Clint Eastwood
cine | J. Edgar
Entrei no cinema um tanto confuso sobre a trajetória de John Edgar Hoover, e, sorte a minha, saí ainda mais perdido. Bottom line: esta cinebio não tem utilidade didática para quem procura a verdadeira verdade, interpretada com parcimônia, sobre o homem que dirigiu o FBI por quase 50 anos. Até porque guardar segredos escaborosos, criar mentiras sobre a própria biografia e retocar a história da América eram algumas das especialidades de um personagem que nunca será desvendado. Felizmente, Clint Eastwood e o roteirista Dustin Lance Black (de Milk) nem tentam encontrar uma explicação definitiva para um tipo tão contraditório. Não: eles explicitam as ambiguidades do homem ao obscurecê-lo num retrato ocre, bem turvo (sob camadas assustadoras de maquiagem, indeed), que aglomerar fatos, boatos, reconstituição histórica, especulações e licenças poéticas.
Quem era J. Edgar? Acredito que, ao fim do filme, seja mais fácil comentar sobre quem ele não era. O roteiro de Black divide a trama em dois tempos que, apesar de entrecortados por flashbacks e paralelismos de montagem, às vezes não se completam. O Edgar jovem e idealista contrasta com uma figura pública recalcada e paranoica, que prepara dossiês para ameaçar presidentes e permanecer no poder. Mas, se esse jogo entre épocas (os anos 20/30 e a década de 60) nos informa sobre as transformações da América, ele também nos ilude — já que, a uma certa altura da trama, descobrimos que todo aquele filme-de-época correto (e por vezes maçante, desinteressante) sobre a formação de Edgar foi “maquiado” pelo próprio personagem, que distorcia informações para inventar versões oficiosas sobre a própria vida. Incapaz de identificar os limites entre lenda e fato, resta ao filme oscilar entre um extremo e outro, mostrando aquilo que se sabe (e, principalmente, a imagem que o mundo criou) sobre Hoover.
Essa liberdade de interpretação (mas, perceba a armadilha: filmada com uma lente sóbria e até serena, nada escandalosa) dá carta branca para que se invada a vida particular do personagem e se imagine hipóteses sobre a sua sexualidade — ele era um gay enrustido, segundo Black — e sobre as relações de confiança, a portas muito bem fechadas, com a mãe e os assistentes. Ainda que, ao fim da projeção, seja muito simples desgostar de Hoover — a interpretação de Leonardo DiCaprio, no tom exato, é até antipática —, mais complicado é compreender as motivações do homem. Clint não vai tão fundo (e acredito que seria impossível chegar lá), mas toma partido: o personagem está sob sombras e máscaras; e são elas (as sombras e as máscaras) que de alguma forma o definem.
(EUA, 2011). De Clint Eastwood. Com Leonardo DiCaprio, Armie Hammer e Naomi Watts. 137min. A
Superoito rápido e rasteiro (1)
Invictus | Clint Eastwood | 3.5/5
Mais para Cowboys do espaço do que para Gran Torino, é um filme que me agrada muito pelo tom da narrativa (sóbrio, esperançoso, afetuoso, puro Clint) e pouco pela trama, que simplifica situações e personagens reais. O Mandela de Morgan Freeman, apesar da interpretação comprometida de Morgan Freeman, não vai muito além de um símbolo idealizado de bondade e perspicácia política. Já o capitão do time de rúgbi (Matt Damon), o branco meio impassível que aos poucos vira fãzoca do presidente.
Clint não esclarece um ponto que me parece essencial: quais foram as estratégias práticas usadas pelo time de rúgbi para sair do fracasso e embarcar na glória absoluta? Foi mesmo tudo uma questão de força de vontade e nacionalismo recém-adquirido? Em compensação, continua o grande cineasta que conhecemos: no caso, mostra com total clareza, sem ingenuidades, as conexões entre política e esporte.
Tetro | Francis Ford Coppola | 3/5
Apesar de fotografar generosamente a arquitetura de Buenos Aires, o filme me pareceu tão artificial quanto O fundo do coração: uma deslumbrante (mas preciosista) maquete de sentimentos. A Argentina de Coppola é tão falsa quanto algumas cédulas suspeitas que circulam nos bares da Recoleta. Cidade de sonho. Existe algo muito interessante no projeto da obra: o diretor narra um drama pessoal como um melodrama que, nos trechos mais desenfreados, chega a parecer almodovariano. É o melhor filme dele em muitos anos, mas provoca em mim a sensação de acompanhar os movimentos de personagens aprisionados dentro de um lindo aquário.
The cove | Louie Psihoyos | 3/5
Produzido pela Oceanic Preservation Society, este documentário não nega o tom panfletário: é um filme-denúncia sobre a matança de golfinhos no Japão. Por isso, que ninguém espere encontrar algo com a profundidade de um O equilibrista, ainda que o diretor Louie Psihoyos também use elementos de fitas de suspense para narrar esta aventura camicaze. A insistência como associa a causa dos golfinhos à fofura de Flipper é um golpe abaixo da cintura (até para sujeitos como eu, que preferiam a Lassie). As cenas finais são chocantes o suficiente para converter o mais insensível dos carnívoros.
Preciosa | Lee Daniels | 2/5
Era mais ou menos o que eu esperava de um drama coproduzido pela Oprah Winfrey: exploração sensacionalista da “dureza da vida” à serviço de lições sobre superação e perseverança. E depois atacam os filmes do Todd Solondz (que pelo menos não são unidimensionais)… Eu não me incomodaria com uma vitória de Mo’nique ou de Gabourey Sidibe no Oscar, mas Mariah Carey e Lenny Kravitz brincando de interpretar gente-simples-e-comum é uma distração tão grosseira quanto a forma como Lee Daniels encena os delírios da protagonista miserável – que, é claro, sonha em ser uma espécie de Mariah Carey.
P.S. As cotações para filmes, a partir de agora, é a seguinte: até 5 estrelas. A lista completa de filmes de 2010 está no meu log: tiagos8.sites.uol.com.br.
Gran Torino
Gran Torino, 2008. De Clint Eastwood. Com Clint Eastwood, Bee Vang e Christopher Carley. 116min. 8.5/10
Depois de ter me frustrado razoavelmente com A troca (os textos sobre o filme me animam bastante, entretanto), eu estava um tanto cético em relação a Gran Torino. Tudo o que li parecia genérico demais. Uma síntese da carreira de Clint Eastwood? Um acerto de contas com Dirty Harry? Preferi cautela.
Na última cena, minhas expectativas pessimistas foram abatidas a golpes de picareta. Não é um velho filme de Clint Easwtood. E não é um filme sobre o velho Clint Easwtood. Talvez seja um filme de velho, no melhor sentido. Revela uma sábia simplicidade, como em Manoel de Oliveira. E precisão, como em Sidney Lumet.
O próprio Eastwood enruga a película, no papel de um homem velho. Walt Kowalski não fala, rosna. Os personagens secundários são desenhados com poucos traços. Se aproximam da caricatura, como um cenário desfocado por onde o herói transita. Quase uma paisagem. Um filme de golpes curtos, movimentos econômicos, substantivos sem adjetivos.
Li muitos elogios sobre as variações de humor da narrativa de A troca. Gran Torino me parece o oposto disso: compacto, exato e, por isso, impressionante. Nada sobra. Cada sequência tem um sentido muito específico dentro do filme. Podemos nos incomodar, por exemplo, com o retrato unidimensional da família de Walt – uma corja de interesseiros. Mas sabemos que Clint quis o filme exatamente daquela forma. Não há dúvidas.
Daí a clareza como o cineasta vai criando os pontos de contato com Os imperdoáveis (na estrutura à western), com Cartas de Iwo Jima (num discurso multiculural e pacifista, bastante explícito), com Sobre meninos e lobos (na reflexão sobre a cultura da violência), com Um mundo perfeito (na relação entre o velho e o menino).
Entendo quem trata o filme como uma espécie de resumo da obra. Mas o que me parece surpreendente é como as experiências acumuladas por Clint passam por um processo de refinamento. É como um compositor que vai reduzindo os excessos de uma canção. Um poeta que vai descobrindo a beleza do verso curto.
E é por isso, ou talvez seja por isso, que Gran Torino periga ser incompreendido. Por isso não é tratado como aposta para o Oscar. Por isso fica na surdina. Não dá para encará-lo como qualquer filme. O espectador deve fazer algum esforço (e quem quer fazer esforço numa sala de cinema?) para vê-lo da forma como é.
E este é um filme que, até nas imperfeições, não se esconde.
A troca
Changeling, 2008. De Clint Eastwood. Com Angelina Jolie, John Malkovich e Jeffrey Donovan. 141min. 6/10
Talvez seja o caso de ver mais uma vez – mas ainda admiro A troca meio de longe, bastante desconfiado.
Entendo os elogios ao filme: há quem chame a atenção para o curto-circuito entre a trama principal (um melodrama) e a parelela (um thriller de serial killer), e de fato isso existe. Há quem note o ataque silencioso e generalizado de Eastwood a todo tipo de autoridade (da polícia aos médicos). Está lá.
Mas são comentários que desviam daquilo que tomei como o centro de tudo. Ou melhor: do que me perseguiu durante toda a projeção. Existe uma pessoa em mais de 80% das cenas e, bem, ela se chama Angelina Jolie.
É que, queira Clint ou não, o sucesso do filme depende muito da performance de Angelina. E aí mora um problema (o roteiro de J. Michael Straczynski infla exageradamente a trama e há uma sequência de tribunal que me desagrada em tudo, mas é outra história).
Uma protagonista desse tamanho, elo entre o espectador e o filme, merecia uma atriz menos limitada. Sei que muitos discordarão, mas, quando imagino este filme defendido por outra pessoa, enxergo outra coisa.
Não que seja uma atuação desastrosa. Nada. É correta. Calculadamente correta. Em um ano menos competitivo, talvez lideraria apostas ao Oscar. Mas existe algo corriqueiro e mecânico nesta interpretação que reduz quase toda a carga dramática de algumas cenas que são essenciais para o drama. Não sei definir o que é. Mas, em alguns momentos, até pensei que a mãe desesperada estaria envolvida numa conspiração da polícia de Los Angeles.
Dizem que o filme é redundante. Pode ser, mas Angelina Jolie é mais. Se Clint não parece confortável como narrador do drama de uma heroína vitimizada, Angelina falha na missão de evocar desamparo, desespero, revolta. Às vezes, enfiada naquele exagero de figurino, fica parecendo um manequim.
Daí que o filme caminha manco, desapaixonado. Há o mérito de sempre: o olhar de Clint transmite aquele velho rigor ético, uma firmeza de princípios que vale por cententas de imperfeições. Mas o cineasta procura em Angelina Jolie um coração: e ele bate muito lentamente.