Blame Canada
The suburbs | Arcade Fire
As tardes na minha quadra eram as tardes mais silenciosas.
Eu chegava da escola e ficava deitado na cama olhando para o teto. Nenhum barulho.
Eu voltava da rua e ficava deitado na cama olhando para o teto. Nada.
Eu adoecia e passava o dia inteiro deitado na cama olhando para o teto. E a quadra lá embaixo.
Teve o dia em que eu me ajoelhei na cama para olhar da janela as crianças brincando de basquete lá embaixo. Eu morava no terceiro andar e raramente descia.
E o silêncio. Teve aquele dia em que o garoto (que eu não conhecia) gritou “o mundo tá acabando!”, e depois contaram aos vizinhos que ele era louco. Não se preocupem que ele é louco, o garoto, o coitado do garoto, o mundo não está acabando, sem grilo, ele é louco.
E o início da minha adolescência foi assim: silêncio, silêncio, silêncio, loucura (dos outros), silêncio (da quadra).
Então não acontecia quase nada. Eu e as minhas centenas de atividades, mas o que ficou foi a lembrança daquela quadra silenciosa. Daí que, em vez de pular da janela, eu ficava escrevendo. E lendo: Salinger, Goethe, Conta comigo, O senhor das moscas e outros livros sobre meninos prontos para pular da janela (no caso de O senhor das moscas, acho que nem havia janela, havia?).
Depois cresci e lamentei – quanto tempo perdido! Vivi intensamente dentro dos meus livros e dos meus discos e dos filmes e da minha cabeça. Como se isso tudo bastasse (não bastava). Wasted hours. Eu era um menino tão melancólico que, quando lembro, quase dói.
Passei este fim de semana ouvindo The suburbs, o terceiro disco do Arcade Fire, e foi como se eu tivesse sido atirado novamente àquele estado de espírito, àquela cama, àquele quarto, àquele apartamento, àquele prédio e àquela quadra silenciosa. Perdão, amigos: este é um texto mais pessoal do que vocês gostariam.
Desconfio que seja um álbum poderosíssimo para meninos e meninas melancólicos. Perigoso, até (como O apanhador no campo de centeio é, sim, um perigo, estive lá!). Eu, que já estou noutra (e hoje sou um adulto quase seguro de mim mesmo, quase saudável, quase pronto para ter um filho e mudar o mundo), o admiro como uma obra sobre um período, sobre uma fase da vida, um disco que consegue se aproximar dos sentimentos de quem cresce trancafiado em quadras silenciosas (no caso mais específico do disco, em subúrbios confortáveis, organizados e medonhos).
Os personagens têm tudo e não têm nada, têm tudo e ainda não sabem o que querem, têm todo o silêncio do mundo à disposição. E não se movem (apesar do desejo intenso, quase louco, por movimento, por ruptura, por uma vida diferente). “Nós costumávamos esperar por um tempo que nunca chegou”, resume Win Butler, nosso narrador-protagonista, amargo e desiludido e olhando para o teto.
No álbum de estreia do Arcade Fire, Funeral, de 2004, a morte acendia e apagava as luzes da vizinhança – era a ameaça que varria o cotidiano, e ela estava lá. Neon bible, de 2007, era uma viagem a um mundo de pesadelos (e de goth rock oitentista, meio maçante e tedioso). Menos surreal, The suburbs soa como uma continuação dos temas de Funeral, mas com uma diferença cruel: em Funeral, a tristeza era provocada pela perda de pessoas queridas. Em The suburbs, o desespero aparece com a dificuldade de seguir com a vida, de escolher um futuro, de pegar as chaves do carro e sair.
“Quando as primeiras bombas caíram, nós já estávamos entediados”, explica Butler, na faixa-título (que praticamente resume o universo do disco). E continua: “Os meninos querem ser durões. Mas nos sonhos estamos ainda gritando.” E continua: “Todos os muros que eles construíram nos anos 70 finalmente caíram. Eles não significaram absolutamente nada.”
E (que pancada!) é só o começo de um álbum que vai à estratosfera sem sair do quarto.
Butler é dos nossos: acompanha os personagens com a autoridade de quem viveu sensações parecidas (e quem não viveu?). Desde a primeira música, estamos com ele. Não há movimentos em falso. Desta vez, o Arcade Fire nos ganha por uma questão de cumplicidade. A banda está do nosso lado (está no nosso mundo) mesmo antes de decidirmos se queremos ou não acompanhá-la. Butler canta para a própria geração, para os meninos e meninas da América (e do Canadá, e da minha quadra silenciosa). Canta para uma multidão que provavelmente retribuirá em estádios lotados e com olhos cheios de lágrima.
É esse tipo de disco.
E o que ainda me impressiona (e já ouvi o álbum mais de uma dezena de vezes) é como esse laço que a banda cria com o público acaba por anular quase todas as fraquezas do disco. E (como não?) há fraquezas. É um álbum excessivamente longo, para começo de conversa. Que deixa a impressão de que três ou quatro faixas poderiam ter virado lados B de singles. É um álbum musicalmente conservador – que, no máximo, arrisca alguma combinação de Bruce Springsteen com Brian Eno e David Bowie fase Low (e quem fez isso recentemente? Quem? Quem? Cold-o-quê?). É uma dessas óperas-rock que não vão longe demais.
(Aliás, é curioso que Butler tenha falado nos “muros dos anos 70”, já que este disco inteiro parece criado com tijolinhos do rock dos anos 70, do punk de Month of may ao prog de Suburban wars ao soft rock de Modern man ao stadium rock de City with no children e ao clima new-wave de Mountains beyond mountains, que é quase uma versão lo-fi de Heart of glass).
Mas, é claro, é um disco que quer conquistar o mundo. E, hoje em dia, quantos discos querem conquistar o mundo? Não que isso seja mérito (e revistas como a Rolling Stone vão tentar convencê-los de que é sim um mérito). Eu mesmo prefiro os discos que não querem conquistar o mundo (ou que desprezam essa ambição muito ultrapassada, tão mid-eighties). The suburbs é Joshua Tree, é Born to run, é Use your illusion, é (sim, engulam) Viva la vida e é todos esses álbuns-monumentos family-size, grandes demais para nossos mundinhos. Estátuas de pedra, entertainment, quase autoparódia.
O fator-estranheza, no caso de The suburbs, é que esse porte épico parece contradizer um discurso introspectivo. Os hinos do Arcade Fire são frágeis e tristes, são hinos para consumo individual, hinos em cápsulas, hinos dos solitários. Mas, antes que eu cometa um erro muito feio (e eu já ia cometendo), devo notar que essa aparente contradição acaba se convertendo em força. Já que as melodias parecem ecoar os sentimentos gigantescos de personagens pequenos. The suburbs é, se prestarmos atenção, o som dos desejos que não se concretizam.
Um disco planejado para soar mundano (a faixa de abertura, por exemplo, é até contida para os padrões da banda; idem para Deep blue e Wasted hours) e espetacular. Talvez um salto maior do que as pernas, mas um salto. Talvez não funcione totalmente, mas eles tentaram.
Mas – como eu disse e repito – nenhuma dessas questões conceituais soa mais decisiva do que a forma como o discurso do Arcade Fire se infiltra em nossas vidas, em nossas lembranças, em nossas aflições. Não existe conclusão em The suburbs porque nossas vidas também são imprecisas. E, se o disco parece se movimentar em círculos (com trechos de melodias e de versos que se repetem), é que estamos sempre retornando às nossas casas, aos nossos antigos problemas, aos nossos sonhos mortos, às nossas frustrações e à nossa adolescência.
É que, de vez em quando, ainda nos pegamos deitados na cama olhando para o teto e decepcionados e melancólicos e sem ter para onde ir e o silêncio lá fora. Mesmo adultos. Não é simples como parece.
Terceiro disco do Arcade Fire. 16 faixas, com produção de Markus Dravs e Arcade Fire. Lançamento Merge Records. 8.5/10
The five ghosts | Stars
Não acredito em fantasmas. Mas meus fones de ouvido querem que eu acredite.
Elas, as almas penadas, assombram algumas das minhas canções favoritas de 2010. Perambulam em Ghost pressure, do Wolf Parade, se camuflam nas metáforas de Anyone’s ghost, do The National. Passeiam em melodias do The Roots, do Blitzen Trapper e de tantos outros. O indie rock, especialmente, virou uma casa do espanto.
Na história do pop, fantasmas sempre apareceram subitamente para representar frustrações, aflições, agonia, amores perdidos e todo tipo de crise nervosa. Mas há bandas, como o Wolf Parade, que se interessam tão profundamente pelo tema que mereceriam inaugurar um gênero específico: rock fantasmagórico, que tal?
Bem-vindos, então, a The five ghosts, do Stars. Um álbum conceitual sobre fantasminhas camaradas e outros nem tanto.
O interessante, no caso, é que não se trata de um típico “ghost record” (anote aí que a moda vai pegar). O que há de mais bizarro no quinto álbum dos canadenses é que um tema sempre tão cavernoso é tratado com leveza e até bom humor. É isso mesmo que você leu: este é um disquinho tão doce e tão macio e tão amigável que deixa nos nostálgicos a vontade louca de clicar a palavra “Cardigans” no YouTube – e ser feliz.
O que não deixa de provocar um certo incômodo. Estamos falando de fantasmas, não estamos?
Ainda mais perturbador: não são personagens de contos de fadas que habitam essas canções. Dead hearts, a primeira música, é uma versão indie para O sexto sentido, sobre “amiguinhos” que têm luzes dentro dos olhos e que estão “lá fora” (medo!). Mas é narrada num jogo vocal inocente, entre menino e menina, acompanhado de guitarras dedilhadas, cordas e um piano delicado. Uma fofura dos infernos.
A terceira se chama I died so I could haunt you (‘Eu morri só pra te assombrar’) e abre com a informação de que “há milhares de fantasmas à luz do sol”. O refrão, com um quê de power pop, é tão contagiante quanto um hit do Jonas Brothers. E aí chega Fixed, com uma melodia grandalhona e reluzente meio The Killers. A seguinte é até engraçadinha: We don’t want your body (‘Nós não queremos seu corpo’), um electropop de morango, vai num clima vampiresco safado que soa como uma homenagem a True blood.
De fato, nenhum outro disco do Stars soa tão coeso. “Foi a primeira vez em que tivemos o luxo de dividir uma sala e escrever, juntos, as canções”, contou a vocalista Amy Millan. O método surta efeito. Mas me pergunto se muitas dessas faixas não mereciam mais tempo para germinar dentro da sala. Mais adubo. Mais água e brisa. Nos momentos mais extrovertidos, o disco soa menos como um conto de horror a ser levado a sério e mais como uma paródia rasteira do estilo Orgulho e preconceito e zumbis (e zumbis canadenses, ha-ha).
Mas, pelo menos, é um disco que mostra a distância que separa os fantasmas de um Edgar Allan Poe das criaturas de uma Charlaine Harris. The five ghosts não é de todo transparente (repito: um disco otimista e até eufórico sobre fantasmas!), mas mostra uma grave tendência à segunda opção.
Quinto disco do Stars. 11 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Soft Revolution/Vagrant Records. 6/10
Dragonslayer | Sunset Rubdown
Quando estivermos velhinhos e finalmente decidirem escrever um livro parrudo e ambicioso sobre a música pop do início do século 21, haverá lugar para Spencer Krug?
Consigo imaginar alguns dos capítulos dessa obra: 1. O “novo rock” nova-iorquino: Strokes, Yeah Yeah Yeahs, Interpol e congêneres; 2. O avanço do mp3 e a retração do CD – estudo de caso: Radiohead e o fim dos tempos; 3. Fragmentação e hibridismo no rock independente: Sufjan Stevens, Arcade Fire e as possibilidades criativas do álbum; etc. O livro seria publicado por uma editora de hippies e distribuído no circuito universitário. No coquetel de lançamento, roqueiros nostálgicos e calvos, com barbas brancas e bastões coloridos à new rave.
Uma bela cena. Acontece que Spencer Krug provavelmente não será lembrado por ninguém. Aposto. As injustiças estão em todo canto, não? Vou fazer minha parte: copiar os arquivos de Dragonslayer num CD-R e escondê-lo num cofre programado para ser aberto em 2050. Taí minha contribuição para o futuro das nossas criancinhas.
Spencer Krug tem 32 anos, é canadense, guitarrista e compositor, toca num punhado de bandas de rock geniais e isso é tudo o que sei sobre ele. Todo fã de rock sonha em roubar duas horas do ídolo com perguntas que nada têm a ver com música. Eu conversaria com Krug sobre cinema. Para mim, tudo o que ele canta e grava sugere planos, travellings e efeitos visuais. Apesar de obviamente cinematográfico, o rock de Krug não me remete a um filme específico ou a um cineasta. Soa como intensa e interminável trilha sonora para uma obra misteriosa, ainda inédita.
Por que um compositor capaz de imaginar cenas tão sugestivas será esquecido completamente? É que a arte de Krug fica no meio do caminho entre o que há de mais urgente no pop contemporâneo (numa frase: é uma voz que poderia ter vindo de qualquer país, de qualquer década, de qualquer geração, simultaneamente Bowie, Francis e Bejar) e o que existe de mais ultrapassado (a ambição de transformar cada álbum num capítulo de uma longa obra em progresso, na tradição do rock progressivo dos anos 70; as canções perdem muito do sentido quando distribuídas separadamente).
Mas é essa dualidade que me aproxima do sujeito. Em 2050, se alguém precisar de um exemplo para os paradoxos desse período de transição do pop, encontrará um bom material de reflexão em álbuns como At Mount Zoomer (do Wolf Parade, onde o prog rock encontra o blog rock) e este Dragonslayer (que soa prog até no nome, mas é gravado com os procedimentos do novo garage rock). Krug personifica uma série de contradições e o som que produz pode ser chamado de esquizofrênico sem que isso pareça um defeito.
No Wolf Parade, a “banda oficial”, Krug negocia muitas das decisões com Dan Boeckner, um compositor mais dócil e afinado a formatos convencionais de indie rock. Para quem procura um close-up do compositor, será inevitável recorrer ao Sunset Rubdown, que funciona como uma espécie de laboratório de ideias. Uma combo underground no sentido datado da palavra: experimental, “difícil”, despreocupada com mercados (vale reforçar que, hoje, o indie rock transformou-se numa opção viável e rentável ao mainstream, vide casos como Sub Pop, Matador Records e Merge).
É no Sunset Rubdown que Krug expurga loucuras sem qualquer tipo de filtro. O primeiro disco, Snake’s got a leg, de 2005, era um projeto solo. A partir de Shut up I am dreaming (de 2006, cujo título resume o tom simultaneamente agressivo e onírico do projeto), passou a alimentar uma banda paralela, que se transformaria num monstro irreconhecível em Random spirit lover (2007), o disco maldito desta década.
Em Randon spirit lover, o interesse de Krug era testar as possibilidades de estúdios de gravação. Era um álbum-colagem, fantasmagórico, superproduzido (para padrões indies) e frágil. Um disco que, radical, dividiu até os fãs do Wolf Parade (eu mesmo ainda não sei por onde começar). Dragonslayer foi concebido como uma reação àquela besta: uma obra “direta, natural e honesta”, com improvisações que poderiam ter sido captadas numa performance ao vivo. “A banda espera que o álbum soe como um amigo que parece normal, mas que, quando você o conhece intimamente, revela-se claramente um louco.” (eles avisam, no texto de divulgação).
Não preciso dizer que é daqueles discos que imploram para serem mastigados lentamente – mais um motivo para que ele se perca do radar de uma crítica cada vez mais apressada (e que prefere ser conquistada de imediato, vide a reação quase unânime ao novo do Yeah Yeah Yeahs). As canções começam de um jeito e terminam de outro. As referências a dragões, deuses, virgens, príncipes, castelos e personagens bíblicos podem parecer barrocas demais para quem nunca abriu um livro de RPG (mas eu nunca abri um desses, vejam só). E, numa tacada só, deve ser um martírio atravessar uma faixa de 10 minutos, duas de seis e três de cinco (a mais curtinha dura 3:48).
Mas, para quem se desafia a aprender as regras de um universo musical (e o mundo de Krug está mais para os delírios de Rufus Wainwright que para os contos de fadas sombrios do Modest Mouse), Dragonslayer sobreviverá como dos jogos mais brilhantes do ano. O rock de Krug é tão cerebral quanto emotivo, e descobrir a existência dessa faceta dupla é a chave para entrar no disco.
As oito canções desenham cenários surrealistas – como nos sonhos, até as cenas mais ridículas provocam enorme impacto sentimental. As primeiras audições do disco nos soterram de forma implacável. A primeira faixa, Silver moons, é um fluxo de consciência sobre lembranças. “Eu acredito em envelhecer graciosamente”, diz Krug, antes de descambar num incompreensível “debaixo das rendas do vestido que você usa há um oceano e uma maré e uma rebelião numa praça.” A seguinte, Idiot heart, desaba feito um surto epiléptico. “Nunca fui um bom dançarino, mas conheço o suficiente para saber que você deve mexer o seu corpo idiota”, ele ordena. Com guitarras pontiagudas, tensas, os acordes nos atingem nos rins.
Não é fácil seguir adiante, mas o disco vai se abrindo maravilhosamente a outros cenários. Paper lace, a faixa mais exótica, lê a psicodelia do The Doors numa estética lo-fi, vazia de ornamentos. “O que existe no coração das meninas bonitas?”, Krug quer saber. Em Nightingale/December song, ele dança sob estrelas cadentes. “Nós somos chamas solitárias”, canta. Os 10 minutos de Dragon’s lair resultam no clímax perfeito para o álbum: um solo repetitivo de guitarra que costura os climas de uma guerra imaginária. “Esta é para os críticos e suas mães decepcionadas”, diz a letra. Não me pergunte por que.
(O álbum todo sugere o que teria acontecido se Viva la vida, do Coldplay, tivesse sido produzido inteiramente num manicômio).
Mais aventureiro que Shut up I am dreaming e não tão impenetrável quanto Random spirit lover, Dragonslayer é meu álbum favorito do Sunset Rubdown (e um pouco aquém de Apologies to the Queen Mary, do Wolf Parade, mas só um pouco). O que eu guardaria num cofre para abrir quando todos estivermos velhos e cansados dos artifícios da música pop. Um disco imponente de rock progressivo que também pode ser interpretado como a soul music do futuro. Spencer Krug sangra do alto de uma torre medieval. “Meu coração é um reino onde o rei é um coração”, ele avisa. O sonho ainda pulsa.
Quarto álbum do Sunset Rubdown. Oito faixas, 48 minutos de duração. Lançamento Jagjaguwar Records. 8.5/10