de desapego, de mudança, de rupturas quase desesperadas (ainda que patéticas). E que a transformação está acontecendo um pouco antes do início da Grande Aventura.

Percebo que, talvez inconscientemente, estou lacrando as caixas com os meus pertences. Fechando tudo antes que chegue o caminhão de mudança. Saindo, indo.

A despedida da academia coincide com o período em que tudo na minha vida passou a parecer datado: meus discos, meus livros, meu carro, o apartamento onde moro, meu blog. É como se tudo isso pertencesse ao passado.

Também coincide, é claro, com o começo de um namoro que está transformando a minha vida. Transformando e transformando profundamente. Porque é a primeira vez que sinto, de verdade, que ganhei o direito a fazer planos. E planos sérios, que vão durar.

O episódio da academia, somado a tantos outros pequenos sinais do cotidiano, foi apenas o gatilho para que eu notasse algo mais grave: que estou pronto para, finalmente, começar.

Estou pronto para quebrar o movimento circular de uma vida sem planos.

Parece um alívio, certo? Mas não é um sentimento simples. Porque, por mais que se tente simular valentia, é sempre penoso começar. Bate nervosismo, tensão, frio na nuca. Não se sabe por onde. Não há quem dê conselhos. Os amigos não ajudam tanto quanto gostariam. Os pais não entendem. Não escreveram muitos livros (plausíveis) sobre o assunto. Não tem manual. A solução não está no Google.

E parece ainda mais complicado começar aos 31 anos, quando todas as pessoas partem do princípio (muito sensato) de que você já começou. Ou de que já deveria ter começado. Você se sente um pouco velho para zerar o placar. Mas também novo, jovem, disposto, entusiasmado, ainda que os outros não percebam nada disso.

Esse desejo de seguir em frente chegou com tanta força que me desapaixonei um pouco pelos discos e pelos filmes, os deixei em segundo plano. Não são muitos os que me comovem. Os bons livros me parecem um pouco mais tocantes, já que contém o tipo de complexidade enlouquecedora que bate à minha porta.

E é por conta dessas mudanças todas, acho, que este blog anda tão abandonado. Mas não tenho coragem de me desfazer também dele, de trancar esta matrícula e seguir adiante. Talvez, pensando bem, retratar essa fase estranha e complicada acabe garantindo alguma utilidade a ele. Não sei ainda.

No mais, talvez vocês queiram saber sobre filmes e discos. Não é uma boa hora. Entendo que há discos muito bons por aí, continuo ouvindo dezenas deles, e sei analisá-los com distanciamento (o do Bon Iver, o do Cults, e alguns outros). Escrevo resenhas para o jornal; este é um trabalho que faço com prazer e curiosidade.

Mas, no tempo livre, são poucos os discos que me sequestram. Sound Kapital, do Handsome Furs, é desses. Talvez não seja grande. Duvido que seja importante. Mas ele vai espelhando este meu período de vida. Talvez por se movimentar para frente, mundo adentro, e num ritmo frenético, urgente, às vezes histérico, chutando portas e fazendo malas.

Este é o terceiro CD da dupla formada por Alexei Perry e o marido Dan Boeckner. O mais luminoso e enérgico (características que notamos logo de cara), e o menos estático (as faixas foram compostas e gravadas durante a turnê da banda, em vários lugares do planeta). Ir embora é um dos temas do disco. Ir embora e voltar diferente, outro. A primeira música se chama When I get back e o refrão vai assim: “Quando eu volto, nada parece a mesma coisa”. Há uma que atende por Repatriated. Eu entendo tudo isso.

Também é, por consequência, um disco sobre a terra desolada que aparece após a mudança, depois do apocalipse pessoal. Sobram lembranças meio enevoadas (Memories of the future) e música rasteira (Cheap music), ecos em sintonia borrada. “Não há hits porque não existe mais rádio”, canta Dan. É um mundo ainda a ser explorado.

No site da Sub Pop, não fazem questão de nos avisar que este é o primeiro disco do Handsome Furs após o fim do mundo (ou: após o fim do Wolf Parade, ex-banda de Dan, que entrou num hiato por tempo indeterminado em maio de 2011). É uma informação importante, que nos ajuda a entender por que Sound Kapital é um disco cheio de grandes compromissos: um álbum que parece começar de novo. Antes, o Furs era um “projeto paralelo”. Hoje, é o ganha-pão do canadense.

Essa mudança de perspectiva pode parecer uma bobagem, mas me parece capital (perdoem o trocadilho) para o disco — e acredito que é isso, exatamente isso, que me aproxima tanto dessas músicas. Hoje, Dan faz do Handsome Furs uma máquina estridente, tecnológica, que revisa o rock eletrônico dos anos 1980 (New Order, Depeche Mode) com uma fúria, uma virulência que lembra muito o tom de celebração e libertação do último disco do Wolf Parade, Expo 86.

Os críticos que desprezaram aquele álbum possivelmente vão ignorar Sound Kapital. Talvez eles não entendam (ou não admirem) a maior qualidade do Wolf Parade, que é recarregar as baterias do pós-punk, feito de guitarras e uivos. Existe uma energia primal em jogo. O importante, no caso deles, não é tanto o esforço por originalidade, mas gana e empolgação. Qualidades por demais abstratas, que dificultam o trabalho de quem ama a banda e quer defendê-la.

São características que não faltam ao Handsome Furs. Por isso, acredito que o fã do Wolf Parade não terá dificuldades para cair de paixão por este disco. Como a transição de Peter Hook entre o Joy Division e o New Order, Dan altera a coloração do estilo sem mover o que há de essencial no que sempre fez: são músicas que não negam o poder do rock de instalar revoluções nos nossos headphones. De instigar mudanças. De nos surpreender com empurrões e rasteiras. De nos eletrizar.

Sound Kapital tem apenas nove músicas. Conheço todas de trás para frente. Amanhã, vou para São Paulo ficar três semanas na casa da minha namorada. Pode ser que esta se transforme na trilha sonora deste recesso. Um período que possivelmente vai me transformar num homem ainda menos apegado à minha vidinha antiga. Quando eu voltar, desconfio, nada vai parecer igual.

Terceiro disco do Handsome Furs. 9 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Sub Pop. 8/10

Expo 86 | Wolf Parade

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Blogs são depósitos de bobagens, não são? Não tem editor olhando, então fulano se sente confortável para escrever qualquer sandice. Não tem produtor bancando, então sicrano vai lá e faz textos quilométricos, que não terminam nunca e mal fazem sentido. Quase não existe público, daí beltrano pode andar pelado na cozinha, pagando mico à vontade.

E você sabe disso, não? Você entende a lógica, certo? Você sabe que não deve levar-nos muito a sério, não é? Mas digo uma coisa: os melhores textos sobre Expo 86, o terceiro disco do Wolf Parade, serão encontrados em blogs. Sim, engula isto: em blogs.

(Talvez também em diários secretos de adolescentes, mas infelizmente não teremos acesso a eles. Não em microblogs, a menos que divididos em cinco ou seis sentenças febris)

Por quê? É que álbuns como este, arquitetados para provocar impacto imediato, excitação e surpresa, cobram respostas tão urgentes quanto o som que vaza nos fones. Escritas de madrugada, após a terceira audição. Rabiscadas no intervalo do almoço, com a pressa de quem tem que voltar logo ao trabalho. Confeccionadas no recreio, em bilhetinhos lambuzados de mostarda. É um disco que nos obriga a gritar alguma coisa sobre ele. Alguma coisa. E já.

O lançamento está marcado para 29 de junho. Anote na agenda. Nesse dia, você vai ler as avaliações de resenhistas profissionais que, em parágrafos objetivos, tentarão camuflar o baque provocado pelas primeiras audições do disco. Pobres almas. É para isso que servem as resenhas, certo? Explicar os porquês, ordenar comparações, contextualizar a obra e convencer-nos da relevância de alguns argumentos mui racionais que nos ajudam a defender nossas convicções.

Aposto que nove entre dez resenhas vão sublinhar o fato de que este disco foi gravado em apenas um mês, sem overdubs (no espírito “hey-ho-let’s-go”), e que soa mais direto, afiado e reluzente do que os anteriores. Não somos atirados, por exemplo, no pântano sinistro e anticomercial de At Mount Zoomer (2008), produzido pelo próprio grupo. Nem nas assombrações lindamente juvenis de Apologies to the Queen Mary (2005), um dos grandes discos dos anos 00.

Expo 86, dirão os resenhistas, soa mais como um statement, um atestado de “maturidade” (ou, vá lá, como uma correção de rota): após o “disco difícil”, a força criativa dos canadenses é condensada em um projeto mais acessível, meio que dançante, enérgico, arejado por sintetizadores e versos até compreensíveis (“Eu sou um desastre”, avisam, em In the direction of the moon, e desta vez conseguimos entendê-los!).

Depois do suicídio comercial, o renascimento.

Mas isto é um blog, ok? Então, por alguns parágrafos!, esqueça os críticos profissionais. Eles que se arranjem. Entender por que este é um belo disco não explica as sensações que ele provoca. Experimente ouvi-lo em volume altíssimo enquanto dirige nas vias da cidade: o golpe das guitarras equivale ao disparo de um airbag. Primeiro o susto, depois o conforto (e o conforto, creio eu, é provocado pela doçura dos sintetizadores, que amolecem canções como a tocante, deslumbrante Ghost pressure, e a lânguida Oh you, old thing).

Para quem havia se adaptado ao Wolf Parade arredio de At Mount Zoomer, o choque é ainda mais pesado. Naquele disco, produzido pela própria banda, os sons nos cobriam em lama e lodo: prog-rock para fitas de zumbis (e eu sou suspeito para falar sobre o disco; me afeiçoei pelo cachorro de três patas). Expo 86 é o oposto disso, o “lado a” para aquele “lado b”. É pós-punk para fitas de ação.

Quando fazemos algum esforço, conseguimos visualizar, entre uma faixa e outra, uma banda correndo dentro do estúdio, excitadíssima com as próprias canções, com pressa para gravar, mixar, concluir o trabalho e mostrar-nos o resultado (não à toa, eles pretendiam lançar um disco duplo – felizmente, a Sub Pop parece tê-los convencido a selecionar as cerejas). É, apesar dos versos ainda muito agoniados, um disco que sorri para si mesmo e para o público. Nada como o som de uma banda de rock no auge, feliz consigo mesmo.

E ainda me parece um mistério: como eles conseguiram forjar uma sonoridade tão coesa? Ao contrário dos álbuns anteriores, não é fácil identificar quais das canções têm a assinatura de Spencer Krug e quais pertencem a Dan Boeckner (claro, Spencer é o mais doentio da dupla, mas agora Boeckner não fica muito atrás). Todas parecem sonhar com uma jam session pirada com a participação de David Bowie, King Crimson, Gang of Four e Talking Heads.

Mas há como identificar a origem dessa confraria bizarra: aparentemente, Dan conseguiu convencer Spencer a usar os sintetizadores que ele adota no projeto The Handsome Furs. E Spencer, em retribuição, impregnou o disco com a agonia quase enlouquecedora do Sunset Rubdown. O importante é que todos saíram ganhando: o Wolf Parade, está mais claro do que nunca, é o lar para onde Spencer e Dan retornam após longas aventuras.

Mas pode não ter acontecido nada disso. Este texto hilariante de divulgação, assinado por Steve Martin (?), sugere que o álbum é uma ode à amizade: o título seria uma referência a uma grande exposição de ciência organizada em Vancouver, em 1986. Todos os integrantes, por coincidência, se conheceram naquela ocasião, aos 10 ou 11 anos de idade. E fizeram um pacto: formar um grupo de rock quando crescessem.

Invencionices à parte (mas olhe lá: eles até que têm um excelente senso de humor!), nunca as afinidades musicais dos quatro amigos soaram tão homogêneas. A parábola aloprada faz sentido. Expo 86 é o som de uma banda, não de compositores talentosos que jogam cartas de vez em quando. E, nesse reencontro, o que nasce é um animal tão feroz quanto adorável, um bicho de estimação com dentes pontiagudos. Nós amamos sentir medo dessa fera. 

“Eu tive um amigo que era um gênio, mas ninguém nunca escutou o que ele disse”, conta Spencer em What did my lover say? Pois bem: desta vez eles serão ouvidos.

É que a hora é esta. E, para a sorte de uma horda de blogueiros ansiosos (ainda impressionadíssimos, pelo menos por enquanto), o Wolf Parade não deixa o momento escapar.

Terceiro disco do Wolf Parade. 11 faixas, com produção de Howard Bilerman. Lançamento Sub Pop. 9/10