Crueza

All days are nights | Rufus Wainwright

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Talvez seja leviano julgar um disco pela capa (vide esta coisa medonha). Mas, no caso de Rufus Wainwright, não há erro: sempre existiu um esforço consciente de resumir a atmosfera de cada álbum já no projeto visual do encarte. O pop barroco de Want One e Two (2003/2004) era embalado num colorido kitsch, cafona de propósito. Já em Poses (2001), Rufus interpretava o personagem principal do disco: o popstar melancólico, condenado pela própria beleza. Release the stars (2007), o “álbum de Berlim”, abria com um detalhe do altar do Pergamon, um monumento pomposo reconstruído num dos museus mais visitados da Alemanha.

Existe uma qualidade cinematográfica nos discos do cantor e, até por uma questão de coerência, as capas funcionam como os melhores pôsteres: aqueles que vendem o peixe, mas não traem a obra.

É por isso que, para os fãs de Rufus, a maior surpresa sobre All days are nights: songs for Lulu começou a ser revelada assim que o cantor divulgou o “cartaz”. É, de longe, a imagem mais austera que ele já estampou num disco: um olho feminino, coberto por sombras e tingido em preto, encara a câmera. Apenas isso. E é espantoso como essa imagem contém a obra inteira.

Como suspeitávamos, não há cores extravagantes em All days are nights. Desta vez, o clique é seco. Olhos nos olhos. Fotografia granulada. Quando começou a rascunhar Release the stars, Rufus planejava um disco inteiro de canções interpretadas somente com voz e piano. Na turnê, chegou a apresentar-se sem banda (no show excelente que fez aqui em Brasília, por exemplo). Mas, talvez instigado pelo produtor Neil Tennant (Pet Shop Boys) e pelas boas experiências em Berlim, acabou criando um disco ensolarado, sereno e pop. No novo, ele retoma aquela antiga ideia num momento especialmente difícil: pouco depois da morte da mãe, a cantora Kate McGarrigle, Rufus expurgou um disco que soa como um réquiem respeitoso, contido.

Não é só a pose glam, as afetações calculadas e o teatro de excessos que perdem a vez. Até o humor venenoso e autocrítico, uma das características que contaminam todos os discos de Rufus, se ausenta num álbum que, se fosse um filme, teria sido dirigido com as restrições do movimento Dogma 95. Nada de orquestras, coros, guitarras, teclados, canções alegres ou finais felizes. Os versos dessas canções de despedida, à exceção de três sonetos de Shakespeare (voltaremos a eles), são quase singelos: cartas de família, páginas de diário, conversas ao telefone, confissões rabiscadas às pressas. Essa falta de rebuscamento parece proposital, como se Rufus quisesse compor um disco tão cru e desencantado quanto Pink moon, de Nick Drake, e Tonight’s the night, de Neil Young.

Pelo menos até a quinta faixa, All days are nights filia-se rigorosamente a essa linhagem: é a sequência de canções mais tocante que Rufus já gravou (e não é por capricho que, nos shows, ele toca todas as músicas do disco sem intervalos para aplausos). Para quem está disposto a ouvir estas confissões, a sensação de cumplicidade é inevitável. Em Who are you New York?, a faixa de abertura, Rufus caminha desnorteado pela cidade, que tornou-se irreconhecível. Na segunda faixa, Sad with all I have, admite que é um homem infeliz e, com o discurso romântico que lhe é muito típico, admite que só encontra conforto numa única pessoa.

As melodias, gentis e doloridas (ainda com a empostação teatral que é a marca do cantor), parecem citar Cole Porter, o Frank Sinatra de In the wee small hours, o Elvis Costello mais jazzístico. Na terceira canção, Rufus tira de vez a máscara. O autor está nu. Martha é a reprodução de um diálogo com a irmã, Martha Wainwright. “Está na hora de irmos visitar nossa mãe no Norte. As coisas estão ficando mais difíceis. Não há mais tempo para ficarmos irritados um com o outro”, canta. Num andamento mais acelerado, Give me what I want and give it to me now indica a perda da fé. A seguinte, True loves, celebra os amores verdadeiros com a simplicidade de uma canção teen. “Um coração de pedra nunca vai a lugar algum”, diz, sem cinismo.

Eis que, daí em diante, o disco transforma-se em outro. O conceito musical permanece – voz e piano, sempre -, mas a ideia de musicar três sonetos shakespearianos acaba por provocar um desnível no repertório. Existe uma conexão clara entre os poemas e o disco, e é curiosa a experiência de combinar a escrita floreada dos poemas com o estilo econômico do disco. Mas essas músicas provocam um desvio de rota quase definitivo, e um tanto frustrante para quem acompanhava o disco até ali (as faixas fazem parte de um projeto desenvolvido por Rufus com o diretor de teatro Robert Wilson).

As canções seguintes não provocam os calafrios da primeira parte do disco. Em The dream, Rufus lamenta que todo sonho vem acompanhado de um pesadelo. Nesse ponto, as limitações sonoras começam a incomodar. A última música, no entanto, volta a emocionar: Zebulon lembra do período em que Rufus passou cuidando da mãe, que enfrentava um câncer. “Minha mãe está no hospital, minha irmã está na ópera, eu estou apaixonado, mas não vamos falar sobre isso”, comenta. “Seu nariz sempre pareceu grande demais para o seu rosto. Mas ele faz com que você pareça sexy, mais como uma pessoa que pertence à raça humana.”

E aí o álbum termina. Sem clímax nem nada. Nas condições em que foi escrito e gravado, talvez não haveria outra saída. Rufus sempre escreveu canções que espelham as próprias experiências, e All days are nights não é exceção. Segundo ele, o subtítulo do disco, Songs for Lulu, refere-se a uma personagem (Lulu) que simboliza a escuridão humana. Ainda assim, é um álbum menos sombrio do que parece: aos 36 anos, Rufus entende que, diante da morte, toda revolta é inútil. Prefere refletir serenamente sobre tristezas que são incontornáveis.

Release the stars já indicava a mudança. Mas é em All days are nights que Rufus encara a idade adulta. Para quem o acompanha, será como encontrar o retrato de um outro artista. Eu também senti um certo incômodo. Com alguma paciência (e desprezando a segunda parte do disco, que dilui um início extraordinário), esse performer sem maquiagem parecerá estranhamente comum – um príncipe expulso do reino, perdido num mundo igual ao nosso.

Sexto disco de Rufus Wainwright. 12 faixas, com produção de Rufus Wainwright e Pierre Marchand. Lançamento Decca/Polydor. 7/10

The big to-do | Drive-By Truckers

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O disco anterior do Drive-By Truckers, o genial Brighter than creation’s dark (2008) terminava com uma homenagem a John Ford. Soava apropriado, já que aquele álbum duplo soava como os planos abertos de um filme como Rastros de ódio: uma paisagem vasta, desolada, tomada por heróis ambíguos.

Mais modesto, o novo álbum da banda está mais para Onde os fracos não têm vez: um faroeste moderno, sangrento, com alguns detalhes surrealistas (e tente não lembrar da peruca do Javier Bardem em The wig he made her wear), e personagens amaldiçoados. Sentimos que, nesse breu, a tranquilidade pegou o trem e, preparem-se!, o céu vai continuar fechado por algum tempo.

É o décimo ‘longa-metragem’ dos Truckers, e talvez por isso ele pareça um pouco como um resumo de carreira, a afirmação de um estilo. Talvez estimulados pelo aniversário, eles recuperam o tom desencantado dos primeiros discos, as crônicas violentas, as polaróides de tipos marginalizados. Mas fazem o flashback sem abandonar a beleza selvagem e o lirismo do disco anterior, o melhor que eles já gravaram. No site oficial, o sexteto avisa: trata-se de um álbum de rock.

Daí a primeira surpresa: como pode um disco de rock do Drive-By Truckers conter um número quase ridículo de canções escritas por Mike Cooley? Diabólico, o homem sempre funcionou como uma espécie de Keith Richards para o Paul McCartney que existe em Patterson Hood (Cooley escreveu 3 dimes down, e quem a conhece sabe do que estou falando). A ausência de Mike é a sombra que pesa sobre o disco, ainda que Patterson surpreenda ao assumir o papel de principal roteirista da trama.

Mais do que nunca, Patterson parece celebrar um subgênero que a própria banda ajudou a sedimentar: o country aos frangalhos, torto e malvado. A canção-chave é, por isso, The fourth night of my drinking. O personagem, um bêbado que se maltrata prazerosamente todas as noites, é a personificação autoirônica da própria banda. “Tenho uma tendência por altos e baixos”, confessa o sujeito, depois de ter perdido o carro e o encontrado (por sorte!) em frente ao bar preferido.

Calculadamente, a ficção engendrada pelos Truckers se movimenta assim, atraída perigosamente pelo desastre. São histórias de almas penadas, cavaleiros solitários e perdedores. O disco começa pelo fim, com uma canção sobre morte narrada pela perspectiva de uma criança (Daddy learned to fly), e segue caminhando no ‘wild side’ da América, acompanhado de criminosos (Drag the lake Charlie), prostitutas (Birthday boy) e pastores escabrosos (The wig he made her wear). Nem os lamentos de Shonna Tucker (como You got another) oferecem redenção.

Discretamente, é um álbum também sobre o circo melancólico do rock. “Quando o último sair e a última nota se apagar e o último sonho morrer, apague a luz”, eles pedem, em After the scene dies. Mas o lado estranho dessa história é que esse réquiem vem embalado em riffs enérgicos, quase alegres (como em Daddy learned to fly, Brithday boy), que serviriam de música ambiente para steakhouses.

Talvez essa armadura sonora faça com que os Truckers entrem naquela categoria de bandas aparentemente banais que nunca serão descobertas pelos amigos do filho de Caetano Veloso: para chegar ao coração dessa banda, é preciso “assistir” às canções como quem vê um filme e, depois, notar que as sutilezas melódicas, a sujeira perversa com que eles manipulam o country e o southern rock.

The big to-do guarda esse tipo de enigma, ainda que sem a ambição do disco anterior. Ao elevar o prestígio do grupo, Brighter than creation’s dark fez com que Patterson, Mike e cia se sentissem mais confortáveis na pele dos Truckers. Mas estagnação seria uma palavra muito forte para definir esta fase: plenitude, taí um termo mais preciso para um disco tão seguro da própria mise-en-scene.

Não é um clássico. Longe disso. Mas aposto que Cormac McCarthy curtiria.

Décimo álbum do Drive By-Truckers. 13 faixas, com produção de David Barbe. Lançamento ATO Records. 7/10