Brasília

Os discos da minha vida (34)

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Sem cabeça, sem pulso, sem estômago para a saga dos 100 discos que zonearam a minha vida. O mais seguro é terminarmos este post logo, antes que eu me aborreça. O pavio aqui está curto, amigos.

Antes, rapidinho, um sonho que tive ontem. Era assim: por engano, postei no Facebook os cinco primeiros colocados deste ranking. Percebi cinco minutos depois, apaguei o post, mas depois me amaldiçoei por ter arruinado a surpresa. Desliguei o computador, tomei um copo de suco de laranja, liguei de novo, voltei ao Facebook e percebi que a lista estava toda errada, muitos dos discos eu sequer havia ouvido. Aí não entendi mais nada.

Interpreto o sonho da seguinte forma: dou importância excessiva a esta série de posts, que certamente não vai dar em lugar algum e, pior, promete terminar num anticlímax tenebroso. Que deus nos proteja. Outra interpretação possível: estou dormindo pouco, escrevendo demais e comendo pouco cálcio.

Que seja. O importante é que com sonho não se brinca. Eles sempre têm alguma razão.

Os discos deste post destoam um pouco daqueles que apareceram recentemente nesta lista faraônica. Não são álbuns que costumam pintar em listas de melhores de todos os tempos e, coincidentemente, eles resumem dois períodos muito específicos da minha vida: meus 13 anos (já morando em Brasília) e meus 11 anos (ainda no Rio de Janeiro).

Preparem-se para o mais pessoal, o mais estabanado, o menos instrutivo entre todos os posts desta saga que só me traz pesadelos e ansiedade. Até semana que vem.

034 | Last splash | The Breeders | 1993 | download

Lembro que gravei o CD numa fita-cassete, dai eu podia descer do apartamento e ir ouvindo enquanto caminhava até a Cultura Inglesa (que ficava a uma quadra do prédio). Eu tentava chegar ao fim do disco, tentava sempre, mas passei algumas semanas indo e voltando entre as faixas 1 e 4 e, por uns meses, aquele me parecia o conjunto de canções mais perfeito. O maremoto caloroso de New Year, o apito de Cannonball, o sabor melado de Invisible man e, finalmente, os versinhos estilhaçados, sacanas e ao mesmo tempo tão desesperados de No aloha (a minha preferida do disco). Um dia fui assaltado. Demorei um tempinho para perceber (estava em Saints, outra joia), então entreguei meu relógio e perguntei se eles queriam o walkman. Olharam para aquele objeto arranhado, encardido, e disseram não. Me senti o menino mais fraco da cidade, os ossos quase partindo de tanta tristeza, mas capturei os fones a tempo do refrão: “O verão está pronto quando você está.” Top 3: No aloha, Saints, Invisible man.

033 | As quatro estações | Legião Urbana | 1989 | download

Lembro que as tias organizaram um amigo-oculto de fim de ano. Então obrigaram a gurizada a escrever no papel as opções de presente. Um primo meu pediu uma bermuda. Minha irmã, roupas da Barbie. E eu, que não pensava em outra coisa, tratei de anotar: boneco de Batman. Mas acabei ganhando (um tanto decepcionado, admito) a minha segunda opção: o disco As quatro estações, da Legião Urbana, que tocava nas rádios e parecia divertido. Acho que foi ali que minha relação com a música começou a mudar, sem que eu notasse. Alguns versos soavam completamente misteriosos (“lá em casa tem um poço, mas a água é muito limpa”), outros me pareciam non-sense, aí eu sorria toda vez que os ouvia (“quando o sol bater na janela do seu quarto, lembra e vê que o caminho é um só”), três ou quatro faixas fugiam totalmente da minha compreensão (Maurício, Sete cidades) e o sucesso da temporada, Meninos e meninas, me parecia apenas uma música sobre meninos e meninas. Ouvi tantas vezes que o vinil arranhou. Até os meus 12 anos, era o melhor disco do mundo. Depois, virou o melhor disco da minha pré-adolescência. Assim ficou. Ainda há trechos que, hoje, faço questão de não entender. Melhor desse jeito. Top 3: Há tempos, Eu era um lobisomem juvenil, Quando o sol bater na janela do teu quarto.

James Blake | James Blake

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Quando o avião desceu no aeroporto de Brasília, domingo à noite, ainda não chovia. Mas lembro do céu avermelhado — aquele vermelho escuro, sangrento, vazando entre as nuvens, prestes a desmoronar num aguaceiro. Desde que moro na cidade (e cheguei há quase 20 anos), é uma imagem que me deixa agoniado. Por aqui temos céu em exagero — quando ele se enfeza, não há como ignorá-lo.

Mas o curioso é que, apesar da fúria climática, eu estava tranquilo. Nada me assustava naquele momento. Mais estranho que isso: nada, nem a vermelhidão do céu, despertava um átomo sequer da minha atenção. Eu flutuava anestesiado no setor de desembarque. No espelho do banheiro, tudo o que consegui notar foi um menino com um sorriso impossível de ser desfeito, perplexo diante de um aquário gigante. O que acontecia?

Algumas horas antes, quando anunciaram que o aeroporto de São Paulo seria fechado por conta do mau tempo (e as pessoas pareciam preocupadas com as pancadas medonhas de chuva), eu me senti aliviado por ficar mais algum tempo naquela enorme sala de espera, aquele purgatório refrigerado, eu e dezenas de desconhecidos. Não tenho certeza, mas devo ter pedido um suco de laranja.

Eu estava desligado da cidade, do mundo, um pouco desligado da vida. Uma sensação de torpor que, para mim, não é tão comum. Só que não era uma sensação ruim. Naquele fim de semana, algo novo começara. Havia um terreno a ser habitado — e ele se abria diante dos meus olhos. Fui procurar meus fones de ouvido e liguei, não por acaso, no disco do James Blake.

É um álbum que me acompanha desde o fim de dezembro, e que, aposto, vai me seguir durante o ano. Uma espécie de vulto, de nuvem vermelha. Que pode soar ameaçador, mas acho que vai me fazer bem.

Quando escrevi sobre Kaputt, do Destroyer, percebi no disco algo sobre as tentativas que às vezes fazemos para recriar a vida, alterar um destino que nos parece cômodo. A transformação da banda de Dan Bejar se comunicava diretamente com o meu desejo de abandonar para sempre algumas experiências recentes, desastrosas: o fim de um longo namoro e a dificuldade de aceitar um cotidiano que me parecia vazio, incompleto.

O disco do James Blake ressoa de uma forma parecida, ainda que mais profunda. É um álbum com lacunas que ainda não foram preenchidas. De certa forma, soa como um esboço de canções em branco e preto à espera de um retoque, de uma aquarela. “Está germinando”, diz Blake.

E é assim que, nessas canções desencarnadas, eu me enxergo.

Haverá muitos textos sobre este disco, comparações rasteiras serão feitas (Antony and the Johnsons, Thom Yorke), prevejo um bombardeio de hype e bajulação (em 2010, os Eps do britânico entraram no alto de melhores do ano da Pitchfork). Mas espero que não subestimem o que há de singular na arte de Blake: a forma como as canções se desnudam até soar quase como sussurros, monólogos secretos. Elas abrem espaços silenciosos onde nós, os ouvintes, podemos criar as imagens que bem entendemos. Em resumo: podemos colorir essas músicas e, assim, torná-las um pouco nossas.

Blake comenta em entrevistas que o disco de estreia do The XX foi uma grande inspiração. Há semelhanças. São dois álbuns que depuram as canções até um formato muito econômico, quase frágil. Negam os efeitos mais artificiais e as firulas de estúdio para valorizar a força dramática da hesitação, das cenas em que nada parece acontecer.

A diferença é que não consigo notar no disco de Blake as referências oitentistas do The XX: o compositor cria uma conexão estreita entre a soul music dos anos 1970 e o dubstep (e toda a eletrônica mais minimalista, daí a semelhança com o projeto solo de Yorke) dos anos 2000. Blake é um soulman escrevendo a trilha para as madrugadas de 2011.

Como acontece com o début do The XX, ele soa especialmente forte quando cruzamos as ruas largas de Brasília. Talvez por ser uma cidade que ainda não está pronta, que não nos mostra a cada minuto o quanto estamos sozinhos sob um céu onipresente. Blake mal faz desconfia, mas escreveu um disco bem brasiliense, que será compreendido integralmente por quem dirige no Eixão às duas da manhã numa noite chuvosa. Concreto e silêncio.

No meu caso, ele representa um pouco mais do que isso. As canções de Blake até me confortam, já que me sugerem a possibilidade de um recomeço. É assim que interpreto o disco: uma estreia que me emociona por soar verdadeiramente como uma estreia. Blake começa de um arcabouço vazio e vai erguendo lentamente, cuidadosamente, os tijolos de cada faixa. O prédio parece alto, mas o disco termina antes do segundo andar.

Os versos são curtos, confessionais, e se repetem num loop hipnótico. “Tudo o que sei é que estou caindo, caindo, caindo”, ele diz, em The Wilhelm scream, “Meu irmão e minha irmã não falam comigo, mas eu não os culpo”, entrega, em I never learnt to share. Até a adaptação de Limit to your love, de Feist, soa particular: “Há um limite para o seu amor, como um mapa sem oceanos”. Enquanto Blake se expõe — tão franco quanto um Jeff Buckley —, as melodias vão formando estruturas quebradiças de eletrônica e blues. É um disco de inverno, quase sempre melancólico, suicida. Mas tudo sob controle: uma encenação muito bem arquitetada.

Em apenas 38 minutos de duração, Blake isola o conceito do disco num recipiente fechado, quase que em vácuo. A concisão pode provocar algum incômodo (será criticado por soar monótono, anotem aí), mas, numa época em que os grandes discos tentam soar gigantescos, esta parece uma ousadia muito bem-vinda.

Depois de chegar em Brasília, na madrugada de domingo, ouvi ainda mais uma vez. Meus fones tremendo, volume máximo, as nuvens desabando lá fora. Numa época recente, ele despertaria em mim os sentimentos mais chuvosos. Neste incrível início de 2011, que me transformou repentinamente num homem otimista e feliz (uma criança pequena num playground), soa como algo totalmente diferente: um primeiro disco para o resto da minha vida.

Primeiro disco de James Blake. 11 faixas, com produção de James Blake. Lançamento Atlas/A&M. 8.5/10

2 ou 3 parágrafos | Franz Ferdinande!

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Depois de ter escrito um caminhão de abobrinhas sobre os shows do Guns N’ Roses e do a-ha, me sinto na obrigação de contar alguma coisa sobre a passagem diabólica (explico: fazia um calor infernal) do Franz Ferdinand por Brasília. Acontece que – a-há! – não tenho muito a dizer sobre a performance dos rapazes. Isso me deixa um pouco incomodado, já que foi um show muito, muito bom.

Não deixa de ser um negócio estranho: por que, no day after, bateu uma certa apatia. Teria sido um show apenas correto? Não pode: o Franz é uma das bandas mais precisas do mundo. Tudo está no lugar certo — o carisma do vocalista (que dá chutes no ar e sorri quando o fã salta do palco num mosh desengonçado, e diz ‘Franz Ferdinande!’ com sotaque carioca), o entusiasmo do baterista, os incríveis macetes do guitarrista (que manda muito bem nos sintetizadores), as jams hipnóticas (se bem que a batucada de Outsiders, marca registrada deles, já está virando um tique), o namorico com a dance music, o baixo pesadão, os hits poderosíssimos, a atitude invariavelmente cool (antes do show, eles aqueceram o público com quatro faixas do disco novo do Caribou!)…

De onde vem meu incômodo, então? Talvez tenha sido culpa do set list meio torto, que queima todos os hits bem antes do bis. Ou do uso desleixado do telão, jogado às traças. Ou nada disso. Talvez minha birra resulte de uma espécie de choque térmico: depois dos excessos (sentimentais, pirotécnicos, patéticos) do Guns N’ Roses e do a-ha, o Franz me pareceu carne crua, hambúrguer sem ketchup, biscoito sem recheio de marshmallow. Mas do que estou reclamando? É o que dá cair de barriga no século 21, sem asa delta. A filosofia da geração desse quarteto (e do Strokes, e do White Stripes) é podar a penugem e ir ao osso da canção, da atitude, da encenação, da pose (e há pose sim, como não?). O show deles deixou essa imagem: é ossudo. Cálcio à beça. Símbolo de uma época. E, possivelmente, um espetáculo que deveria ter feito de mim um sujeito realizado. Mas não foi bem o que aconteceu — e é bizarro, acreditem, não saber por que.

Superoito e a questão do estacionamento

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O apartamento onde moro fica no final de um corredor longo e estreito. Hoje fiz o cálculo: do elevador à porta são quase 60 passos. Parece uma eternidade, um martírio, mas prefiro encarar a localização com algum otimismo. Meu quarto-e-sala fica grudado à lixeira do prédio (isto é: desovo minha bagunça quando e como bem entendo, de cueca amarela furada às três da madrugada, e tudo isso me dá uma sensação refrescante de liberdade), bem perto da saída de emergência (sou dos que preferem ficar bem perto das saídas de emergência) e, no mais, a caminhada até o elevador dá um belo de um exercício físico.

Gosto dele. Do corredor.

Morar no fundilho do prédio também traz outra vantagem: a janela da sala não dá para uma parede acinzentada, mas para a rua, para o horizonte, para o mais extraordinário e terrível vazio. Quando bato de frente com o cenário (tão plácido!), às vezes esqueço que vivo num cubículo. E isso melhora o meu dia, de alguma forma.

Quando me mudei para o apê, sem lenço e sem documento, pensei que seria só isso: eu e o apê, o apê e eu. Logo fui surpreendido por um elemento estranho: o vizinho.

Descobri num susto. Era sexta-feira, quase oito da manhã. O interfone tocou. E foi também aí quando descobri que eu tinha um interfone e, repare!, ele fazia barulho.

– É o Tiago?

– É. O Tiago.

– Está acordado?

– Um pouco.

– É da portaria. Parece que você bateu no carro do seu vizinho.

– Meu vizinho?

– O da frente. O seu vizinho da frente. Ele tem um carro preto. Parece que você bateu no carro preto do seu vizinho.

– Impossível.

E bati o interfone. Eu estava assustado. Meus sonhos são muito vívidos. Eu estava sonhando. Nada daquilo parecia real. Primeiro, um interfone. Depois, um vizinho. E um carro preto. Uma batida. Eu era o culpado. Eu era o culpado? A situação toda parecia extremamente irreal.

O interfone tocou novamente.

– Tiago, seu vizinho está na garagem. Ele mediu a batida com uma fita métrica e parece que foi você mesmo. Você bateu. Mesmo.

– Não lembro de ter batido em ninguém. Falo a verdade.

– Mas foi você. Eu desci até a garagem, eu vi a batida. Desci duas vezes. Foi você.

Em vez de prolongar a discussão, decidi vestir um trapo e ir à cena do crime. Eu realmente não lembrava de ter batido no carro de ninguém. As vagas da garagem são todas muito apertadas, mas sou cuidadoso.

Foi ali, naquela situação meio esdrúxula, que vi meu vizinho pela primeira vez. Um sujeito baixo, de rosto redondo, devia ter uns 28 anos, cabelo rigorosamente aparado e penteado para a direita. Usava uma camisa branca sem mangas por dentro da calça – e na camisa havia letras coloridas que formavam as palavras “Engenharia Mecânica”. Lembrei que eu nunca me dei bem com pessoas que usam camisa branca sem mangas por dentro da calça. Tomei aquele estranho como um inimigo e fui me irritando com ele pouco a pouco.

– Desculpe o incômodo, mas você bateu no meu carro.

– Eu bati no seu carro? Ontem é que não foi.

– Se não foi ontem, foi anteontem. Mas que bateu, bateu.

– E você vai provar?

– Veja. Aqui, uma fita métrica.

– Eu sei. Uma fita métrica.

– Então observe. A altura da batida no meu carro é exatamente a mesma desse arranhão aqui no seu carro (e, enquanto o sujeitinho explicava, eu só conseguia ler as palavras “Engenharia Mecânica”).

– Pode ter sido coincidência.

– Não pode. Olhe bem. O formato da batida. É redonda e pequena. Agora veja o arranhão no seu carro. É redondo e pequeno.

– Certo. Mas isso prova tudo?

– Isso prova tudo. A fita métrica. Você quer chamar a polícia?

– Não, óbvio que não. Polícia, meu deus. Entenda isso: eu não lembro de ter batido no seu carro. Não lembro. E você não me conhece. Não me conhece. Se você me conhecesse, saberia que não saio batendo nos carros dos meus vizinhos. Não sou desse tipo.

– Sei.

– É verdade.

– E então?

Decidi desistir da briga. Era manhã de sexta-feira, eu precisava vestir uma roupa decente e ir trabalhar.

– Olha… Você tem a prova de que eu bati. Eu não tenho provas de que não bati. Você venceu. Ponto seu. Leve o carro ao mecânico e veja o preço do conserto. Depois me ligue. No interfone. E é uma batida tão pequena que ninguém nem vê.

– É que comprei o carro mês passado e –

– Então faça o orçamento. Tem outra forma?

Ele guardou a fita métrica, provou o gostinho de uma vitória tola, deu um sorrisinho cruel e tudo o mais. Nesse momento, no entanto, notei que ele estava um pouco constrangido com a situação toda. Uma batida de nada, quase invisível, havia rendido uma discussão capaz de arruinar a relação entre dois vizinhos. Ficamos parados ali na garagem por alguns desconfortáveis minutos. Ele resolveu mudar de assunto. Mudar o tom. De thriller sanguinolento para um ameno buddy movie.

– Você mora aqui há muito tempo?

– Não. Poucos meses. Você?

– Dou aula. Engenharia.

– Certo. Certo.

– Que situação, hem?

– Pois é.

– Desculpe por ter ligado tão cedo, é que meu carro, o carro é novo, é meu, o meu carro, sabe como é…

– Sei como é. Tudo bem. Eu é que tenho que pedir desculpas. Bati no carro. Bati sem saber, mas bati. Acontece. Vivendo e aprendendo. E agora tenho que correr pro trabalho está tarde e outro dia a gente resolve tudo vai terminar bem vão consertar é só uma batidinha de nada você vai ver tchau e até mais prazer em conhecer abraço adeus.

Passei uns três meses sem falar com o meu vizinho. Falei com meus amigos sobre o vizinho, a camisa sem manga por dentro da calça, a fita métrica, a batida estupidamente minúscula, e eles acharam graça, que coisa, Tiago, que azar, que coisa, logo você, ninguém merece. Ele nunca comentou sobre o orçamento do conserto. Eu nunca perguntei. Ficamos assim. Outro dia, notei que ele recebia visita. Quando entrei no corredor, vi uma cena inusitada: o vizinho estava ao lado da lixeira, posando para uma foto, com a mãe e o pai e possivelmente a irmã de uns 16 anos. Notei que ele ficou envergonhado com a situação e tomei aquilo como uma espécie de vingança. Entrei no meu apê com um sorriso sádico pregado no meu rostinho diabólico.

O tempo passou. E, durante esse tempo, tentei contato com outros vizinhos. Mas é complicado. Não sei se isso acontece em outras cidades, mas existe em Brasília uma espécie de código social que dificulta as relações de vizinhança. É um estereótipo, sim, mas que sempre cercou a minha experiência brasiliense. Eu vivi o lugar-comum. Na pele. Desde que cheguei à cidade, aos 12, fiz amizade com pouquíssimos vizinhos. Um deles era um fã de heavy metal que me pedia para traduzir os versos do Iron Maiden. Ainda assim, era uma amizade apenas protocolar. Ele tentava me convencer de que a obra do Iron Maiden era uma forma superior de arte (eu fazia de conta que acreditava), eu tentava convencê-lo de que Billy Corgan era o messias (e ele fazia de conta que acreditava), e era isso.

Noto que, nesse ponto, nada mudou. Quando nos cruzamos no corredor, eu e meus vizinhos desviamos olhares, trocamos preguiçosos “ois” e respiramos fundo na torcida para que o elevador chegue rápido e nos livre do encontro incômodo com o desconhecido. Com o desconhecido que mora no apartamento ao lado. No prédio onde moro, não somos muito sociáveis. Não queremos ser incomodados. Somos terrivelmente individualistas e auto-suficientes. E estamos muito bem desse jeito, obrigado.

E poderia ser diferente?

Anteontem, por uma dessas coincidências que não significam coisa alguma, encontrei meu vizinho na garagem. Eu estava chegando de carro, ele também. O encontro seria inevitável. Pensei até em fazer um desvio, sair do prédio, tomar um sorvete e retornar em cinco, dez minutos. Mas decidi encarar a vida como ela é. Estacionei cuidadosamente o carro. Ele fez o mesmo. Acenei e ele, assustado, respondeu com um aceno desajeitado. Estávamos, veja isso!, nos comunicando – e desconfio que, com aqueles acenos típicos de uma vida social saudável, quebramos duas ou três regras definidas pela reunião do condomínio.

Eu tentei encerrar a aproximação ali. Saí do carro discretamente, abri a mala, tirei minha mochila e duas sacolas de supermercado. Notei que meu vizinho estava tirando do carro dele uma mochila e duas sacolas de supermercado. Percebi que a imagem do meu vizinho com uma mochila e duas sacolas de supermercado era um tanto patética, mas logo reparei que eu talvez parecesse igualmente patético. Fiquei um pouco perturbado com a comparação e apressei o passo para o elevador. Ele veio atrás. Apertei o botão do elevador com ansiedade. Mas o elevador não chegou e acabamos nós dois ali, eu e meu vizinho. Eu e o desconhecido. E o silêncio.

Eu devia ter feito um comentário engraçadinho. Mas não havia nada a comentar com o panaca que me acordou às oito da manhã por causa de uma batida idiota.

Para minha surpresa, ele resolveu puxar assunto.

– E então, está gostando de morar aqui?

– Sim, sim. Mais ou menos. Enfim. E você?

– É. Até que sim. É bom. É silencioso. É até muito bom.

– Mas aí vão construir o shopping e daqui a pouco…

– É. Vão construir o shopping e daqui a pouco…

O elevador chegou. Entramos.

– Dizem que o shopping fica pronto em novembro ou dezembro.

– Ouvi falar que é dezembro.

– Já disseram novembro.

– Vai ser um inferno.

E o corredor, longo que só ele. 60 passos.

– Vai ser um inferno.

– É. Vai ser um inferno.

– Vai ser um inferno.

20 passos. Na sacola de supermercado, ele levava alface e consegui notar umas latas amarelas de não-sei-o-que (talvez milho, ou mostarda).

– Só espero que resolvam a questão do estacionamento.

– A questão do estacionamento é importante. Espero que resolvam.

– Espero sim. A questão do estacionamento.

– Que resolvam a questão do estacionamento logo.

– É a mais importante.

Então chegamos. Nos despedimos sem deixar ganchos para próximos episódios. Com alívio. Estava encerrado o encontro. Um confronto difícil. Um épico de Hollywood. Mas nos saímos razoavelmente bem. Com palavras educadas e ocas, provamos para nós mesmos que podemos ser vizinhos até bastante civilizados. Em dois meses, estaremos jogando cartas e abrindo garrafas com os dentes na companhia de outros vizinhos educados e civilizados e tão ocos e tão desajeitados e tão trancados por dentro quanto eu e o desconhecido da porta à frente. Desmentimos a lenda urbana e fizemos de Brasília uma cidade calorosa, simpática e cortês. Viu só? Não é impossível.

No dia seguinte, quando eu estava prestes a sair para o trabalho, o interfone tocou. E tocou de novo. O barulho era mais estridente do que eu imaginava. Deixei tocar. Tocou de novo. Pensei em atender. Pensei duas vezes. O danado gritava. Num salto de dois metros, peguei minha mochila, arrumei meu cabelo, molhei as plantas, abri a janela (tão plácido!), meti a chave na porta. O bicho barulhento ficou gemendo na sala. Eu, que não sou bobo, parti.

Superoito e a cidade vazia

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Você conhece Brasília?

Se não conhece, recomendo o seguinte itinerário: agende a passagem de avião para um domingo à noite. Ao desembarcar, tome um táxi para o final da Asa Norte. Ao motorista, peça especificamente que ele siga pelo Eixão. Por volta das nove, dez da noite, haverá alguns carros na pista. Alguns, não muitos. É uma pista bastante larga, seis faixas. Garanto que, num domingo como outro qualquer, ela nunca parecerá suficientemente movimentada.

Para uma experiência completa do trajeto, preste atenção a estas instruções. Primeiro, repare a extensão da via. Note como ela parece seguir indefinidamente, com postes que brilham feito estrelas mortas. Depois, vire o pescoço para a direita e observe o desenho dos prédios. Uma paisagem estranhamente ordenada, que sugere assepsia e civilidade. Não? Na altura da rodoviária, faça a sugestão ao condutor: ‘tome o Eixinho, por favor’.

Para chegar ao Eixinho Norte, você verá rapidamente a Esplanada dos Ministérios, a Catedral e, bem lá ao fundo, o Congresso Nacional. Faça de conta que isso tudo é uma miragem. Eles nunca existiram. O Teatro Nacional é uma nave de brinquedo daquelas que você ganhava de presente de Natal quando tinha seis anos de idade e era início dos anos 1980 e a ceia parecia um filme previsível e agradável. Esqueça o teatro.

Esqueça as memórias (por um segundo). Estamos no Eixinho Norte. Os prédios cresceram e quase nos engoliram, estão todos maiores (ainda uniformes, só que maiores). Seis andares. Ordem e progresso. Olhe para o alto. As antenas são tão pequeninas e finas e discretas que talvez não sirvam nem para os passarinhos, vá saber. Veja o meio-fio, a passagem de pedestres. E, neste momento, perceba que não há pedestres na calçada. Eles não estão na rua. Eles não estão em lugar algum. Talvez estejam em casa (as luzes dos apartamentos, provas do crime, estão acesas).

Na parada de ônibus há duas ou três almas, mas elas não parecem pertencer àquele ambiente e por isso se sentem desconfortáveis – enfeitiçadas pelos relógios de pulso, quanto tempo falta para? Na altura da 312, peça para o taxista descer a tesourinha (ele sabe muito bem o que isso significa, não se preocupe), siga até a superquadra e indique o bloco B. Pague a corrida e ofereça gorjeta.

Ao lado do bloco B existe um gramado que, há alguns anos, era maior do que é hoje. Antes, a quadra ao lado não estava habitada. Hoje está. Os prédios têm seis andares, os jardins apareceram da noite pro dia (mas são muito bonitos, acredite) e os carros que entram e saem são quase todos do ano. Ainda assim, existe uma parte do terreno não foi alterado – e imagine aí um espaço vazio onde caberiam cinco ou seis campos de futebol – e ele lembra a minha adolescência. Foram tardes e mais tardes na janela, olhando para aquela área oca, serena, um deserto amarelado cravado na cidade planejada.

Sempre me pareceu um erro de cálculo. Aquela área vazia. Como pode? Uma capital tão perfeitamente serena, tão perfeitamente organizada. E aquilo. Aquele rasgo no meio do nada. O terreno baldio. O mato crescendo. As crianças se escondendo no mato. Os meninos e as meninas se escondendo alegremente no mato. Os trombadinhas assaltando as velhinhas no mato e tudo o mais. O terreno é tema de algumas lendas que o taxista não saberá explicar a você, infelizmente (e não há guias turísticos decentes nesta cidade, por incrível que pareça). Dizem que, numa madrugada fria de junho, uma mulher se perdeu no meio do mato e descobriu um fosso fundo e largo que brilhava e dava no fim do mundo (ou em algum lugar muito distante, não lembro direito). Quando eu era mais novo, eu olhava pela janela e via um fim do mundo bastante plácido. Hoje tenho 30 anos de idade.

Não moro mais lá. Minha avó mora. Vez ou outra, volto àquele prédio para dar carona à velhinha. Paro o carro no estacionamento e fico por uns minutos observando aquele matagal todo. Continua o mesmo, apesar de tudo. Nem a capela que construíram há uns seis meses (um prédio baixo no formato de um hexágono) conseguiu acabar com ele. Não sei se vai durar muito tempo, mas aquele vazio todo ainda está lá para me lembrar dos dias mortos da minha adolescência. Eu passava tanto tempo na janela. Pensando no quê?

Domingo passado foi assim. Deixei minha avó no apartamento, segura, na paz de deus, com os anjinhos e todos os santos, e fiquei alguns minutos diante do terreno baldio, paralisado. Não encontrei respostas para absolutamente nada. Os dias têm sido assim: perguntas. Antes disso, de quase desabar no terreno vazio, passei a manhã na casa da minha mãe. Calado. Não sou um sujeito calado. Mas eu estava calado. Ando calado. E um pouco apático, mas acima de tudo (e isto é o mais estranho) calado.

As pessoas perguntam se estou bem. Digo que estou. Não existe outra alternativa. Eu sou o homem da casa e não posso esmorecer. Percebi isso há uns dois, três dias: eu devo assumir o posto de homem da casa. O homem da casa. Eu. O homem da casa. Tiago, o homem da casa. Minha família é pequena e está ruindo. A doença do meu padrasto, a instabilidade da minha irmã, a velhice da minha avó, o todo peso quase insuportável que descarregamos nos ombros da minha mãe. Tudo ali, exposto de uma forma extremamente crua. Na hora do almoço, quando eu estava prestes a voltar para o apartamento pequeno e frio onde moro, minha mãe pediu para que eu ficasse por lá, naquela casa ampla com cachorros e horta. Que passasse a semana. Que me derramasse no quarto, talvez para sempre. E foi um apelo tão sincero, tão simples e sincero, que tive que engolir saliva para não chorar.

Eles precisam de mim. Ou seria mais correto imaginar que eles querem, querem muito que eu participe disso tudo, dessa tragédia muda, do entardecer dessa família, desse ato final dolorosamente longo e triste? “Você vai sair assim, antes dos créditos finais?”, e fico com a impressão de que me fazem essa pergunta sempre quando saio.

Mas saio. Continuo saindo. E por enquanto me pergunto o que acontece, o que vai acontecer comigo e com eles e com todos os que conheço. Não há respostas e não faço ideia se todas elas aparecerão num flash, pipocando e me cegando instantaneamente. Foi o que senti naquela tarde de domingo. O terreno vazio, as pistas silenciosas e uma dificuldade tremenda de entender por onde devo seguir e o que devo fazer a partir de agora. É a hora. Nada parece seguro. Deus não existe. E a cidade não tem alma. É de concreto, com seis andares e um lindo jardim falso.

O problema talvez seja meio tolo: eu não cresci (ainda). Não estou pronto. Preciso de um tempo. Tomar fôlego, não sei. Ainda busco as soluções que eu encontrava quando era adolescente. Ainda quero abandonar tudo e passar a tarde morta olhando por uma janela. Pensando o quê? Ainda acredito que, quando a minha aeronave perder o rumo, saltarei num colchão confortável e sairei da catástrofe ileso, protegido. Deve ser isto: secretamente, ainda tento me convencer de que, apesar de tudo, existe uma zona de conforto e que este período de turbulência terminará em serviço de bordo e num pouso tranquilo.

Por isso não consigo falar no assunto. As pessoas me perguntam: está tudo bem? E eu: está tudo bem. Quando desabafo, desabafo para poucos. Depois, me sinto mal. Como se eu tivesse inventado uma história sobre a minha vida. Uma história em que ainda não acredito. Talvez seja uma questão de tempo.

E é isto. Recomendo que você dê três ou cinco passos dentro do terreno baldio e olhe para cima. Para a janela do terceiro andar. Lá estou eu. Em seguida, caminhe até a entrada da quadra. É um trajeto curto e que não cansa, três minutinhos. Recomendo os taxistas da região, que cobram caro, mas são confiáveis.

Tome o Eixão e siga para o aeroporto, de olhos fechados. A cidade não existe mais. Você não deve olhar nos olhos dela. E, no mais, você já a conhece. Em 20 minutos, no máximo, estaremos no aeroporto. Coma uma empada no setor de desembarque e beba suco de laranja. Compre uma revista amena ou um livro de 150 páginas. Ouça uma música não muito pesada. Tome o voo de volta. E aqui estamos de novo: boa viagem, até mais.

Voltamos a apresentar

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Depois de uma temporada em São Paulo, a cidade das filas e dos engarrafamentos, retornar a Brasília numa manhã de segunda-feira deixa a impressão de que a vida numa maquete pode sim, em alguns momentos, a depender do referencial, ser até bastante tranqüila. Quase agradável. 

Por exemplo: aqui também estamos todos tostando sob um sol apocalíptico, mas somos convidados a refletir sobre o calor enquanto cruzamos o Eixão amplo, vazio, habitável. Podemos tecer teses, filosofar em silêncio, prever cenários, arriscar estatísticas. O calor, o aquecimento global, o inchaço urbano, o colapso de todas as estruturas. 

Em São Paulo, nem há clima para isso. No máximo, corremos para o espaço refrigerado mais próximo enquanto desviamos da multidão, fulos da vida. Nada muito romântico. Na capital levamos o dia-a-dia de uma outra forma, tomamos fôlego – e ainda não entendo por que os grandes intelectuais do Brasil saem da USP e não da UnB.

Passei o dia em meio às caixas de papelão que contêm toda a minha vida minúscula, consumista e, por fim, insignificante. Os CDs, os livros e os DVDs – tudo o que tenho, basicamente. No meu novo quarto, ordenei meus objetos de uma forma desleixada, desapegada, acelerada, talvez na tentativa de fugir da experiência da mudança, tratá-la como bobagem. Não funcionou. Da janela do prédio, tudo o que ouvi foi o ruído de algumas criancinhas que jogavam queimada no playground. Um silêncio. Um silêncio quase infernal.

Brasília às vezes cobra respostas, atiça o desespero. Fica parada com a mão no queixo, silenciosamente à espera de uma crise existencial qualquer. A minha: a idéia de mudar de casa, um movimento que parecia tão simples, provocou uma tarde de tristeza, de saudade. Não estou de manha, já que encarei o processo com dignidade, sem chiliques. Longe da minha família, com quem vivi durante 29 anos, me senti condenado à condição de eterno visitante – e, sublinhem o ridículo da situação, por enquanto estou hospedado no apartamento que conheço há 17 anos. Aposto que, mesmo quando eu me enclausurar numa quitinete, ainda pensarei assim: serei um mero convidado, fora do ninho.

Mas, com o tempo, quem não se acostuma? Com um pouco de barulho nas ruas, provavelmente eu nem estaria preocupado com isso. Só que estou em Brasília – e isso às vezes faz toda a diferença.

Uma outra estação

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Até ontem: galhos sem folhas, grama alaranjada, flores amarelas nos ipês, céu sem nuvens, horizonte colorido, garganta seca, lábios rachados, crises alérgicas, umidificador, nariz sangrando, caminhadas no parque, toalhas molhadas, poeira, madrugadas friorentas, meio-dia de Saara, sede e mais sede.

De hoje em diante: terra molhada, asfalto escorregadio, acidentes de trânsito, céu acinzentado, horizonte descolorido, gripe chata, guarda-chuva no porta-malas, fondue de chocolate, dvds para o fim de semana, pullover, não vai dar pra sair é que caiu um toró sabe como é, manhãs escuras, sono e mais sono.

Brasília, o paraíso dos metódicos.