Cinema romeno
mostraSP | Dia 4
Diário da Mostra, parte 2.
Lembrando as regras do jogo: as cotações para os filmes que vejo na Mostra Internacional de Cinema de SP vão da letra D (de, digamos, deprimente), a A+ (de, digamos, absolutamente incrível).
O garoto da bicicleta | Le gamin au vélo | Jean-Pierre e Luc Dardenne | A | Pode parecer pedante quando, à saída da sessão de cinema, o sujeito comenta que ainda está embasbacado com a composição de cores do filme. Pois bem: esse sujeito sou eu, e ele acredita (mesmo!) que, neste longa dos Dardenne, a preferência por cores primárias (vermelho, verde e azul) não deve ser interpretada como uma firula banal para embelezar e polir as imagens. Pelo contrário: a opção informa de um jeito muito preciso e até simples (e estamos diante de um filme que sabe exatamente o que quer para si) o ponto de vista dos cineastas em relação ao protagonista, um menino “vermelho” que responde com energia incrível às dificuldades do cotidiano. Rigorosos como sempre (e suaves como nunca, sem muitos dos maneirismos de câmera que eles próprios criaram), os Dardenne criam um “playground” visual de aparente leveza, com bordas pontiagudas (as cenas de violência são raras, mas fortes). Eu passaria um dia inteiro olhando as imagens deste filme (o fotógrafo é Alain Marcoen), sem diálogos nem nada; mas, obsessões estranhas à parte, também acredito que é o Dardenne mais amável – e o mais bem resolvido desde O filho (2002).
Fora de satã | Hors satan | Bruno Dumont | B | Estamos de volta ao mundo de Bruno Dumont, onde caipiras-zumbis se movimentam em paisagens silenciosas, de natureza selvagem e sinistra. A novidade em Fora de satã é que, apesar de parecer um Dumont típico (a encenação lembra, de imediato, A vida de Jesus, A humanidade e Flandres), ele experimenta o tempo todo, ainda que sutilmente, com elementos de filmes de horror. Se o longa anterior do cineasta era sobre um menina quase santa, este coloca em cena uma figura diabólica, imbatível, como que um irmão interiorano do serial killer Javier Bardem de Onde os fracos não têm vez. Só que não há suspense: interessante, no caso, é testemunhar um cineasta que tenta negociar o tom bressoniano com cenas grotescas, surreais, que transportam o filme a um ambiente inexplorado. Ainda que, mesmo aí, Dumont ainda carregue todo o peso de um estilo.
Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios | Beto Brant e Renato Ciasca | C+ | O cinema de Brant se tornou, como ele gosta de dizer, mais “permeável” desde Crime delicado (2005), e o filme novo do diretor é mais um capítulo dessa etapa: à trama principal, o cineasta adiciona uma série de vinhetas/interferências/digressões que vão esgarçando a narrativa, arranhando o resultado do filme. O processo de filmagem, como acontecia também em Cão sem dono, é uma aventura a ser incluída no corte final. Dito isso, acredito que Eu receberia… mostra as fragilidades desse “sistema”: sem uma trama principal forte (o “caule” do filme, digamos), as divagações à margem do roteiro giram em falso. E a trama, no caso, não me convence em quase nada: apesar de Camila Pitanga (que domina o filme, não à toa), todo o desenvolvimento da love story me parece truncado, prejudicado por um ato final aceleradíssimo. O projeto de Brant segue me interessando, mas desta vez o making of possivelmente será mais curioso que o filme em si.
Loverboy | Catalin Mitulescu | C | Os sofrimentos do jovem garanhão romeno. Vidinha à deriva, filme idem.
Drops | Mostra de São Paulo (11)

Como acontece há três anos, acompanhar a Mostra de São Paulo me parece uma experiência ao mesmo tempo empolgante e terrível. Empolgante por conta dos filmes, é claro; e acima de tudo pelo encontro com pessoas em que, nas outras 50 semanas do ano, só consigo esbarrar via web. Mas terrível porque esses encontros, que intercalam os filmes, sempre se dão com muita pressa: impedem qualquer diálogo que vá além de um “o que você tem visto de bom?”. É um tanto frustrante. Mas deixarei claro: para mim, a Mostra perderia quase toda a graça sem os papos com o Diego, o Chico, a Alê, o Michel, o Bruno, o Carlos e tanta gente boa que acabo encontrando numa sessão e desencontrando logo depois. Abraço pra vocês.
E uma boa notícia para quem curte este blog e está cansado desta cinemaratona: só restam dois posts, ok?
Arcadia lost | Hameni Arkadia | Phedon Papamichael | 1/5 | E, para começar o dia com o pé esquerdo e perdendo de vez a fé na humanidade, uma produção grega (com personagens americanos e participação de Nick Nolte) que entra de imediato no topo do ranking dos filmes mais constrangedores desta Mostra. A projeção, num digital tão cristalino quanto um vídeo do YouTube, estava péssima – mas o filme, que nada tem a ver com isso, é ainda pior. Após um acidente de carro, dois adolescentes mimados se descobrem presos numa espécie de limbo hippie (imaginem aí uma versão de baixo orçamento para a última temporada de Lost) onde meninos e meninas sarados dançam ao redor de fogueiras. Na trilha sonora, genéricos para as baladas do Cranberries. Fácil matar o enigma da trama: o próprio filme é o purgatório, certo?
Memórias de Xangai – I wish I knew | Hai shang chuan qi | Jia Zhang-ke | 3/5 | Há alguns dias, estava eu aqui no blog condenando os documentários que adotam o formato mais manjado do gênero (depoimentos + imagens de arquivo). Pois bem: I wish I knew seria, em tese, convencional, já que Zhang-ke usa entrevistas e cenas da cidade para compor uma colcha de lembranças sobre a vida em Xangai. Mas não há nada mecânico, nada nem mesmo simples na forma como o cineasta organiza (melhor: desorganiza) as informações e, principalmente, as imagens que intercalam os depoimentos: Zhang-ke não tenta definir um retrato didático da cidade, ele parece nem acreditar nessa possibilidade. Prefere espalhar na tela fragmentos de memórias que nos permitem uma impressão de Xangai. Um filme, portanto, muito coerente com a trajetória do diretor; ainda que talvez vago, etéreo demais para quem não conhece a história política da cidade (o título em inglês resume minha frustração: I wish I knew…).
Se eu quiser assobiar, eu assobio | Eu cand vreau sa fluier | Florin Serban | 3/5 | O candidato romeno ao Oscar aplica uma grife já muito conhecida no circuito dos festivais (trama e atuações realistas, tom crítico em relação às instituições, uma câmera paciente, economia de efeitos, etc) a serviço de uma trama quadradinha: um jovem detento que precisa urgentemente sair do confinamento para resolver uma crise familiar. A situação-limite seria, por si só, insuportável; mas o filme a espreme (até o bagaço) num clímax prolongado, artificial. Melhor lembrar da primeira metade do longa, que nos transporta ao cotidiano dos personagens com aquela já típica sofisticação romena: parece simples, mas não é.
Atração perigosa | The town | Ben Affleck | 3/5 | O novo de Affleck está na programação da Mostra, mas entrou no circuito ainda na metade do festival. Um “jogo duplo”, aliás, que diz muito sobre as tentativas do filme de atrair públicos, em tese, diferentes: o fã de seriados policiais americanos e aquele espectador que talvez procure um thriller menos esquemático, com um quê reflexivo, na linha do primeiro longa dirigido pelo ator, Medo da verdade. É uma ambição saudável, mas Affleck nem sempre dá conta de dosar as intenções do filme: a história de amor, por exemplo, me parece uma bobagem típica de Jerry Bruckheimer; já o jogo de gato-e-rato entre os personagens, que rende um clímax muito forte, mostram que o ator/diretor entende de ação, está no caminho certo e talvez deva dirigir mais e atuar menos.
Drops | Mostra de São Paulo (9)

Aurora| Cristi Puiu | 3/5 | Quem acompanha os filmes romenos recentes – pelo menos aqueles que são exibidos em nossos festivais – pode ficar com a impressão de que eles são assinados por uma mesma pessoa ou por uma comissão que define padrões visuais e narrativos a serem seguidos. De início, este Aurora provoca algum estranhamento ao distender esse modelo a um ponto tão exaustivo que pode provocar no espectador uma sensação de entorpecimento. Talvez essa, aliás, tenha sido a intenção de Puiu (de A morte do sr. Lazarescu), que sabota as convenções de uma típica “fita de serial killer” ao seguir quase solenemente um homem comum, inexpressivo, oco (interpretado pelo próprio diretor), que, nas três horas de duração do longa, mata quatro pessoas. Logo percebemos que Puiu está, de fato, fazendo o filme que esperamos dos romenos (do tema cotidiano à fotografia realista, incluindo aí um olhar muito duro para as relações sociais e as instituições do país), só que distorcido por uma lente-lupa, que amplia e satura cada imagem. No desfecho, quando Puiu mostra uma sociedade tão impassível quanto o próprio protagonista, nos perguntamos se o nosso esforço não teria sido em vão.
Você vai conhecer o homem dos seus sonhos | You will meet a tall dark stranger | Woody Allen | 3/5 | Allen deseja que tomemos este filme como uma comédia rasteira (a narração em off, por exemplo, trata a trama como se fosse uma grande bobagem), mas esse tom ligeiro diz muito sobre o momento do cineasta que, como no filme anterior (Tudo pode dar certo), elimina quase todos penduricalhos da narrativa para mostrar com muita precisão o que ele vê de patético e de encantador na vida. Muito pouco encanto, na verdade: para suportar o “som e a fúria” da existência, Allen recomenda uma dose diária de ilusão.
Carlos | Olivier Assayas | 3.5/5 | Esta minissérie francesa sobre a trajetória do terrorista venezuelano Carlos, o Chacal, carece da fluência do outro filme-maratona da Mostra, Mistérios de Lisboa. O formato da narrativa me parece até previsível, enfadonho: Assayas não renega muitas das obrigações de uma cinebiografia-padrão (talvez seja o filme mais convencional que ele dirigiu) e usa as 5h30 de duração principalmente para encenar os atos, a performance de Carlos (e dedicação de Edgar Ramirez impressiona) – daí que não será absurda a comparação com o Che de Soderbergh. As três primeiras partes do filme reconstituem os atentados (em ordem cronológica e com recursos de documentário, como a pesquisa de imagens de arquivo) com detalhismo que ressalta a mecânica do terrorismo internacional e o traquejo de Assayas para conduzir sequência de ação. Mas, apesar de todos os méritos (são muitos), essa estrutura se torna cansativa, um tanto redundante, para quem vê a série de uma vez só. Muitas das ideias do cineasta (a trilha sonora de punk e pós-punk, por exemplo) se diluem na imensidão da narrativa, ainda que Carlos me pareça um típico personagem do diretor: o homem que flutua livremente sobre um mundo, vencendo as fronteiras geográficas, a barreira dos idiomas – e, por fim, desaparecendo na paisagem.