Conservadorismo

Coisas do Oscar | O discurso do rei

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Quando eu era pequeno falavam em “filmes do Oscar”, e aí eu logo imaginava dramas históricos, figurinos pomposos, atuações intensas, personagens que carregam o peso do mundo, roteiros com ambições literárias e temas quase sempre importantes (amizade, amor eterno, intrigas políticas, holocausto). Outro dia eu estava conversando sobre o assunto com um amigo – o tipo de papo nada frutífero, mas que, Freud explica, dá alegria aos nossos pobres neurônios – quando a pergunta apareceu: onde eles, os “filmes do Oscar”, foram parar?

De um tempo pra cá, a aparência é de que algo mudou: a Academia optou por valorizar fitas que foram selecionadas pelos estúdios depois de terem se destacado em festivais ou na mídia americana. Daí casos como os de Quem quer ser um milionário?, Onde os fracos não têm vez, Guerra ao terror, Os infiltrados, Crash – No limite. Acredito que o último vencedor a caber totalmente no antigo modelo foi Chicago, em 2003 (O senhor dos anéis é uma fita de fantasia, e Menina de ouro, apesar de ter cumprido o calendário da Warner para o oba-oba, foi conquistando os votantes lentamente, com apoio da imprensa).

Eis que, em 2011, ele reaparece. O discurso do rei (The king’s speech), o favorito da vez, me atirou à infância. O tipo de flashback, por essa perspectiva, desagradável. É o tipo de filme que cumpre rigorosamente as expectativas de uma Hollywood que, hoje, talvez se entedie com a própria imagem. Uma trama simplezinha sobre amizade – entre o rei George VI e o terapeuta vocal contratado para sanar a gagueira do monarca – embalada num contexto histórico em que Todas as Grandes Coisas Aconteceram (até Hitler entra no circo), com atuações “de pedigree” e situações que parecem muito, muito importantes, mas se esfarelam numa película esterilizada. For dummies.

A Disney (e isso nos momentos mais caretas, de animações como Mulan e Pocahontas) não faria melhor: no longa, a ideia talvez tenha sido garantir alguns tons de humanidade à figura dos nobres britânicos (notem, amigos: eles gaguejam!), mas a tintura é tão rala que surte o efeito contrário. George, para começo de conversa, nada mais é do que um poderoso bobalhão, com apenas três traços de comportamento (doçura, complexo de inferioridade, surtos de ranzinzice).

Mais que isso: é um homem invariavelmente bom, uma vítima de traumas terríveis, dos maus tratos do mundo. Talvez premiar um personagem unidimensional conte como uma reação à onda do 3D. Vá saber. Colin Firth se resolve como pode (e existe toda uma técnica vocal complicada que ele aplica ao tipo), mas o que fazer quando cada uma das cenas é calculada para cumprir leis muito envelhecidas de dramaturgia? Está tudo lá: o estranhamento provocado pelo primeiro encontro entre os protagonistas, a primeira ranhura na relação, os preparativos para um grande desafio e o clímax que pode ser previsto desde a primeira cena… Talvez sem intenção, essa narrativa do tempo da vovó acaba espelhando a decadência do modelo de poder que o filme glorifica. Os tios e as tias saem da sessão suspirando: ah, os reis e as rainhas!

Se não falei nada sobre Tom Hooper até aqui, é que o cineasta quase não se faz perceber. E talvez não apareça por não fazer diferença alguma. Não dá para dizer que ele tome o filme para si – este é muito mais um cosmético do produtor Harvey Weinstein, ex-Miramax, que curte esse tipo de entretenimento supostamente clássico, de peito estufado, um arraso nos quesitos técnicos. Mas, se o Oscar embarcar nessa e assinar embaixo, eu vou entender como retrocesso. Ou nem isso: será apenas um sinal de que a Academia muda para permanecer igualzinha. Meus pobres neurônios começam a se sentir aborrecidos com a brincadeira.

Amor sem escalas

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Up in the air, 2009. De Jason Reitman. Com George Clooney, Vera Farmiga, Anna Kendrick e Jason Bateman. 108min. 5/10 

Quando eu era pequeno, meu pai dizia: “No melhor dos mundos, filho, você vai estudar, fazer alguns amigos, crescer, estudar mais um pouco, se formar, chegar à idade adulta como um sujeito honesto, conseguir um emprego digno, formar uma família, ter três ou quatro filhos, ganhar um salário mediano, dar o exemplo, ficar velhinho e morrer.”

Fui criado assim. Pé no chão. E chão de mármore, frio.

Deixei de acreditar em Papai Noel aos seis anos de idade, quando meu pai resolveu abrir o jogo e admitir que o carrinho de controle remoto não caberia na meia e, além disso, era caro demais. Anos e anos mais tarde, quando meu pai foi demitido a exatos dois meses da aposentadoria, perguntei a ele sobre empregos dignos e recebi uma resposta lacônica. “O trabalho é uma guerra.” Não voltei ao assunto.

Hoje, converso pouco com meu velho. Batemos papo nos aniversários e em outras datas importantes. Na páscoa, por exemplo (e não sei exatamente por que). No carnaval. Quando alguém morre. Sinto saudades. Reprovo a ideia de paternidade à distância. Mas nos entendemos razoavelmente bem. Apesar de, nessas conversas, nunca trazemos à pauta assuntos relevantes. Nada de incertezas amorosas ou outros temas que não possam ser concluídos em cerca de cinco minutos. Geralmente ele pergunta sobre meu trabalho e respondo: está tudo bem.

Quase nunca está. Noto que ele tinha razão. Trabalhar é uma guerra travada entre as nossas convicções e o que somos obrigados a fazer. Não estou falando dos dilemas épicos, crises monumentais. Nada disso. Faço referência apenas às pequenas provações que enfrentamos e superamos dia após dia. Situações triviais que, admita, nos machucam (mesmo quando sutilmente) e fazem com que, no mês seguinte, afirmemos com segurança aos novatos: “Somos profissionais experientes, nos respeitem.”

O que aprendi em muitos anos de dedicação integral a essa máquina é que concessões devem ser feitas. Meu pai estava certo: é possível, numa empresa, trabalhar honestamente, divertir-se, fazer amigos e gostar muito do que se faz. Mas não há como fugir de todas as lutas.

Amor sem escalas (e finalmente chegamos a ele!) é, em alguma medida, um filme sobre o trabalho. Pessoas são demitidas. E nós, amedrontados com a perspectiva de sermos ejetados de nossas rotinas, nos identificamos com elas. No contexto em que foi lançado, pode ser interpretado como um longa-metragem dedicado às consequências da recessão norte-americana. Pode, mas não deveria. A todo momento, em todo lugar, pessoas são demitidas. O próximo pode ser você. E ninguém sabe como reagir a isso. É, me contaram, como ser expulso de casa pelo irmão mais velho que nunca te deu muita atenção. Dói.

O protagonista, interpretado por George Clooney, é a encarnação desse irmão mais velho. Um homem impassível que cumpre rigorosamente o papel de demitir pessoas. Não sou nem nunca fui chefe, mas entendo que demitir um funcionário não deve ser algo tranquilo e animado como um passeio no parque. Em resumo: os chefes constrangidos contratam Clooney para limpar elegantemente a cena do crime.

E Clooney é um faxineiro eficiente. Cínico, prático e insensível como um matador de aluguel. Requisitado que é, está acostumado a viajar de avião por todo o país, acumulando milhas, dormindo em quartinhos de hotel e matando o tempo em bares chiques porém impessoais. Parece muito satisfeito com a vida que leva. Numa dessas noitadas solitárias, ele conhece uma mulher que, resolvidíssima, topa embarcar com ele numa relação sexy e casual. Todos os envolvidos aprovam esse esquema de relacionamento tãããão século-21. Para combinar os encontros, eles abrem laptops e digitam aceleradamente algumas palavras misteriosas porque isso sim – laptops? – é uma coisa moderna.

Enfim. Na primeira metade do filme, o diretor Jason Reitman reprisa o método de Obrigado por fumar: expõe os vícios de workaholic amoral. Num determinado momento da trama, Clooney descobre que o próprio emprego está em risco. A partir daí, sai numa jornada para ensinar uma hitgirl iniciante e metódica e ambiciosa as artimanhas do ofício. No meio tempo, dá palestras sobre como esvaziar mochilas que carregam todo o peso do mundo. Ou algo parecido.

Jason Reitman, sabemos, é um sujeito conservador. E moralista. Nada contra, mas deixemos isso claro. O protagonista de Obrigado por fumar é um ás da retórica confrontado com algumas boas verdades da vida. Juno é a adolescente grávida prestes a descobrir o amor verdadeiro na figura de um nerd honesto, generoso e boa gente. Existe sim uma “mensagem” em Amor sem escalas, e ela não é nada nebulosa: o estilo de vida de Clooney pode até parecer charmoso (são tantas milhas!), mas não é saudável.

O cinismo cool da primeira parte do filme – que lembra a gramática de Steven Soderbergh, mas acaba soando como um piloto genérico de seriado da HBO – é abruptamente substituído por um tom mais afetuoso. Sabe-se lá como (talvez por conta de uma turbulência especialmente severa num voo longo), os personagens se transformam. Lá pela metade da trama, Clooney vira um gentleman que sente falta dos prazeres de uma vidinha simples (cercado por memórias de adolescência). A hitgirl iniciante sonha em casamento e filhos. A amante prafrentex, no fim das contas, não era tão prafrentex assim. O que Reitman quer com isso? Mostrar-nos que nossas vidas modernas são vazias? E que, para completá-las, teremos que formar uma família e nos comprometer a longo prazo com alguém?

O filme manda o recado de uma forma tão direta que quase nos convence de que está absolutamente certo. Ou, pelo menos, de que Reitman é um cineasta franco, ainda que sem estilo. Mais uma vez, nada contra. Pior do que isso é a forma primária como nos convida a essa aula de boas maneiras: na segunda metade, a trilha sonora usa até Elliott Smith para nos sensibilizar e finalmente nos converter… a que dogma mesmo? À maravilhosa congregação de Juno e os ursinhos sentimentais?

Meu pai, na certa, acharia tudo muito tolo. Ele tem família, filhos, uma casa e um cachorro. Sabe que as coisas não terminam – talvez só começam – aí. Sabe mais: que nada disso resolve a relação conflituosa, dolorida que a maior parte das pessoas mantém com o trabalho. O medo de uma demissão, o choque cotidiano com decisões duras de empresas. Reitman, ainda que se aproxime desses temas, parece ter perdido a chance de tocar no assunto de uma forma adulta. Na ânsia de disparar chavões sobre “as coisas importantes da vida”, esquece que nós temos absoluta certeza de que eles só servem para engendrar a ficção mais preguiçosa. Não nos dizem respeito. No mais, já vimos filmes de fantasia mais inventivos.