Convidados especiais

Compass | Jamie Lidell

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De Jamie Lidell eu espero quase todo tipo de surpresas. Se o sujeito criasse um gênero e decidisse chamá-lo de neo-merengue ou de digisalsa, eu não me assustaria. Mas nada me preparou para um álbum caótico (na mais cruel das análises) e espontâneo (na mais generosa delas) como este Compass. É, numa descrição rápida, um fluxo de consciência em formato de música pop. Soa como uma novidade verdadeiramente inusitada – até para os parâmetros de um artista que sempre se portou como um menino irrequieto de três anos de idade.

Até hoje, Lidell era o nerd britânico, meticuloso, que controlava obsessivamente as próprias criações sonoras. Multiply, de 2005 (o primeiro álbum dele pelo selo Warp Records), ganhou logo o emblema “neo-soul”. Não era um disco conciso, mas todo ele se erguia sobre um conceito muito bem definido: o de contrabandear algumas heranças da black music (soul, funk) para o mundo pós-tudo das colagens eletrônicas. Uma operação quase matemática – para alguns, é um disco que soa frio, congelado em câmara de gás e bits.

Pode ser. Mas o admiro. Desde o início, os gostos de Lidell sempre me pareceram muito sinceros. Ele sabe que nunca será tratado como um autêntico soulman, mas não se contenta com o destino. Consigo imaginar os traumas sofridos por um adolescente de Cambridgeshire, branquelo, míope, que insistia em cantar como Otis Redding.

Mas, contra tudo e todos, no disco seguinte Jamie resolveu prestar uma homenagem até certo ponto sóbria, direta, afetuosa, aos ídolos setentistas: James Brown, Marvie Gaye, Otis e tantos outros. Fácil e polido como um antigo álbum da Motown, Jim (2008) assombrou o fã-clube. Era como se ele dissesse: vocês modernos que se virem com a tradição. Um disco agradabilíssimo, incompreendido, falsamente conservador (já que, de ponta a ponta, desafiava as regras da cartilha indie) e talhado para exibir a voz furiosamente negra de Jamie.

Só havia uma semelhança entre Jim e Multiply: eram discos apolíneos, arquitetados cuidadosamente, discos-experimentos, discos-conceito; mais para Prince e Beck, menos para James Brown e Ray Charles.

Em Compass, Jamie altera exatamente esse padrão: tenta criar um álbum menos planejado, mais “irracional”, mais “humano” (como se os outros não o fossem). As 14 canções foram escritas no período de um mês – e é exatamente assim que o disco soa.

A história do álbum começa quando Beck convidou Lidell para participar do projeto Record Club – uma reunião de amigos famosos cujo objetivo prático é regravar um grande álbum. Com Wilco e Feist, ele colaborou para a versão de Oar, de Alexander Spence. Entusiasmado com o clima da gravação, Jamie convidou a turma para gravar Compass. O disco, produzido por Chris Taylor (do Grizzly Bear), tem convidados como Beck, Feist, Gonzáles e Pat Sansone (do Wilco). Foi gravado em Los Angeles, Nova York e no Canadá.

Esse método mutante de criação está no DNA de Compass. Jamie tenta organizar a “grande bagunça que estava armazenada no laptop” (como ele próprio explica, no site oficial) e, sinceramente, nem sempre consegue. O que vale, no entanto, é o tamanho do empreendimento: desta vez, Jamie soa como o Prince dos anos 90, especificamente o de Chaos and disorder (aliás, ele bem que poderia ter roubado o nome daquele disquinho). Testar um ou outro conceito não é o suficiente: o rapaz quer tudo ao mesmo tempo, de preferência com um punhado de chantilly em cima.

Essa ânsia de multiplicar-se faz de Compass um disco exaustivo (de propósito, parece), confuso, enervante, looongo demais. Cada uma das faixas parece pertencer a a galáxia diferente. Completely exposed, a abertura, lembra um pouco a soul music quebradiça de Multiply, mas Your sweet boom, a seguinte, se aproxima das invencionices psicodélicas do Of Montreal. I wanna be your telephone é Prince dos mais alucinados, compactado nos ritmos mecânicos do Beck fase Modern guilt. The ring = blues-rock. E Gypsy blood é exatamente o que o nome indica: algo exótico.

Descrever cada uma das canções seria tão cansativo quanto ouvir o disco do início ao fim. Melhor pular para as combinações mais felizes: orientalismo chic + vocais emotivos + violões dedilhados por um aluno em fase de iniciação no instrumento + eletrônica hipnótica (a faixa-título, Compass), corinho sessentista + bateria endiabrada + funk rock à Red Hot Chili Peppers (You are waking), lamento doloridíssimo à Pearl Jam + arranjo letárgico (Big drift).

E (tirando algumas baladas até simplórias) a coisa fica ainda mais improvável.

O importante é que, a partir de agora, sabemos o seguinte: Jamie Lidell sabe fazer uma bagunça dos demônios. É corajoso. É um guerreiro. É um exemplo de vida. Faz o que dá na telha. E, em vez de criar um disco planejadinho para agradar aos críticos ranhetas que desprezaram Jim, dobrou o quarteirão e seguiu em frente. Bom para ele. Boa sorte! Agora, eu? Demorei um tempinho para perceber que essa bagunça não me satisfaz e, na maior parte do tempo, me deixa com saudades do músico obsessivo e perfeccionista (e às vezes frio, ok?) de Jim e Multiply. Talvez Compass seja o rascunho para uma nova fase – mais sangue, menos cérebro.

Talvez sim. E vou esperar essa primavera chegar. Por enquanto, o Jamie Lidell impulsivo de Compass me deixa mais frustrado do que desnorteado.

Quarto disco de Jamie Lidell. 14 faixas, com produção de Jamie Lidell e de Chris Taylor. Lançamento Warp Records. 6.5/10

Superoito express (19)

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Plastic beach | Gorillaz | 7

O terceiro disco do Gorillaz pode não ter provocado as expectativas de um Homem-Aranha 3 ou de um Matrix revolutions (até o quadrinista Jamie Hewlett mostrou certo tédio com a ideia de bolar novas aventuras para o quarteto-cartoon), mas, felizmente, Plastic beach não é o típico desfecho frustrante de trilogia. Na verdade, deixa até a impressão de que a filosofia-Gorillaz pode sobreviver aos personagens de desenho animado — que, admita, já perderam a graça.

E que filosofia é essa? Os álbuns dessa “banda de mentirinha”, roteirizada por Damon Albarn, sempre aproveitaram o clima de brincadeira engraçadinha para provar que colaboração não é necessariamente sinônimo de confusão (isto é: nem todo disco superpovoado de convidados especiais deve soar desgovernado como um projeto do N.A.S.A.). Demon days — com De La Soul, MF Doom, Dennis Hopper, um coro de crianças… — era o Império contra-ataca de Albarn: o episódio sombrio que justificou a saga. E depois?

Plastic beach é um pouco como O retorno de Jedi: mitologia diluída, um tanto oportunista. Mas leve, divertido. Segundo Albarn, é o “disco mais pop” do Gorillaz. Curiosamente, não encontrei nenhum hit do porte de Feelgood Inc (e Snoop Dogg abrindo o disco? Fala sério!). A salada transglobal exagera um pouco no curry (faixas como White flag exploram orientalismos à Quem quer ser um milionário), mas testa sabores inusitados. O melhor deles é o encontro de Gruff Rhys e o De La Soul em Superfast jellyfish. Some kind of nature, com Lou Reed, daria um ótimo ringtone. Já as sóbrias On melancholy hill e Broken mostram que, se dependesse de Albarn, os macaquinhos adotariam um figurino mais soturno. Hora de crescer? Eu não me incomodaria. (Clique aqui para ouvir o disco, na íntegra, em streaming)

Sisterworld | Liars | 6.5

E não é que o Liars, a banda de rock mais instável da geração 2000, escreveu um disco enxuto e acessível (é o “disco americano” deles), que pode ser descrito como um cruzamento (meio doentio, vá lá) do Nick Cave de Murder ballads com o Sonic Youth do fim dos anos 1980? Agora entendo por que o trio decidiu nomear o disco anterior simplesmente de Liars: o estilo que eles cristalizaram lá em 2007 (alternância de agressividade e delicadeza, transe percussivo à krautrock e versos de pesadelo) volta num formato ainda mais compacto. Não é um disco decepcionante, longe disso, mas desprovido dos enigmas e das provocações que conquistaram os fãs de Drum’s not dead, por exemplo. Não sei se o Liars conseguirá sobreviver na pele de uma típica banda indie. Mas, enquanto eles tentam, ficamos com o meio-termo satisfatório de faixas como Scissor e Goodnight everything.

Fight softly | The Ruby Suns | 6.5

O caso do quarteto neozelandês é um pouco mais arriscado: se o Liars tenta encontrar a expressão mais precisa de um estilo, o Ruby Suns tem a ambição de alargar a sonoridade do disco anterior (Sun lion, de 2008), que devia algo à onda “freak folk” dos Estados Unidos. Para evitar comparações, a banda de Ryan McPhun se aproxima da psicodelia tropical de um Islands, com faixas que se desdobram em várias seções (olha o prog rock aí, gente) e criam um ambiente que, nos melhores trechos, soa como uma fantasia infantil dirigida por Tim Burton. Já nos mais fofos e adocicados….

Live at Olympia, Dublin | R.E.M. | 6

Desde 2007, o R.E.M. lançou dois discos ao vivo. Devemos interpretar como sintoma de crise na indústria de discos ou na carreira da banda? Ou nos dois departamentos? De qualquer forma, a premissa é boa: o álbum duplo registra a série de cinco espetáculos que o trio apresentou em Dublin entre junho e julho de 2007. “Isto não é um show”, avisa Michael Stipe logo no comecinho do álbum. A ideia é quebrar o protocolo: clima informal, bate papo com fãs, versões nuas e cruas para canções que a banda gravou nos anos 80… Um “work in progress” que desaguaria no álbum Accelerate, de 2008. Exaustivo, nada aventureiro, mas os fãs mais aflitos vão entender.