Caos e desordem
Crystal Castles | Crystal Castles
Anote e não deixe faltar na sua lista de fim de ano: Crystal Castles pode até não se segurar como o melhor disco de 2010, mas será um dos poucos que, lá em dezembro, vão soar como um retrato muito vivo deste nosso tão estranho, tão efêmero, tão frenético, tão caótico mundo pop.
Pretensioso, eu? Mas é isso aí. Este é um disco que, antes de qualquer qualidade (ou defeito, certamente vão encontrar muitos), soa urgente como o noticiário das oito e meia. Não é sempre que acontece. Mais cedo ou mais tarde, você vai acabar se surpreendendo da mesma forma como eu me surpreendi.
Algumas bandas e artistas têm o talento (ou a sorte) de, talvez inconscientemente, capturar o sentimento de uma época. M.I.A e Vampire Weekend fazem isso quando viram a world music pelo avesso. Radiohead é o próprio sintoma de um período marcado por transformações aceleradas. Geniozinhos de laptop como o Flying Lotus e o Burial, por exemplo, foram gerados na placenta da microtecnologia. Performers mutantes, The Knife, Beirut e Liars espelham o que existe de mais instável num mundo imprevisível, desconfortável.
Adicione o Crystal Castles a esse clube. O duo, formado por Ethan Kath e Alice Glass, se fez conhecido por uma sonoridade bipolar — tão agressiva quanto delicada — que parecia combinar punk e electro. Alguns o chamavam de “digipunk”, outros de “techno-metal”. Mas eles nunca soaram como isso ou aquilo. O ponto de partida é o noise rock, mas eles não escrevem o próprio destino em pedra.
O segundo disco confunde ainda mais quem tenta classificá-los. Começa violentíssimo, sob poeira de ruídos agudos, e vai se reinventando até a última faixa: do shoegazing ao electropop, do hardcore a uma catarata de distorção que só pode ser classificada como tortura sonora. Tudo é possível. Nada faz sentido. O mundo vai acabar em 2012, salve-se quem puder.
O susto é premeditado (tudo ceninha, percebe?). O gosto pelo caos está no hardware do grupo. Gravado em uma igreja na Islândia, num chalé em Ontário (no Canadá, país de origem do duo) e numa loja de conveniência abandonada em Detroit, Michican, e em Londres, o álbum é desconexo de propósito. Quase por birra, não é nada conciso. Tem 14 faixas, algumas longas, e não se contentaria com menos.
A ideia, creio eu, é compactar todos os interesses de Alice e Ethan dentro de um CD-testamento. O resultado é uma mixtape perversa, com uma tracklist que nos deixa para sempre perdidos. Algumas grosserias são quase inaudíveis (caso de Doe deer, que ouço em volume máximo quando quero que o planeta exploda), outras são de uma sensibilidade doce, até radiofônica (aposto que Celestica vai rolar fácil nas rádios britânicas). “Siga-me para lugar algum”, convida Alice. É pra já!
Nas primeiras faixas, o disco se apresenta como um bicho de sete cabeças: os contrastes são intensos, chocantes, gratuitos. Aos poucos, como quem vai afinando uma rádio (indo e voltando nas estações mais acessíveis, sem medo de cair nas lacunas ruidosas que separam umas das outras), a banda encontra a sintonia e, da metade em diante, ele se transforma em uma outra criatura, esguia e autoconfiante. Minhas músicas favoritas estão nessa segunda metade: os jogos vocais em Violent dreams, o aperto claustrofóbico de Vietnam, o desespero sinistro de I am made of chalk, o cinismo fofo de Not in love.
Tal como o The Knife, o Crystal Castles usa efeitos especiais para criar personas e, assim, definir o perfil de cada canção. Cada uma delas parece abrir um capítulo diferente nesta saga. Talvez por isso o disco não aborreça e, até a última faixa, siga oferecendo novos mistérios. Mas, ao contrário dos suecos, existe uma aura familiar no som do duo — um traço humano, palpável — que permite ao ouvinte experimentar os prazeres mais simples do pop.
Nos anos 90, a década em que eu cresci, um disco como este seria tachado de irregular, sem forma, imaturo. Hoje, soa simplesmente apropriado: se você pudesse converter o noticiário em uma só música, como ela soaria? Aposto que, em alguns trechos, o barulho seria insuportável.
Segundo disco do Crystal Castles. 14 faixas, com produção de Ethan Kath. Lançamento Fiction Records. 8.5/10
Esta publicação foi postada em Álbum, Música e marcada Cacos sonoros, Caos e desordem, Casal infernal, Crystal Castles, Digipunk, Disco poderoso, Duo canadense, Electropunk, Frenéticos, Geração 2000, Imprevisível, Krautrock, Listas de fim de ano, Melhores de 2010, Mundo estranho, Mundo pop, Nosso mundo, Pop, Radiohead, Santa pretensão!.