Contracultura
Os discos da minha vida (27)
O capítulo de hoje da indomável saga dos 100 discos vai ao habitat de uma espécie perigosa: os discos aparentemente mansos sobre sentimentos selvagens.
Cuidado com eles.
Antes de escrever alguns garranchos sobre esses dois álbuns tortuosos – e extraordinários – preciso lembrar-lhes das regras deste ranking. Isto aqui é uma seleção absolutamente pessoal de discos que foram pontilhando alguns dos momentos mais importantes da minha vida. É isso e só isso.
Portanto, nada de vir reclamar que o disco X está muito atrás do disco Y, ou que o disco Z foi subestimado e que o disco K, ignorado. A brincadeira não tem nada a ver com isso. E, sem querer ser grosseiro, tem muito pouco a ver com você – ainda que eu recomende com força o download de desses álbuns, que continuam me emocionando ano após ano.
Muitos dos discos desta lista fazem parte do cânone da música pop. Vocês o conhecem ou ouviram falar sobre eles. Há uma parte desse ranking, no entanto, que correu pelas bordas dos top 10s e, na opinião deste blogueiro, merece um pouco da sua atenção, ó leitor. É o que acontece neste episódio de número 27. Um deles é o clássico. O outro é aquele que, num mundo perfeito, seria um clássico.
Não estamos num mundo perfeito, eu sei, mas este blog tem uma missão a cumprir.
048 | Mighty Joe Moon | Grant Lee Buffalo | 1994 | download
Muito antes de integrar o elenco de Gilmore Girls e de gravar discos com alguma maquiagem pop, Grant-Lee Phillips era o homem dos falsetes infinitos, que parecia ter encontrado um atalho secreto para conectar a rusticidade do country rock com a sensualidade do glam. Fuzzy, da estreia, é a canção indie mais sexy dos anos 90 – mas é no segundo álbum que o som do Grant Lee Buffalo explode em milhares de cores numa tela gigante de Drive-in, sem a vergonha de nos seduzir com efeitos de estúdio e riffs que se lambuzam com as apelações do hard rock. Como os discos que Elliott Smith gravou para a Dreamworks, este também apresenta uma versão compacta, pontiaguda (talvez polida) de um estilo já totalmente pronto. Talvez não seja o melhor da banda, mas é aquele que esconderemos para sempre nos nossos armários, junto com os velhos gibis soturnos e as blusas de flanela: um disco perfeito para uma época que menosprezava discos perfeitos. Sugiro o seguinte: dane-se a época, fiquemos com o disco. Top 3: Mockingbirds, Rock of ages, Drag.
047 | Astral weeks | Van Morrison | 1968 | download
Talvez o disco mais difícil da minha adolescência: não foi na primeira, nem na segunda, nem na terceira tentativa que finalmente consegui comprar o tíquete para a terra nebulosa – mágica, não duvide – de Van Morrison. É um dos álbuns mais importantes dos anos 60, principalmente por catalisar uma série de signos da contracultura: o lirismo beat, o folk à Dylan, o jazz e o blues, o misticismo riponga e a imagem de liberdade anexada à figura de um homem que inventa a própria bússola e assim desbrava o mundo, sem lenço ou documento. Mas (e vocês querem sinceridade, certo?) eu só consegui me afeiçoar por ele quando percebi que ele pode ser compreendido como uma das seções de O som e a fúria, de Faulkner: um narrador que, com uma voz muito particular, tenta dar conta de um ambiente. Admita: você nunca vai entender verdadeiramente o que Morrison quer dizer. Mas olhar o mundo através dessas canções ainda pode ser uma experiência fascinante. Top 3: Cyprus Avenue, Madame George, Astral Weeks.
Os discos da minha vida (4)
A aventura continua: com você, mais dois para o ranking sen-ti-men-tal, quase irracional, dos discos que acimentaram a estrada da minha vida. Acredite: são 100. Garanto que, mais cedo ou mais tarde, este trem chegará ao fim da linha. Não, não estamos quase lá. Sim, ainda vai demorar. A má notícia? Quando o destino bater à porta, aposto que você olhará para trás e, pensativo, concluirá que perdeu tempo demais – uma eternidaaade – numa jornada muito improdutiva.
De qualquer forma, tome isto em consideração: do mundo nada se leva, mas aqui, neste site tão modesto e pobretão, você pode fazer o download de discos que são quase sempre decentes. A vida é ou não é boa (às vezes)?
094 | Mezzanine | Massive Attack | 1998 | download
Mezzanine é uma das memórias mais fortes de uma período em que eu me via obrigado a “criar” os discos antes de conseguir ouvi-los. Na biblioteca da Cultura Inglesa, onde as assinaturas da New Musical Express e da Melody Maker praticamente salvaram a minha vida, eu ia construindo os álbuns na minha cabeça, torcendo para que eles aparecessem nas lojas. O do Massive Attack foi talvez o caso mais bizarro: acabei inventando um disco muito diferente daquele que conheci alguns meses depois – um disco mais mundano, mais palpável. Na época, muito se escreveu sobre Mezzanine, mas o som do álbum me tomou completamente de surpresa: uma massa compacta, escura, como que ejetada de um outro planeta, mas também adorável como as cantigas que você ouve desde criança. Lembro bem da sensação de ouvir Teardrop pela primeira vez: um hipnótico objeto voador descia no meu quarto. Top 3: Teardrop, Risingson, Group four.
093 | Bookends | Simon & Garfunkel | 1968 | download
Os anos 60. A contracultura. O fim do mundo (como o conhecíamos). Quando pensamos nisso tudo, o que nos espera? Uma canção dos Beatles (como A day in the life), uma performance de Jim Morrison, o hino americano reinventado por Jimi Hendrix e outros símbolos que estampam matérias de jornal e documentários de tevê a cabo. Mas foi esse mesmo contexto que contaminou discos agradabilíssimos, elegantes, quase nada furiosos (e até mansos) como Bookends, a obra-prima de Simon & Garfunkel. O que se ouve é a viagem de dois bons moços por uma década que talvez eles não compreendessem muito bem – mas que, por inércia, remodelou uma sonoridade capaz de combinar tradição (em faixas caretinhas e lindíssimas como Overs e Old friends) com tentativas valentes de adaptação a mudanças (A hazy shade of winter, Save the life of my child). Não é um dos melhores discos de 1968. Mas provavelmente o que melhor define uma época de despedidas e transições. Top 3: A hazy shade of winter, Old friends, America.
PS: Sei que é exigir muito de vocês, mas amanhã à noite, terça-feira, a mixtape de agosto (mais conhecida como “a melhor mixtape amadora de todos os tempos”) estará aqui neste bat-blog. Talvez às 22h. Espero vocês.