Há os filmes muito ambiciosos, cheios de ideias e intenções: os superfilmes. Mas penso que às vezes nós, os espectadores mais esperançosos, nos esforçamos demais para encontrar num longa-metragem as reflexões urgentes e panorâmicas sobre grandes coisas – quando não sobre todas as coisas. Queremos que a fita de ação norte-americana nos diga algo importante sobre o governo Bush (e ela diz, se prestarmos atenção), enquanto que o drama sérvio pode ser que aponte para a crise de identidades no capitalismo globalizado. E, nessa ânsia de querer sempre muito assunto, talvez percamos de vista os filmes em si. Nos jornais, leio que Melancolia fala sobre o “mal-estar do mundo”. Talvez fale mesmo (Lars von Trier não é um cineasta de gestos pequenos). Só que prefiro encará-lo como um filme, me perdoem, menor. Não sei se pode. Pode?
Menor no sentido de que, na minha interpretação, ele não quer abarcar todas as crises do planeta (ou do século 21) dentro de suas 2h20 de duração. Não o vejo como um filme sobre o “mal-estar do mundo”, mas sobre um mal-estar específico, possivelmente sobre um estado de espírito: a depressão, o vírus da melancolia, o desencanto sem fundo (chame como preferir). A personagem principal é uma noiva deprimida (Kirsten Dunst, que ganhou Cannes), que vai congelando lentamente. O contraponto a essa mulher-estátua é a irmã da noiva (Charlotte Gainsbourg, que rouba a cena), sempre muito ativa, preocupada com todos os problemas. Trier opõe as personagens da forma distanciada e simétrica como costuma fazer, e nisso o filme lembra um pouco a estrutura de Dogville: tudo nos devidos lugares, quase didaticamente (as cenas iniciais, aliás, resumem a trama num slow-motion rococó).
Não é um filme para ser amado, acho (a primeira metade, que reprisa a ironia cruel e blasé de Festa de família, chega a ser tediosa). No entanto, ele cumpre um objetivo até “pequeno” de uma forma muito rigorosa: contamina a narrativa com a desilusão da protagonista, com essa desconfortável insensibilidade, e usa a premissa bombástica (à la disaster movie, na linha de Impacto profundo) como uma espécie de metáfora/hipérbole para a lente cinzenta que afeta o olhar de quem é atingido por esse apocalipse íntimo. Trier escreveu Anticristo enquanto estava abatido por uma depressão. O longa novo soa como o “day-after” dessa crise pessoal: imagens que remetem, agora “de longe”, a uma condição psicológica. Nesse sentido aí, me parece um filmezinho extraordinário. Mas que, pra mim, não quer explicar grande coisa alguma.
O projeto Frankenstein | Tender son: a Frankenstein project | Kornél Mundruczó | 1.5/5 | Uma adaptação sui generis (mas desastrada) do romance de Mary Shelley, que praticamente anula o tom fantástico do livro para ressaltar a relação entre o filho-monstro (no caso, um adolescente de 19 anos) e os pais. O conceito não trai o espírito do original, mas os personagens unidimensionais – todos apáticos, infelizes – denunciam o traço mais incômodo deste “projeto”, que competiu este ano em Cannes: é uma ideia sem alma.
O silêncio | Das letzte schweigen | Baran Bo Odar | 1.5/5 | Apenas mais um filme de serial killer (só que alemão, e com uma conclusão tolinha e previsível que seria vetada por qualquer produtor hollywoodiano experiente).
Almas silenciosas | Ovsyanki | Aleksei Fedorchenko | 3/5 | Como acontece em Minha felicidade, este Almas silenciosas é um ensaio sobre a identidade russa metido num disfarce de road movie. Mas, se o filme de Loznitsa é um ataque direto aos traços mais brutais desse “espírito nacional”, Fedorchenko se interessa pelos rituais que moldam uma nação. São filmes-tese, mas validados por um fator humano muito forte: no caso de Almas silenciosas, os dois personagens principais estão quase sempre à frente de uma fábula que, apesar de afogar o motor em alguns trechos (no desfecho simplório, na narração em off excessiva), acabou me surpreendendo como um dos longas mais escancaradamente afetuosos que vi nesta Mostra. O conceito até sufoca, mas o coração do filme não para de bater.
!!! Homens e deuses | Des hommes et des Dieux | Xavier Beauvois | 4/5 | Talvez à procura de um retrato digno, justo, dos os oito monges franceses que inspiram o filme, Beauvois compôs seres imaculados: tipos tão corretos, tão absolutamente dedicados à fé e à caridade, que definitivamente estão mais perto dos deuses do que dos homens. Mas essa é uma opção que me parece coerente (e este, repare, é um filme também sobre opções), já que estamos falando de um drama disposto a entender e respeitar as crenças, os ritos, o ritmo dos personagens. A atmosfera de tragédia iminente contamina a trama, mas Beauvois minimiza o suspense e descreve uma marcha serena para a morte. Mais do que o desenlace terrível dos eventos, o que intriga o cineasta é o processo radical de confirmação da fé, da aceitação de um fardo e de uma missão. Perdoem o trocadilho, mas parece até milagroso que ele tenha conseguido congelar esse enigma todo numa única cena – que é sublime, é sim.
Nosso fantástico século 21 | Neowa naui 21 segi | Ryu Hyung-ki | 2/5 | O cineasta coreano fotografa a metrópole como quem testa ideias para um filme de ficção científica – mas o visual cinzento serve a uma narrativa desapaixonada, sem viço, que larga os personagens (e o espectador) à deriva. É a estreia de Hyung-ki, o que talvez explique a falta de jeito.
The Runaways – Garotas do rock | Floria Sigismondi | 2/5 | Uma banda de rock pioneira – já que formada apenas por meninas, nos anos 70 – merecia mais do que uma cinebio falsamente ousada (visual à la Boogie nights, narrativa que em nada trai o modelo de fitas sobre estrelas que sobem e desabam). De qualquer modo, Kristen Stewart e Dakota Fanning vão com sede ao pote.
Viúvas sempre às quintas | Las viudas de los jueves | Marcelo Piñeyro | 2.5/5 | Um episódio de Desperate housewives sobre a crise econômica argentina. Não deixa de ser curioso (mas me parece o pior de Piñeyro).
Nossa vida exposta | We live in public | Ondi Timoner | 3/5 | A trajetória de Josh Harris é tão bizarra e cheia de surpresas extravagantes que me perguntei em vários momentos se este filme não seria um mockumentary: de geniozinho milionário da internet a cobaia de loucas experiências virtuais, o homem conseguiu prever a onda de exposição da intimidade via web… e foi engolido por ela. Grande história, que o filme documenta sem grandes insights.
!!! Armadillo | Janus Metz | 4/5 | Um filme de guerra espantoso (crueza e lirismo à queima-roupa, e algumas das digressões visuais mais chapantes deste festival) que acompanha soldados dinamarqueses numa missão no Afeganistão. A paranoia e a aflição se intensificam no decorrer da narrativa – como de praxe em documentários do gênero. O que me embasbaca, no entanto, é descobrir a motivação dos personagens, tipos comuns que poderiam estar em casa jogando Playstation, mas vão para o front em busca de “aventura e camaradagem”.
A solidão dos números primos | La solitudine del numeri primi | Saverio Costanzo | 1.5/5 | Dois personagens outsiders, cheios de manias esquisitas, solitários, infelizes, adoráveis. E claro: ESPECIAIS. Fofice-loser para fãs de Amélie Poulain. Sob medida para virar hit de festivais.
Quebra-cabeça | Rompecabezas | Natalia Smirnoff | 3/5 | Um filme orgulhosamente pequeno (contraponto necessário a um cinema argentino cada vez mais hipnotizado pelo “padrão de qualidade” que não ofende a Academia de Hollywood) que se concentra no que lhe parece essencial: a ótima atuação de María Onetto e um roteiro com peças que se encaixam.
Amores imaginários | Les amours imaginaires | Xavier Dolan | 2/5 | Cinema juvenil tanto no tema (amores idealizados, não correspondidos, impossíveis) quanto no formato (uma colagem de referências cool, de Tarantino a Kar-wai, passando obrigatoriamente por Godard e Truffaut do início dos anos 60). Muito glacê para pouca massa – outro canditato a hit de festivais. Pode parecer increditável, mas a cena final confirma: já podemos falar num sub-Honoré.
Dias 3 e 4
Dois irmãos | Dos hermanos | Daniel Burman | 2/5 | Ainda não consigo engolir a ideia de que Burman se contenta em dirigir comédias afetuosas (e inofensivas) sobre relações familiares. O público dessas cinecrônicas parece mesmo imenso (vi o filme numa sessão lotada de meio-dia, com fortes aplausos ao fim), mas, desde Direito de família, fico com a impressão de que o cineasta encontrou uma zona de conforto de onde rejeita sair. Boas atuações, no entanto.
!!! Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas | Lung Boonmee raluek chat | Apichatpong Weerasethakul | 5/5 | É, como Mal dos trópicos, um passeio numa Tailândia rural, misteriosa, onde o mundano e o transcendental dividem um mesmo espaço. Mas, se naquele filme Apichatpong dividia a narrativa em duas partes (uma mais realista, outra mais abstrata), em Tio Boonmee o cineasta derruba essa parede entre os “mundos” e cria um fluxo contínuo de delírio, crença e cenas do cotidiano. Não tem como fugir do clichê: o efeito é de transe, de alucinação mesmo. Mesmo acostumado às habilidades hipnóticas do diretor, saí do cinema transtornado – é daqueles filmes que nos abduzem.
The killer inside me | Michael Winterbottom | 2.5/5 | O olhar cínico e desapaixonado de Winterbottom para o noir (como se estivesse estudando o gênero) me lembra algo dos irmãos Coen, mas o sujeito ainda não me convenceu de que tem algo de pessoal a comentar sobre as f’órmulas cinematográficas que aplica. Quem é Winterbottom? Apesar de conhecer quase toda a filmografia do diretor, ainda não sei como responder essa pergunta.
Scott Pilgrim contra o mundo | Edgar Wright | 3.5/5 | Wright é dos poucos diretores que me fazem rir feito criancinha (e quase chorar, como na cena que usa I heard Ramona sing, do Frank Black, como tema para a venenosa Ramona Flowers). Michael Cera talvez não seja o ator certo para interpretar Scott Pilgrim, o geek bom de briga. Mas quem seria? O tilt do filme nem me parece culpa do ator ou do diretor: tal como a HQ, a primeira parte da narrativa (30 minutos de paraíso) perde a verve quando a trama vira um joguinho de luta.
Poesia | Shi | Lee Changdong | 3.5/5 | Um filme que, como os personagens principais, desvia o tempo todo do conflito principal – como quem fecha os olhos para não encarar a cena de um acidente. A catarse do desfecho compensa os muitos momentos frouxos da narrativa, que se alonga demais. Ganhou o prêmio de roteiro em Cannes, mas merecia mesmo era ter vencido o de melhor atriz.
Stones in exile | Stephen Kijak | 2/5 | Qualquer documentário sobre a gravação de Exile on Main Steet será no mínimo interessante, mas este me pareceu uma peça de divulgação “oficial” que pouco acrescenta a tudo o que conhecemos sobre o caso. E, em econômicos 60 minutos, soa superficial.
Dia 2
Tournée | Mathieu Amalric | 3/5 | As fanfarronices das atrizes no palco são bem mais poderosas do que os dramas familiares do protagonista, e Amalric é generoso (e inteligente) o suficiente para não podá-las na montagem. Mas vocês têm certeza de que ele levou o prêmio de melhor direção em Cannes?
A vida durante a guerra | Life during wartime | Todd Solondz | 2/5 | A fúria de Solondz não cessa jamais, e este filme contém alguns dos diálogos mais cruéis que saíram da “caixinha de maldades” do diretor. Mas a continuação de Felicidade (com elenco totalmente diferente) só explicita o quanto este cinema, ainda que tenha se tornado mais áspero e inflexível, não sabe muito o que fazer além de reaproveitar preguiçosamente as próprias ideias.
Amigo | John Sayles | w/o | Primeira desistência da Mostra: a cópia embaçada (em DVCam), somada à minha completa desatenção nos primeiros 20 e 30 minutos, me derrubaram. Mas parece curioso (Sayles filma a guerra nas Filipinas) e prometo voltar a ele.
Ano bissexto | Año bisiexto | Michael Rowe | 1/5 | No fim da sessão, uma senhora tentou me convencer de que este é o melhor filme da Mostra: “Ele não é pra qualquer bico. Tem psicologia, psiquiatria… É uma loucura”, ela se esforçou. Me senti um cego: tudo o que consegui ver na tela foi uma personagem infeliz sendo torturada implacavelmente (pela vida, pelo namorado macabro, por ela própria e principalmente pelo diretor). Sabe-se lá por que, venceu a Câmera de Ouro em Cannes.
Contos da era dourada | Amintiri din epoca de aur | Hanno Höfer, Razvan Marculescu, Cristian Mungiu, Constantin Popescu e Ioana Uricaru | 3/5 | Um raro filme de episódios que preza por uma unidade não só temática (eles encenam as lendas urbanas da ditadura de Ceausescu) mas formal. Os capítulos são filmados com a mesma lente realista de um 4 meses, 3 semanas e 2 dias, mas com a ironia surreal de um A leste de Bucareste. Isto é: um portfólio simpático (ainda que talvez confortável demais) para o “novo cinema romeno”.
Dia 1
!!! Somewhere | Sofia Coppola | 4/5 | É o mais arredio entre filmes de Sofia Coppola (os 15 minutos iniciais, com cenas longas que se espreguiçam infinitamente, chegam a lembrar Vincent Gallo e o Gus Van Sant de Last days e Elefante), mas também me parece uma continuação para Encontros e desencontros, com um protagonista perdido numa bolha de sucesso e tédio, quase descolado do tempo e do espaço (e as cenas da viagem a Itália rendem comparações irresistíveis com aquele outro filme) e que só consegue enxergar a própria crise quando entra em contato com outra pessoa (a filha). A descoberta é narrada com sutileza até um desfecho amarradinho que quase estraga tudo. Logo em seguida, nos crédios, entra Love like a sunset, do Phoenix – e o filme volta às nuvens.
Carancho | Pablo Trapero | 2/5 | Uma decepção. As cenas de violência ardem os olhos, mas visual do filme me parece polido e impessoal (mais para O segredo dos seus olhos, menos para Família rodante ou Leonera) e o desfecho é digno de Iñárritu.
Rubber| Quentin Dupieux | 3/5 | Uma metagozação (e, se a palavra soou grosseira, faz todo o sentido nesse contexto) que soa como um videoclipe alongado do Spike Jonze – isto é: nonsense espertinho com uma ou outra boa ideia visual. Resumindo a trama: um pneu assassino à solta no deserto americano.
La nostra vita | Daniele Luchetti | 2.5/5 | Elio Germano venceu prêmio em Cannes pelo papel do pai de família que perde a esposa e tem que cuidar dos filhos. É uma atuação muito segura (ainda que a cena principal do personagem tente ganhar o espectador literalmente no grito), mas fiquei com a impressão de já ter visto umas cinco versões melhores para este melodrama italiano – e sem a necessidade da câmera tremida.
!!! Film socialisme | Jean-Luc Godard | 4/5 | Um Godard mais criptografado do que de costume (admito que não captei nem 10% das referências políticas, literárias, filosóficas, geográficas) e ainda fascinante. A composição de cores em digital me impressionou muito. No mais, sem comentários.
Acabei de sair da sessão do Tarantino e admito que… Ok, não vou conseguir enganar ninguém. Não estou em Cannes. Não vi Anticristo. Não estou emburrado com o Almodóvar. Você clicou no blog errado.
Continuo em Brasília. Especificamente: em 2006. Os cinemas da cidade exibem um thriller sobre conspirações na Igreja Católica, uma sequência de X-Men e uma aventura inocente sobre estátuas de museu que ganham vida e atormentam Ben Stiller. Meu namoro começou há apenas um ano, moro com meus pais e este blog que você está lendo ainda não foi criado.
(Falta um parágrafo, mas vou conseguir resumir tudo sem transformá-lo num capítulo de Saramago) Uma noite no museu 2 (4.5/10) é uma continuação bastante típica: uma versão amplificada do filme original. A quem gostou do primeiro filme, oferece mais (efeitos!), mais (comediantes de apoio!) e mais (galerias no museu!). Àqueles que, como eu, viram no sucesso de 2006 uma extensão vagabunda de fitinhas inocentes e fantasiosas como Jumanji e A chave mágica, também há mais (ingenuidade!), mais (piadas tolinhas!) e mais (comediantes desperdiçados em papéis minúsculos!). Gosto quando as fotografias clássicas da galeria de arte ganham vida e atormentam Ben Stiller. Cenas que me distraíram por alguns segundos do desejo de partir para Cannes, para longe, para 2012, para qualquer lugar.