Canções de amor

Lisbon | The Walkmen

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Viajei a Lisboa certa vez, mas é como se eu ainda não conhecesse a cidade. É essa a sensação: estive lá, mas não estive. 

Uma viagem curta demais (dois dias), mas lembro que acordei cedo numa manhã de sábado para bater perna. Outro dia sonhei com aquela paisagem surreal: prédios centenários anexados a shoppings ultramodernos, escolas muito simples diante de consultórios médicos pré-históricos, ruelas curvilíneas que pareciam não levar a lugar algum (ou nos trazer de volta ao ponto de partida, o que me parece ainda mais estranho). Se eu pudesse, ficaria caminhando sem parar, indo e voltando e indo mais uma vez. 

É uma cidade que parece conciliar algo do passado e algo do presente (e do futuro?), mas que também parece solta no tempo, flutuante, desinteressada em atualizar-se ou em justificar a própria nostalgia. Algo assim.

Peter Bauer, o organista do Walkmen, contou numa entrevista que o novo disco do quinteto de Nova York se chama Lisbon muito por conta de um sentimento associado àquela terra, uma ideia que não consegue descrever. “A cidade captura algo que tem a ver com a nossa música”, resumiu (sem resumir coisa alguma).

O engraçado é que eu, que conheço pouquíssimo da capital portuguesa, consegui sentir aquele meu breve passeio por Lisboa quando ouvi o disco. É como se aquelas imagens, que resistem com muita força na minha memória, entendessem perfeitamente os objetivos de uma banda que faz um tipo de música pop simultaneamente contemporâneo e antiquado. Mais importante: uma música que integra naturalmente o hoje e o ontem, sem esforço, sem refletir muito sobre o assunto.   

Experimente transportar essas 11 músicas (sem a produção ruidosa tipicamente novaiorquina, é claro) para os anos 1950: elas soam como standards bastardos do cancioneiro americano. Great oldies. Desde You and me, o disco anterior, o Walkmen encontrou uma sonoridade em sépia, envelhecida e melancólica, que pode deixar uma certa impressão de familiaridade: já ouvimos isso em algum lugar, em outro tempo, em uma jukebox empenada, (talvez) dentro de um sonho.

Se existe um personagem escondido em todas as canções do disco, ele é um homem bêbado e aflito que, numa madrugada congelante, entra em um bar e geme velhos clássicos de Elvis Presley e Roy Orbison. 

Lisbon é uma continuação de You and me (quase um You and me too), e não encaro isso como uma notícia ruim. Sim, fica o deja vu. Mas o entendo como uma confirmação de que, no disco anterior, a banda finalmente encontrou o som que procurava. Guitarras dissonantes sob melodias cristalinas – versos diretos sobre amores perdidos, solidão e desespero. Canções que cravam punhais na garganta de Hamilton Leithauser.

É, em comparação ao anterior, um disco mais conciso, com versos ainda mais límpidos (sensações ainda confusas, no entanto). Um disco ainda mais sóbrio, digamos. E um disco que não nos soterrra, que não embaça nossa visão. Talvez por isso eu não tenha me apegado muito a ele e ainda prefira com muito mais força o anterior.

A banda gravou mais de 30 faixas, mas preferiu optar por um formato mais compacto, direto. O curioso é que o conjunto soa tão homogêneo que precisei de algumas audições para desgrudar uma canção da outra. Imediatamente, as mais diferentes se destacam: principalmente a marcha fúnebre Stranded, um dos poucos momentos em que o disco quase endoidece de vez.

Não é, apesar disso, um álbum monótono: Angela Surf City, Woe is me e Victory têm a fervura que se espera de uma banda que, por algum tempo, representou a crueza nervosa do rock nova-iorquino circa 2000. Mas, honestamente, não me interessam tanto quanto as love songs despedaçadas, oblíquas, sem salvação, antigas-porém-novas, hinos gospel interpretados por um vocalista que parece não acreditar em mais nada: dessas, fico com All my great designs e Torch song.

Se existe um personagem escondido em todas as canções do disco, ele é aquele homem estilhaçado de You and me, só que às oito da manhã, caminhando pela cidade, de volta para casa. “Nessas primeiras horas da manhã, conte uma história para a sua esposa”, eles aconselham, na faixa-título, que termina com guitarras manhosas, como que anestesiadas, desabando aos poucos.

E a vida do nosso pobre herói retorna à aparência de normalidade, a uma Lisboa serena, purificada pelo olhar de um estrangeiro  – um país inventado; uma ilusão, enfim.

Sexto disco do Walkmen. 11 faixas, com produção de John Congleton. Lançamento Fat Possum/Bella Union. 7/10

Have one on me | Joanna Newsom

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Conheço gente que acha Joanna Newsom um desastre. Um erro. Quase um nojo. Eu digo é mais: a mulher é insuportável.

Eu mesmo, que viro um menino desamparado quando ouço a harpa da moça, reconheço que é mesmo difícil olhar nos olhos desse furacão. Nós conhecemos uma multidão de cantoras e compositoras que estão por aí, desnorteadas, perdidinhas, à procura de um estilo, uma voz, um raio de personalidade. A maioria não encontra nada. A arte de Joanna Caroline Newsom, exceção entre exceções, é tão particular que machuca. Dá medo. Provoca alguma raiva (e uma pontinha de inveja, que ninguém é santo).

Joanna Caroline Newsom tem 28 anos, canta como só ela canta (naquela voz agudíssima e às vezes alienígena que põe muito marmanjo nervoso), compõe como só ela compõe, toca harpa como só ela toca e escreve álbuns que, por mais que você tente mapear as comparações fáceis (Joni Mitchell, Kate Bush, Vashti Bunyan), soam radicalmente diferentes de tudo o que você ouve no blog e na rua e na rádio e no elevador e na loja de roupas e na feira hippie.

Não existe outra Joanna Newsom. Entendeu o drama? E, aos que ainda se amedrontam diante desta mulher com franja de menina, recomendo que pode ser uma boa ideia (e note que não estou forçando nada) começar a conhecê-la desse modo meio inocente, quase tolo, nada irônico, nem um pouco sacana, sem a predisposição de encontrar um modelo formatado de musa indie, diva folk, nerd excêntrica, celebridade cult, outsider de butique. Ela não é nada disso (ainda que possa ser categorizada injustamente com todos esses adesivos).

O culto a Joanna Newsom – que existe e pode ser irritante como qualquer culto a qualquer astro pop (e odiamos as fãs mais descabeladas de um Marcelo Camelo, não odiamos?) – tem muito a ver com a forma como ela abre a porta do quarto e nos deixa entrar. Simples. E complicado. A música de Joanna é de um intimismo profundo, que exige total cumplicidade do ouvinte e, por isso, provoca um tipo muito sensível de conexão sentimental. O fã ouve um disco de Joanna como quem lê compulsivamente as páginas de um romance delirante escrito em primeira pessoa. Está enfeitiçado desde o prólogo.

É por isso que todas as estranhezas da moça, que podem soar imperdoáveis (e insuportáveis) para os infiéis e não-iniciados, são imediatamente perdoadas pelos súditos. A esses, recomendo que tomem um certo distanciamento, nem que por alguns minutos. O que eles vão encontrar? Uma caligrafia que não é bem folk, não é exatamente barroca, não é tão etérea quanto parece e que às vezes soa como a trilha sonora para uma versão lisérgica de Branca de Neve e os sete anões. Um conto de fantasia cuja protagonista parece habitar o nosso mundo e, se tivéssemos muita sorte, poderia ser a nossa vizinha.

Esse contraste que entre a atmosfera onírica das canções de Joanna e o tom pessoal do discurso pode não ter ficado muito claro no disco anterior, Ys (2006), um impressionante ciclo de melodias dividido com o auteur e arranjador Van Dyke Parks. Aquele era um álbum obsessivamente ornamentado – um (lindo) quadro na parede, uma obra-prima pensada como obra-prima. Have one on me é um disco mais espontâneo, menos carregado de ambições e, para minha surpresa, ainda mais apaixonante.

Mais uma vez, Joanna mostra um desejo imenso de jogar com aquilo que conhecemos como um formato tradicional de álbum. Ys tinha a quantidade de canções de um EP, mas soava monumental como uma obra conceitual do fim dos anos 1960. Have one on me, por sua vez, é um disco triplo (e, à exceção do Prince e do Magnetic Fields, quem comete uma sandice dessas?) com a duração de um CD duplo e organizado como três mega-EPs. Mais inusitado ainda: um disco triplo que aproveita o espaço amplo para se espreguiçar, abrir lacunas entre os acordes, tecer pequenas variações melódicas, deixar o tempo passar, espairecer.

Se Ys soava como a obra de uma artista que precisava imediatamente definir uma visão de mundo e se impor acima dos formatos mais convencionais do pop, Have one on me acaba por parecer muito mais sereno (no estilo) e complexo (nos temas e emoções despertados por cada canção). Talvez você não acredite, mas é o álbum mais convidativo – e talvez o melhor – que ela gravou.

O que surge no disco é uma compositora mais permeável e generosa, disposta a assimilar uma diversidade de ideias sem medo de desviar do caminho que resolveu seguir. O disco oscila entre delicadas canções curtas como a perfeitinha On a good day e monumentos folk como No provenance. Há temas históricos (Have one on me é aparentemente sobre Lola Montes) e confissões muito íntimas (Easy, um poeminha belíssimo sobre as inseguranças do amor).

Talvez mais importante é como Joanna desta vez compartilha o disco com uma banda, que caminha junto dela e, quando necessário, preenche as brechas da harpa e do piano com violões, bateria, instrumentos de sopro. Tudo até meticuloso – como na deslumbrante You and me, Bess, que permite até a inclusão de um coro. Sabemos que esse processo de abrir-se ao mundo é sempre muito perigoso – mas Joanna cumpre o desafio sem perder nada daquilo que, para os ouvintes que se deixam atropelar pelas canções, sempre soou esquisito e radical.

Lembro que, quando Ys foi lançado, as resenhas mais furiosas comparavam o álbum ao que há de mais exibicionista e esnobe no rock progressivo dos anos 70. Temi que Joanna Newsom acabasse por levar em conta esse tipo de comentário. Mas não. Have one on me, gravado em Tóquio com produção da própria Joanna (e, em seis faixas, mixagem de Jim O’ Rourke), surpreende fãs e detratores. Talvez para o mal. Interessa (a mim, pelo menos) a forma decidida como Joanna segue uma trajetória de completa independência criativa. “Eu não vou voltar, agora que o caminho está mais claro”, ela avisa, em On a good day.

E a sensação de liberdade, de não dever satisfações ou se obrigar a algum tipo de concessão, contamina de tal forma este álbum triplo que, lá pelos 60 minutos de viagem, tudo o que eu consigo ouvir nele é beleza bruta, beleza estranha, beleza sutil, beleza que emociona, beleza nos detalhes mínimos, beleza que não se sabe de onde vem, beleza inclassificável, beleza dura, beleza fácil, beleza difícil, beleza insuportável. Outra beleza.

Daí em diante, lá pelos 80 minutos, Joanna está completamente no controle. É um disco dela é para ela. E o que resta a nós, os pobres súditos, é o prazer de sermos conduzidos para um lugar infinitamente misterioso.

Atualização (3 de março): Depois da décima audição, dá pra bater o martelo: You and me, Bess é a música mais bonita do mundo.

Terceiro disco de Joanna Newsom. 18 faixas, com produção de Joanna Newsom. Lançamento Drag City. 9/10