Certa frustração

Heligoland | Massive Attack

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Quem tem menos de 20 anos pode (e tem o direito de) desconfiar, mas havia um tempo em que o Massive Attack era uma das bandas mais importantes do planeta.

Sério. Quando lançaram Mezzanine, em 1998, Daddy G, Mushroom e 3D ainda posavam nas fotos como gângsteres emburrados, irritadiços, visionários e muito perigosos. Até eu, um inocente fã de Smashing Pumpkins e Oasis, os respeitava.

Nas revistas inglesas, pareciam intocáveis: passavam por “pais do trip hop” (o gênero mais cool na prateleira de CDs), “alquimistas pop”, “inventores da nova soul music”, “reis de Bristol”. Eram os caras que gravaram uma obra-prima precoce (Blue lines, de 1991) e dois grandes álbuns que chegavam bem perto daquela estreia (Protection, de 1994, e o próprio Mezzanine). Nas listas de melhores do ano, entravam sempre com pulseirinhas VIP.

Acredito até que, por algum momento, alguns meses, lá por volta de 1996, todo rapper sonhava em fazer uma ponta num disco do Massive Attack.

Para quem viveu os anos 90, é complicado entender por que, há 10 anos, o Massive Attack não é capaz de provocar tanta comoção. O que houve? Por que uma banda que traduzia tão bem a atmosfera de tensão e paranoia do fim de século não conseguiu sobreviver ao bug do milênio? Por que, justo no momento em que as coisas ficaram verdadeiramente confusas, eles nos abandonaram?

Sem querer encontrar o diagnóstico para a síndrome, minha hipótese é de que a musa do Massive Attack era os anos 90. O trio soube, como poucos, congelar a polpa de uma década transitória, sem identidade definida, um período de muitas incertezas e transformações velozes, às vezes inacreditáveis (e a banda nem teve tempo para entender a internet, por exemplo). O trip hop é a trilha sonora dos anos 90: uma colagem mutante, urbana, sombria e prestes a explodir.

Discos como Mezzanine e Pre-millenium tension (esse último, do Tricky) ainda soam como um réquiem para o século. Curioso é como o “novo mundo” previsto pelo trip hop acabou por destroçar o gênero. O Portishead demorou uma eternidade para lançar o terceiro disco, que só foi possível graças a um longo processo de reinvenção. O Tricky não soube se adaptar bem ao futuro e o Massive Attack acabou se desintegrando. O gélido 100th window, de 2003, soa como um projeto solo de 3D — ainda estiloso e fatalista, mas sem destino.

No álbum novo, Heligoland, eles tentam retomar uma estrada que parecia perdida desde o fim dos anos 90. Daddy G volta à cena e, agora como duo, a banda tenta retornar a uma sonoridade mais carnuda, calorosa, mais para a soul music do que para a eletrônica minimalista. É uma boa tentativa, com alguns grandes momentos. Mas, novamente, eles se esforçam para retratar um estado de coisas que não mais compreendem.

Para eles, a única salvação seria fazer justiça ao prestígio que ainda preservam junto ao público que cresceu nos anos 90. Muitos críticos vão tratar este disco com condescendência, talvez estimulados por lembranças daquela época. Ainda que nada em Heligoland dê sinais da maior qualidade do antigo Massive Attack: a capacidade de nos assombrar.

Pelo contrário. Este é o álbum mais domesticado que eles gravaram. Previsível na escolha dos convidados da vez (se bem que Horace Andy, Hope Sandoval e Damon Albarn mostram muito bem a saudade que este disco sente dos anos 90), mas o mais próximo que eles chegaram do pop. A faixa de abertura, com participação de Tunde Adebimpe (TV on the Radio), explica tudo: começa como um mantra à Protection e logo facilita nosso trabalho com um trecho melodioso que quase soa como uma homenagem a Brian Wilson. Slitting the atom, outro bom momento, abre com camadas de vocais abafados, mas quebra o mistério com um refrão até assobiável. O miolo do disco fica nessa dúvida: é possível reciclar e diluir o próprio passado com alguma diginidade?

Talvez sim. Um exemplo de que a banda realmente se esforçou é a alienígena Paradise circus, que poderia ser usada como tema de ficção científica (o clima cinematográfico do disco, aliás, diz muito sobre a experiência de 3D em trilhas sonoras). Ou o crossover, ainda que discreto, com o brit pop, em Saturday come slow (uma típica balada desesperada dos três últimos discos do Blur).

Há elegância, alguma segurança nesse tiroteio. Mas, é claro, eles continuam perdidinhos nos anos 00. Seria interessante se, nos próximos discos, 3D e Daddy G conseguissem usar essa dificuldade de adaptação como motor para dialogar com uma geração que também sofre com esse tipo de crise. Mas, ao contrário de colegas de classe como o Radiohead e o Portishead, o Massive Attack parece preocupado demais com a própria sobrevivência para pensar nesse tipo de aventura.

Daí que corre o risco de, para toda uma geração com menos de 20 anos, serem lembrados como os caras que criaram o tema de House. O futuro (eles estavam certos!) é mesmo triste.

Quinto disco do Massive Attack. 10 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Virgin Records. 6/10

Transference | Spoon

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Havia um tempo em que um das maiores metas de toda banda de rock independente era entrar nas paradas de sucesso, assinar com uma megacorporação, levar prêmios no MTV Vídeo Music Awards, aparecer em trilhas de seriados e se espremer na lista de melhores do ano da revista Rolling Stone. Lembram dessa época? O Spoon faz questão de esquecer.

O quarteto de Britt Daniel cumpriu quase todos os requisitos que – numa temporada distante – transformavam promessas do rock alternativo em novidade do mainstream (e notem como essa palavra, mainstream, cheira a mofo). Foi contratado (e expulso) de uma grande gravadora, entrou no top 10 da Billboard (com Ga ga ga ga ga, o mais perto que eles chegaram do pop) e, ainda que eu não lembre de algum clipe deles que tenha sido premiado no VMA, mal tiveram a oportunidade de concorrer. Sim, a Rolling Stone os trata como sujeitos até bem decentes.

O que essa incrível escalada-para-o-sucesso representou para o Spoon? Para minha sorte, para sua sorte, quase nada. A banda tem 16 anos de vida (nem parece!) e sobreviveu graças à forma mui inteligente como sacou que, de 2000 para cá, deixou de fazer sentido o desejo de aderir ao lado dourado da força. A ideia de mainstream, hoje, (ou pelo menos a ideia de um mainstream saudável) veste à perfeição grupos que, como o Spoon, sabem mirar um público mais ou menos amplo sem menosprezar as qualidades mais prezadas do indie rock: em primeiro lugar, a disposição para o risco.

Transference, o sétimo disco dos texanos mais simpáticos do planeta, é uma declaração de que eles não estão nem aí.

Um disco doméstico, gravado aceleradamente (mas não com desleixo) no porão da casa de Daniel. Projetado para soar como uma coleção de fitas demo, com guitarras dissonantes e interrupções abruptas entre uma canção e outra. Um álbum ríspido que, no mínimo, sugere uma reação à polidez de Ga ga ga ga ga. Não que a banda rejeite aquele disco (e quem rejeitaria? É irresistível). Mas talvez tenha se incomodado com as cobranças de quem esperava por um trabalho ainda mais luminoso, acessível e elaborado que aquele. Transference é o oposto de tudo isso.

Um disco que, nas primeiras audições, soa tinhoso. Mas sugiro que você passe um tempo na companhia dele – talvez uns três dias – para entender a definição que a própria banda dá para o álbum. De que é uma espécie de resumo da obra, colcha de trademarks, “the spooniest”. Talvez seja isso mesmo: ao tomar as rédeas da produção pela primeira vez, o Spoon encontra uma sonoridade “crua” e uma atitude (calculadamente) espontânea que aquece as composições matemáticas de Daniel. No single Written in reverse, com gritinhos de euforia afundados na mixagem, a impressão é de que eles improvisam numa tarde divertida de sábado. Não devem nada a ninguém.

Depois que nos acostumamos aos farrapos do álbum, chegamos ao coração do Spoon: a estrutura das canções. Sempre foi o mais importante, não? Daniel só encontrou o caminho para um estilo quando despiu-se dos ornamentos e encarou a melodia – em Kill the moonlight, a obra-prima dele. Os discos seguintes acrescentam, cuidadosamente, elementos chamativos a essa célula-mãe. Gimme fiction tinha momentos épicos. Ga ga ga ga ga ia ao ska, à soul music de branco. Nessa trajetória (não necessariamente uma linha evolutiva), Transference não chega a soar como uma ruptura nem como um avanço. A banda tenta adaptar as canções dos dois discos anteriores (mais ambiciosas, digamos) a um formato que restaura a pose caseira dos primeiros trabalhos.

O ar despreocupado que sai das canções, por isso, é falso. “Não tenho nada a perder além de escuridão e sombras”, diz Daniel em Got nuffin’. O disco o contradiz, já que descreve um círculo em torno da história do Spoon. É o primeiro álbum totalmente autorreferencial que eles gravaram – um disco que, apesar de dois ou três momentos de verdadeira ousadia (Who makes your money aprofunda as experiências com soul do disco anterior, e soa como se tivesse caído de outro planeta; a balada Goodnight Laura, apesar de derramada, é uma surpresa), apenas confirma a fórmula-Spoon: os arranjos tensos, a performance aflitiva de Daniel, a habilidade para composições precisas (e deve ser mesmo complicado soar tão simples).

Novamente, eles acertaram: Transference é um disco muito eficiente, cheio de recompensas aos mais fãs mais dedicados, mas que me deixa uma estranha impressão de imobilidade. O Spoon parece, enfim, satisfeito com o próprio som (apaixonado pelo próprio som, possivelmente). Talvez seja essa sensação de excessiva familiaridade que tenha me frustrado um pouco. Depois de ter mirado estrelas, o Spoon volta ao porão de casa. Belo porão. O porão: um lugar que, em 2010, parecerá cada vez mais seguro e confortável ao rock independente.

Sétimo disco do Spoon. 11 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Merge e ANTI Records. 7/10