Cotidiano
(segunda-feira, academia de ginástica, 7h)
Professor: Daí a gente foi pra essa festa, que não era bem uma festa, era mais tipo uma reunião, todo mundo bebendo vinho. Nem curto esse tipo de coisa, prefiro balada, o povo dançando, então eu tava meio emburrado. Mas nem teve jeito, era pra encontrar a menina que eu tô pegando. Então fui, acabei indo. Aí cheguei lá e era uma gente estranha, uns menininhos de universidade, tudo branquelo, carne e osso, uns alunos de biologia. E ela também faz biologia, mas é linda, esperta, um tesão. Sabe mulher pra casar?
Eu: Sei.
Professor: Então. Mas nada de casamento aí, deus me livre, que ela vai pra São Paulo e a gente combinou: sem compromisso. Então é sem compromisso mesmo. Eu prum lado, ela pra outro. Saca o lance? Ela liga pra mim e quer saber se vou fazer alguma coisa, aí eu digo: não sei. E tá tudo bem, sem estresse, sem ciuminho. Pra mim tá ótimo, pra ela tá ótimo. Mas rolou uma coisa estranha porque eu não queria ir na festa e ela veio com pressão, veio tipo trator, tipo: se não tem festa, não tem nada depois da festa, sem chance de rolar, entendeu? Aí eu fui, acabei indo.
Eu: Sei.
Professor: Daí aqueles meninos… Outro mundo, cara. Porque eu e os meus amigos… A gente se encontra pra falar merda. Pra falar muita merda. E os menininhos lá falando da porra da teoria da evolução, de Darwin, saca? E um deles começou a dizer que os meninos aí, os filhos de pais separados crescem sem a figura masculina, essas merdas. E que aí eles não aprendem nada. Não sabem chegar na mulherada. Ficam perdidos, sensíveis, sabe?
Eu: Sei.
Professor: Aí ele disse: a gente não sabe chegar na mulherada porque ninguém ensinou pra gente o que faz, como faz, o que diz, e eu pensando: porra! Aí eu disse: meu velho, isso não se ensina, isso se aprende por aí. E sei lá como, sozinho, sei lá, não fode! E ele ficou me olhando com aquela cara de burro: sei não, tio, me explica, me diz como é que é. Aí eu fui lá e disse: se você quer pegar a mina e a mina quer te pegar, cês vão acabar se pegando. Um sabe que o outro sabe e a coisa acaba rolando. É assim que é. Né?
Eu: É.
(segunda-feira, saída do trabalho, 19h)
Ele: Tiago, eu acho tudo isso uma coisa estranha. Cê era um cara tão fechado, tão na sua, ninguém nem queria saber sobre a sua vida. E agora taí, contando tudo, se abrindo pra todo mundo, desabafando, se arrastando. Te digo um negócio: cê tá sofrendo. Tá sofrendo. Tá na sua cara, olha aí.
Eu: Não sei.
Ele: E cê tá sofrendo porque ainda gosta dela. Ainda gosta dela. Cê criou uma explicaçãozinha racional pra não ter que encarar o fato de que ainda gosta dela. Criou e até acha que tá se dando bem, se convencendo de que tá tudo melhorando, de que tomou a melhor decisão, de que pegou o caminho certo.
Eu: Não sei.
Ele: Mas é. É, e eu vivi um lance parecido. Ainda tô vivendo. E só passei a me sentir bem comigo mesmo quando percebi que eu gosto dela de verdade. Eu gosto dela, porra. E foda-se, velho, se ela acabou de se mandar pro Rio, se ela tá com outro, se ela desencanou geral. Foda-se, não ligo, eu gosto dela. Me fodi, entende? Me fodi bonito. Mas claro: uma coisa é gostar e ficar batendo a cabeça na parede, a outra é gostar e assumir que não tem mais jeito. E aí você tenta seguir em frente.
Eu: Não sei.
Ele: Ou se esborracha. Mas aí é opção sua, sacou? Aí é você decidindo sobre a sua vida. E você não quer ficar preso numa merda de uma relação que já morreu, quer? Eu decidi que, porra, elas que esperem. Não vou ficar que nem um cachorrinho. Vou ficar quieto. Não vou atrás de mulher pra casar, e você sabe que elas já vêm com aliança na porra do meu dedo. As prioridades são outras. Vou trabalhar, ganhar dinheiro, comprar meu apartamento, focar, focar. Minha independência, entende? Eu queria era nunca ter entrado naquela merda daquela relação. Cinco meses no esgoto. Mas eu gosto dela, cara. Eu gosto dela. E você também tá nessa lama que dá pra perceber.
Eu: Não sei.
(sábado, no carro, 14h20)
Minha irmã: Não. Não, mãe. É conservador pra burro, totalmente atrasado dizer um negócio desses. Chegar dizendo que a menina abandonou o colégio, namorou aquele estúpido e começou a usar crack ou sei-lá-que-bagulho só porque, olha isso, só porque a mãe dela resolveu assumir o caso com uma mulher? Ó, conheço umas três pessoas que viveram esse tipo de draminha e sei de umas duzentas que estão cagando pra isso. Imagina se vão se preocupar com quem a mãe fica ou deixa de ficar. A vida da mãe é a vida da mãe. E ponto final, meu deus! Pode acreditar: ninguém tá nem aí.
Eu: Você acha? O que eu noto hoje é que os pais se preocupam demais com esse tipo de coisa, enquanto que os filhos estão pensando em outros assuntos. Quer dizer: é claro que, se minha mãe começasse a sair com uma mulher, eu perguntaria: como assim? Mas eu tenho 30 anos, não sei o que eu pensaria se tivesse 12. Na verdade, acho que não sei mais nada sobre os meninos de 12 anos. Pra mim é meio que um outro mundo, e eles estão mil anos à frente de mim. Outro dia eu tava entrevistando um cabeleireiro totalmente afetado e daí entrou o filho dele, um rapazinho de 15 anos, enganchado numa menina de uns 18. O garoto todo marrento, aquela voz de ‘não mexe comigo que sou machinho’, foi lá e deu um beijo no pai, brincou com a cabeleira do homem, e eu fiquei pensando: caramba, alguma coisa aconteceu, alguma coisa está acontecendo, ou talvez não esteja acontecendo nada e eu seja o cara mais conversador do planeta. Ou talvez não esteja acontecendo nada e este seja um caso muito específico.
Minha irmã: Está acontecendo, Tiago. Já aconteceu.
Minha mãe: Não é tudo isso.
Eu: Aí eu fico pensando no que acontece com o garoto que é criado por duas mães, como funciona? De verdade, na real, como acontece? Sei que não é nada extraordinário, que tem família de todo tipo, boas e ruins. Que as pessoas se viram, seguem em frente do jeito como conseguem. Mas fico pensando se o menino vai tentar compensar a ausência do pai, se ele vai buscar o pai em algum lugar. Se ele vai precisar do pai em algum momento. Se ele vai tentar compensar isso de outra forma. Cê entende, né? Falo sobre pessoas como nós dois… Nós, com os nossos pais. Dois pais, e todos esses problemas. O pai ausente, o outro que passou a vida inteira meio distante. E eu senti isso, você sentiu isso. Essa falta. Então me pergunto se, quando superarmos todos os nossos preconceitos e aceitarmos todo tipo de formação familiar menos convencional, se não vamos voltar a essa velha discussão sobre a figura paterna, sobre o quão importante ou desimportante ela é para nossa vida. Esse debate vai voltar à moda? Quando? Ainda quero saber muito sobre isso, sobre esse tema, ele me persegue todos os dias, e é como se estivessem encerrando o assunto, dizendo: não é grande coisa, Tiago, é uma questão ultrapassada. Entendem?
Minha mãe: Você devia arrumar uma namorada.
Minha irmã: Não tô nem aí, sinceramente.
Superoito e a praga dos gafanhotos
Quando imagino o fim do mundo, não temo inundações, explosões nucleares, vulcões esquentadinhos, loucos varridos ou hordas de zumbis. A ideia de apocalipse só me parece verdadeiramente terrível quando inclui pragas de insetos.
Aos 11 ou 12 anos, nas aulas de religião, meus ossos tilintavam de pânico ao notar a aproximação da mais sinistra entre as passagens bíblica. Aquela em que o todo-poderoso evoca um vento oriental que infesta de gafanhotos as manhãs e as noites do Egito.
Lembro que a Bíblia, muito objetivamente, relata os prejuízos financeiros provocados pela maldição: nenhuma verdura nas árvores, nem erva do campo. Mas, naquelas páginas, não havia nada, absolutamente nada, sobre a dona de casa que jogava gamão quando, subitamente, se viu atacada por bichinhos esverdeados. Gafanhotos saltitando entre os fios de cabelo, gafanhotos nas orelhas, gafanhotos nas narinas, gafanhotos sob a camisola, gafanhotos boca adentro, gafanhotos e gafanhotos e malditos gafanhotos.
As entrelinhas da Bíblia são um pesadelo.
O que mais me impressiona minha incapacidde para lidar com essa possibilidade. Nunca fui maricas para insetos. Sou o homem da casa e, por isso, eu mato as baratas. Comigo, nenhum mosquito pode. Sou um destruidor de lares quando o assunto é vespa e não sinto nojo ao tropeçar em lesmas. Acho até engraçadinho! Meus nervos são blindados. Na adolescência, me agradava a sensação de trancar mariposas na palma da minha mão só para mostrar às menininhas apavoradas que eu me qualificava, sim, como um baita de um homem.
Mesmo naquele tempo, no entanto, eu apostava (com medo, muito medo) que os insetos seriam os primeiros a nos enxotar deste planetinha vil. Eles viriam em torrentes. Eles cuspiriam líquidos amargos. Eles fariam barulhos nauseantes. E entrariam nos nossos orifícios. E aí o mundo acabaria, já que não suportaríamos a humilhação.
Qual não foi meu espanto quanto, há três dias, ao chegar em casa, notei que meu pequeno apartamento estava tomado por gafanhotos. Dois, três, quatro gafanhotos. Um deles acomodado no meu sofá amarelo. O outro admirava o monitor do meu laptop, que piscava em azul e verde. Havia um na geladeira, dois na escrivaninha. Todos verdinhos, aparentemente pacíficos, idênticos, mais ou menos como uma coleção de origamis criada por um sujeito perfeccionista e desocupado. Miniaturas do armegedom.
Em um primeiro momento, decidi matá-los todos com uma lufada de inseticida. Mas pensei novamente: não é assim que se trata bichinhos tão perfeitinhos e (aparentemente) inofensivos. Se eles resolveram visitar o meu apartamento, eu deveria encará-los como hóspedes desavisados, mas inocentes. Nada de declarar guerra ao inimigo antes da hora. Vertebrados ou não, somos seres civilizados. Cuidadosamente, tentei capturá-los com a pá vermelha. Me aproximei muito lentamente, muito discretamente, muito carinhosamente, muito mais Obama do que Bush, mas todos eles saltitaram, criaram uma confusão infernal. O que me obrigou a avançar sobre a lata de inseticida e, certeiro feito um GI Joe, provocar uma chacina verde na minha sala de estar.
Em vão. No dia seguinte, encontrei mais cinco gafanhotos, dois deles na cozinha. No corredor para o apartamento, encontrei cadáveres de insetos que não resistiram ao confronto com os humanos. Pobrezinhos. E estúpidos, os coitados: no posto de gasolina, perto aqui de casa, vários ainda voam intrépidos em direção à luz e, exaustos, caem fritos no jardim.
No início da noite, a aglomeração de seres verdes era tão vistosa que fechei as janelas do carro para não ser surpreendido por um filhote descuidado. A cena me hipnotizou. Então é isso? O fim do mundo começará pelo meu bairro? Nós, os tranquilos moradores desta região tão silenciosa e pacata, estamos fadados a inaugurar a temporada infernal da humanidade? Seria mais uma entre tantas ironias divinas com que nos acostumamos a viver?
Juro que percebi apreensão, quase desespero, muito mais do que nojo, nos olhos dos outros motoristas. Por mil gafanhotos!, os olhos protestavam. Ninguém parecia acreditar no fenômeno (que, para os moradores, soava como uma completa novidade, nunca antes na história!). Era uma ferroada na nossa rotina, um rasgo na sucessão tão previsível de acontecimentos que organiza a nossa existência. Na fila do sinal de trânsito, os insetos esbarravam nos nossos vidros, lambuzavam o asfalto. Cobravam reações, respostas. Mas a que perguntas? O que eles querem de nós? De onde eles vêm? Por quanto tempo eles ficam?
Seriam eles o resultado de um corte abrupto na cadeia alimentar de um predador? Ou um indicativo de que o pior ainda estava por vir (na próxima semana: gafanhotos mais gorduchos e irritadiços, talvez)?
Estávamos confusos.
Os gafanhotos nos obrigaram a pensar no nosso futuro. O que acontecerá depois? Eles nos atiçaram a raciocinar sobre o funcionamento da natureza, que quase nunca interfere no nosso cotidiano. O que acontece agora?
Ao tirar o lixo, agorinha, ouvi a conversa das vizinhas: “Eles são fraquinhos. Use uma revista ou o chinelo. Eles nem ligam. Ficam paradões. São umas coisinhas.” E, naquele zum-zum-zum de superlativos e diminutivos, comecei a me simpatizar pelos tolos insetos que não oferecem resistência, que são banais, uns equívocos dos deuses, meras perturbações. Uns descerebrados que arriscam tudo por alguns minutos diante da luz branca que queima em nossos apartamentos muito limpos e práticos.
Minha hipótese é que, como acontece com outros insetos menos extravagantes, os nossos gafanhotos também desaparecerão misteriosamente em duas ou três semanas. Não sentiremos falta e, pouco depois, não nos lembraremos desses incômodos visitantes. Estaremos preocupados com outros assuntos. Ou (como acontece frequentemente) tentaremos nos preocupar com coisa alguma. E aquela bizarra imagem de fim de mundo – pragas, eventos inexplicáveis da natureza, gafanhotos pueris em plena cidade grande – ficará guardada no mesmo compartimento do nosso cérebro que armazena flashes de acidentes de trânsito e cenas de filmes ruins.
“Sempre tentei não pensar no futuro”, foi o que minha mãe disse, hoje cedo. Almoçávamos juntos. Quando ela afirmou aquilo, aquela frase (um tipo de conclusão desiludida que não se comunica aos filhos), lembrei dos gafanhotos que me esperavam no apartamento. A confissão me assombrou. Eu sempre evitei fazer planos e, como ela, só agora me dei conta disso. Desse meu traço de personalidade. Dessa minha resistência a imaginar o porvir. Desse desinteresse pelo amanhã. Soou como uma revelação: seria herança materna? Seria genética a doença de não querer olhar para frente?
O que assusta a minha mãe são as cenas dos nossos próximos capítulos. Nossa vida, parte 2. A doença do meu padrasto – e ela não o abanona, não o abandonará – faz com que pensemos no assunto. O futuro está aqui, mais próximo do que nunca. Ele nos vigia. Ele nos instiga. Ele é o gafanhoto no televisor; uma anomalia, um invasor. Diante dele, não sabemos o que fazer. O encaramos com perplexidade. Não entendemos nada, somos crianças – devemos torcer para que ele suma? Ou aceitá-lo como um hóspede permanente?
Sabemos que está na hora de, pelo menos, refletir sobre o drama em que estamos metidos. Mas não são poucas as vezes em que nos pegamos desviando do tema, mudando de assunto. “Conte sobre aquele caso do trabalho”, a mãe provoca. E eu, o filho, narro a anedota mais risível. Reclamo das contas que devo pagar e do mecânico que perdeu a peça do carro e do preço do cereal e das pequenas doenças que não nos atrapalham. Tenho que tomar a vacina e planejar a viagem. Nos irritamos com o que nos parece trivial e falamos sobre isso. Falamos muito, mais do que queremos falar. Isso até o instante em que o grande tema se instala. Aí a cortina cai; encerra-se o espetáculo da normalidade. Voltamos a ser pessoas muito perdidas, bichinhos ao redor da lâmpada, eu e ela.
Mas raros são os dias em que chegamos a tanto. Somos daqueles que deixam para outra ocasião. Sempre. Depois de matar o último gafanhoto, fechei as janelas da sala, do quarto e do banheiro. Isolei o vão da porta com o tapete e um pano de chão. Apaguei a luz do corredor e torci para que os insetos não encontrassem uma fresta. Fiquei em silêncio por meia hora, à espera de que algo inesperado acontecesse. Nada aconteceu. Nada. Era uma noite como as outras. Dentro do apartamento, o planeta ainda girava.
Primeiro pensei: por enquanto. E depois: antes assim.
Superoito, o rei da comédia
Não sou um homem engraçado.
Mas sempre achei que sim. Sempre acreditei que esse fosse o caso. Desde muito cedo, ainda bem pequeno, quando aprendi a fazer barulhos estridentes com os beiços, encher minhas bochechas de ar até que quase explodissem, esticar a língua até o queixo e dançar feito um macaco dopado, com braços de fantoche. Minha mãe sorria. Minha avó rendia-se a elogios. “Esse menino é uma graça!”. Minhas tias obesas, que me apelidaram de Guigo, exclamavam bobagens superlativas. “Guigo é o máximo”. “Guigo é um menino muito esperto”. E aposto que, em segredo, admitiram: “Guigo é o novo Jerry Lewis!”.
Não tenho lembranças muito precisas daquela época – dois anos de idade! -, mas sei bem (como se fosse hoje) que eu sentia um tipo muito caloroso de satisfação quando as pessoas gostavam das minhas piadas. Meu troféu eram as risadas soltas, francas, demoradas. Eu me enchia de vaidade mesmo quando recebia sorriso com os truques mais tolos – e, nos meus primeiros anos de vida, quase todas as minhas gozações envolviam barulhos escatológicos.
Talvez minhas tias tenham encenado tudo com muito talento (ou simplesmente me mimado, já que Guigo era o homenzinho da casa), mas elas me convenceram de que eu era o rei da comédia. Aos cinco anos, eu contava anedotas com alguma habilidade. Era inaflível: eu sabia como criar uma atmosfera cruel de suspense e, depois, ir torturando as minhas vítimas até a frase final, hilariante e inesperada. Meu saquinho de gags não tinha fundo quando, no colégio, eu camuflava minha timidez na hora do recreio, contando histórias quilométricas, enervantes, que terminavam num golpe genial de humor barato, sujo, desaconselhável para menores.
Isso até os dez anos de idade, quando me entediei com as gracinhas de salão e decidi investir pesado no sarcasmo. Eu era o horror da ironia, das alfinetadas, dos comentários ácidos, das fofoquinhas malvadas. Acredito até que exorcizei toda a minha rebeldia adolescente nesses atos explícitos de escárnio. O poder de soltar a última gargalhada cínica fazia com que eu me sentisse um rapazinho muito inteligente, mas era um dom incompreendido. Mais tarde, notei que minha vocação era interpretada como arrogância.
Pior: notei que, ilusões à parte, não sou, nunca fui um homem engraçado.
Talvez todos os meus traumas de juventude tenham brotado aí, no dia em que encarei o espelho imaginário e percebi que nunca fui um bom palhaço. E que, para que crescesse como um adulto mais ou menos apresentável, eu não deveria me esforçar tanto para soar como um comediante decadente trancado num reality show de fiascos da stand-up comedy.
Toda a minha disposição para a sobriedade, porém, nunca vingou. O meu “eu palhaço” já havia devorado o meu “eu sisudo” e não havia nada que eu pudesse fazer para alterar esse placar. Uma guerra perdida. Daí que segui com esse jeito meio torto e vergonhoso, rindo das minhas próprias piadas e aproveitando todas as brechas do cotidiano para bolar trocadilhos e paródias que nunca sobreviveriam aos rascunhos de uma sitcom vagabunda.
Um humorista amador compulsivo, é claro, incomoda muita gente. Minha namorada detesta meu humor, que ela chama de “amargo e sacana”. Meus colegas de trabalho riem por educação. Meus amigos pedem para eu maneirar. Minha mãe é minha mãe. Minha irmã, como de costume, está pouco se lixando. Minhas tias escafederam-se no universo. E não converso com meu pai há uns seis meses.
O único que parece compreender essa compulsão é, curiosamente, meu padrasto. Digo curiosamente porque meu padrasto foi o homem que me ensinou a grande lição: bom mesmo é ser sério. Minha meta sempre foi simular o temperamento do sujeito. A ranzinzice elegante, a sobriedade à prova de deslizes morais, as risadas selecionadas com rigor. Um adulto feito. Esse era meu plano: vestir os sapatos muito bem engraxados do meu padrasto.
Daí o aspecto curioso dessa trama: desde que começou a perder a memória, consumido lentamente por uma das doenças mais terríveis do planeta, meu padrasto deixou de vestir os próprios sapatos. É um senhor de 55 anos que, a cada mês, regride algumas estações. Os momentos mais doloridos são aqueles em que ele próprio percebe que perdeu o controle das próprias ações. Não sabe (porque não consegue) mais tomar as decisões que, há alguns meses, pareciam automáticas. Quando percebe os sinais da própria doença, tranca o rosto e embranquece, depois fica quase amarelado, se recolhe no canto do sofá e (ele não diz, mas eu sei) se sente estúpido.
Tento passar muito tempo perto do meu padrasto porque sei que, nos dias mais desesperadores, ele precisa das pessoas que o amam naturalmente, sem esforço ou pena. Nos últimos meses, entendi que a melhor forma de lidar com a situação é tratá-la sem muita cerimônia. Conhecemos a doença intimamente: ela se instalou na nossa sala, ela sabe o caminho do quarto, ela brinca com nossos cachorros e, por isso, é inevitável que a encaremos como uma visitante desagradável, mas que chegou para ficar.
Quando encontro meu padrasto, o que nos une é (notem a ironia da coisa!) exatamente aquilo que nos afastava: o humor débil, ingênuo, paspalhão. Contar piadas nos distrai. Fazer graça de tudo (dos filmes que passam na tevê, das notícias narradas pelos jornais, nas trapalhadas dos nossos cachorros) nos aproxima de tal forma que começo a acreditar numa inversão de papéis que me parece bizarra: eu, o palhaço, virei exemplo para meu padrasto, o homem seríssimo.
Admito que, num primeiro momento, minha reação diante dessa nova mise-en-scene foi de total desconforto. Quando alguém repara que eu sou capaz de rir das minhas próprias piadas, fico envergonhado e peço desculpas. “Perdão, não consigo evitar.” Ver meu padrasto sorrindo com meu besteirol raquítico me deixa encabulado – mas, em segredo, também orgulhoso. É como se eu tivesse recuperado o narcisismo infantil que invadia a minha alma quando as minhas tias batiam palmas todas as vezes em que eu poluía a sala de estar e, logo depois, gritava babacamente: “Minha mão não está amarela!”
Com meu padrasto, eu volto a ser o rei da comédia. Um reizinho, vá lá. Um papel que aceito integralmente já que, nesse caso, é quase tudo o que posso oferecer a ele. A doença terrível nos deixa fracos, tensos, sem norte, sem chão, atados uns nos outros à espera de um futuro vazio. As esperanças existem, mas são traiçoeiras – preferimos não nos apegar a elas.
Daí que as risadas nos ajudam, estão na nossa torcida. A casa fica cheia quando gargalhamos. Sofremos com as luzes apagadas e sorrimos quando elas estão acesas. São os holofotes do palco. Até revezamos: eu sou o ator e meu padrasto está na plateia; meu padrasto é o ator e eu estou na plateia.
A risada do meu padrasto – e eu ainda não a conhecia! – hoje é meu ganha-pão e meu modelo. É meu remédio. O homem sorri de um jeito meio patético, engasgando, com os olhos fechados e os ombros girando freneticamente. É uma reação sem maldade ou culpa. Um riso sem destino, sem futuro, sem cobranças, arregaçado, soltinho na atmosfera.
É bonito de ver. E são nesses momentos ainda tão estranhos que eu – um homem nada engraçado – faço força para não chorar.
Superoito dentro do papel
Ainda fico espantado quando encontro repórteres recém-formados que procuram algum tipo de glamour numa redação de jornal. A eles, sou direto: no jornalismo cultural, não existe calçada da fama. Quem busca conforto e brisa nessa profissão provavelmente levará uma vida de duras frustrações – toda uma existência pontuada por dias tensos e noites em claro.
Mas entendo: os leitores, esses não têm a obrigação de saber disso. Por essas e outras, não me incomodo tanto com as pessoas que me tratam como se eu fosse o homem mais sortudo do universo – e isso pelo simples fato de que, às vezes, entrevisto pessoas famosas. Mas nada é tão fantástico quanto parece. Eva Mendes é mesmo maravilhosamente linda, mas lembro que, quando entrevistei a atriz, ela disse no máximo três frases curtas que não preencheriam meia página de um moleskine.
Prefiro as entrevistas mais informais e surpreendentes. Muita gente dá uma de Marisa Monte e ataca jornalistas que repetem as mesmas perguntas óbvias, mas garanto que os entrevistados são, na maioria das vezes, tão previsíveis quanto. Raro é encontrar quem tenha algo a dizer. Ontem mesmo, conversei rapidamente com um vocalista/guitarrista de uma banda de rock da cidade (ainda pouco conhecida) e aqueles 20 minutos valeram por um semestre inteiro de respostas burocráticas.
Roqueiros às vezes soam tão imaginativos quanto jogadores de futebol, também mestres em frases de efeito curtas e sem gosto, mas não foi o caso. Lá pelas tantas, o vocalista/guitarrista admitiu que ainda se sentia inseguro no palco. Ele não sabia se tinha jeito para a coisa ou se estaria condenado a doloridas sessões públicas de constrangimento. “E o pior é que, quando gravamos músicas, consigo notar a minha insegurança dentro das canções”, ele disse.
Entendi o drama. Perfeitamente, aliás. Sei que nasci para trabalhar com o que trabalho (caso contrário, eu já teria enlouquecido), mas lidar com a insegurança ainda é meu maior pesadelo. Não superei o medo de ser desmascarado em praça pública – de subir no palco e esquecer minhas falas. Tento calcular meus passos para não tropeçar, mas há momentos em que sou obrigado a dar saltos que, pelo menos no meu entendimento, parecem largos demais. É aí, meus amigos, que eu me estrepo, me machuco e, em alguns casos, aprendo e amadureço.
A última semana foi quase toda assim – uma maratona de responsabilidades impossíveis. A pior delas, um artigo longo e difícil, escrito a fórceps. O mais difícil, sempre, é lidar com as expectativas que crio para mim mesmo. Quase sempre, elas são inatingíveis. Quero escrever como o romancista que admiro, o jornalista que morreu há duas décadas ou o blogueiro maldito que ninguém entende. Esse crítico ranzinza que mora no meu cérebro me atormenta – é a ele que devo satisfações (seria esse crítico imaginário a imagem que faço de Deus, como a mulher gorda e invisível que vigia os passos dos personagens de Salinger?).
Esta semana, me pediram uma crônica. Num espaço nobre do jornal. Inseguro, quase paralisei de pânico.
Mas aceitei o desafio (já que saltar no vazio virou para mim uma espécie de meta masoquista). Passei os últimos dias pensando num tema e nada me pareceu atraente ou novo ou curioso. Pensei em fazer um breve perfil sobre uma velha cinéfila. Mas era um material muito sentimental. Depois tentei narrar uma noite num cinema tradicional da cidade, mas me vi aprisionado nos limites de uma idéia bem intencionada, politicamente correta. O plano de refletir sobre os silêncios da cidade foi descartado: abstrato demais.
Então apareceu uma lembrança que me persegue há uns bons oito anos, desde que eu era um estagiário. É uma sina do repórter, esta: ele se envolver intensamente com as pessoas, delas arranca histórias extraordinárias e, depois, as abandona (as pessoas e as histórias) para sempre. Resolvi fazer o caminho contrário: correr atrás de uma história que eu havia contado e abandonado. Eu queria saber o que havia restado dela, se é que havia restado algo.
Foi uma história que, talvez mais que qualquer outra, me fez entender e gostar da profissão, apesar de todos os sacrifícios que vêm na encomenda.
Era sobre um menino pobre chamado Rony, que tinha uns 8 anos e trabalhava vendendo doces na rodoviária. Ele estudava pela manhã e passava as tardes mergulhado em fumaça de ônibus, diante de uma banca de madeira. Era um garoto que não sorria muito, era extremamente tímido e, acredito que por causa disso, logo me identifiquei com ele. O fato curioso (e daí a matéria de jornal) era que ele matava o tempo desenhando a cidade em pedaços de papelão. E desenhava tão bem, com tanta concentração, que as pessoas juntavam caixas velhas para que o menino pudesse se divertir.
Foi muito difícil entrevistá-lo, já que ele mal conseguia articular algumas frases. Mas a situação toda me deixou estarrecido. Para quem aquele menino desenhava? Por que ele se concentrava tanto? Qual era a razão de tanto esforço? Ele não parecia interessado em algum tipo de reconhecimento (era arredio, introspectivo), nem fazia questão de se exibir. Apenas ficava lá, desenhando. A matéria foi publicada e, no dia seguinte, muitas pessoas presentearam o garoto com tinta e papel. Fiquei sabendo que ele ganhou aulas gratuitas de pintura. E aquilo me deixou muito satisfeito. Foi como se eu, no papel de repórter, tivesse cumprido uma função importante. Mais que isso: aquele menino me ensinou tanto sobre o desejo de criação artística que não consegui esquecer dele.
Instigado pela intenção de escrever uma crônica sobre o assunto, voltei a procurá-lo. Fui à rodoviária, mas a banca de doces não estava mais lá. Telefonei para um número que encontrei num bloco amarelado, mas a ligação foi interrompida por uma mensagem automática. Perguntei a alguns vendedores da rodoviária, mas ninguém conhecia o menino. O que teria acontecido com ele? Pessimista que sou, imaginei os cenários mais sombrios. Mas, quando sintonizei meus sentimentos numa estação realista, cheguei à conclusão de que talvez ele tenha simplesmente largado o desenho para se transformar num adolescente anônimo, daqueles que não despertam emoções fortes em reuniões de pauta. Teria ele conseguido vencer as expectativas da família e apostar no desenho como um talento incontrolável, uma vocação?
A crônica ainda não existe, e não sei se ela vai sobreviver ao crítico ranzinza e invisível que controla minhas decisões. O que fica, por enquanto, é essa experiência inexplicável de tentar capturar uma história que não é mais minha. Ela não ocupa mais no meu campo de visão. Nada posso fazer para salvá-la. O menino está solto no mundo – talvez perdido (espero que não), talvez feliz, talvez novamente disposto a ensinar a outros repórteres iniciantes algumas lições sobre a misteriosa ânsia de criar. Para mim, parece que morreu.
Talvez sobreviva numa crônica, não sei. Só torço para que o leitor não note a minha insegurança dentro do papel.