Aventura

We’re new here | Gil Scott-Heron & Jamie xx

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Meu primo mais crescido – o primo que imitávamos, o primo que venerávamos, o primo que queríamos ser quando um pouco mais velhos – fazia música. Sim. Não que ele soubesse algo sobre a técnica do violão ou da guitarra (era um vexame até no pandeiro, que todo mundo pensa que sabe tocar), mas entrou para a nossa história como o sujeito das melodias fantásticas, o chapa da ginga, o bacana e o máximo.

Ok, sem rodeios: meu primo era funkeiro.

Funk carioca, manja? Início dos anos 90, ‘o que eu quero é ser feliz’, o som ingênuo e tosco que invadia as festinhas e puxava as meninas para dançar passinhos coreografados. Lembra? Lembra? Eu lembro.

E lembro porque meu primo foi um dos tantos aspirantes a Claudinho, a Buchecha, a MC Qualquer Coisa – no bairro onde morávamos, no Rio de Janeiro, era um sonho que toda uma comunidade de petizes parecia compartilhar. Mas meu primo, como acontecia muito, tombou na pista. Abandonou o batidão para cuidar das três filhas, trocou de esposa duas vezes, trabalhou para encher panelas, até fez de conta que nunca pensou em ser médico, mas tudo isso é outra história e cá estamos fugindo novamente do assunto.

Voltemos ao funk, que este é um post sobre o funk.

Para meninos como eu, o funk não era nada. Era uma brincadeira, no máximo uma boa bobagem, uma distração, uma troça. Ao mesmo tempo, era um mundo. Era uma música, sim, mas não qualquer música. Era uma música que parecia ser nossa, dos garotos da periferia, dos subúrbios, dos bairros pequenos. Parecia brotar dentro dos nossos quartos. E às vezes brotava mesmo.

Testemunhei pelo menos três músicas nascendo – e nascendo de parto normal, na varanda do meu primo. Ele sorridente, malandro, sobrepondo batidas singelas e criando versinhos tolos, depois gravando as camadas e exibindo o mix a meninos perplexos, abismados, estupefatos com a novidade: ‘diga a verdade, primo, foi você quem fez? Você? De verdade?”

Era o barulho de uma revelação. Pedíamos para que ele rodasse a música de novo. A mais ordinária. A mais vazia. A mais barata. E rodava de novo. Mais uma vez, e a danada rodando, grudando nos nossos pensamentos, se instalando para sempre.

Lembro daquela sensação febril. De querer engolir uma música. De querer papar a canção com ketchup, maionese e fritas. De querer tomá-la e não devolvê-la. Roubo. Coisa feia e suja. Um susto. Ouvir os funks ridículos do meu primo – que nem funk eram, meu primo nem sabia quem era George Clinton ou James Brown – fez de mim um devoto da arte pueril e anêmica, que nasce quase por acidente, que não tem valor algum, que nos agride inocentemente. Tudo isso, percebi naquela época, pode ser algo belo.

E (pode parecer uma heresia, mas não consigo evitar) lembro dos funks do meu primo – em frangalhos, ocos, mas, na minha infância, mais inspiradores que a sétima de Beethoven – a quando ouço discos como a estreia de James Blake (meu favorito de 2011, por enquanto) e estes remixes de Jamie xx para Gil Scott-Heron.

Não porque são discos paupérrimos, juvenis – nada mais distante da realidade. Mas porque eles provocam em mim o tipo de entusiasmo ingênuo, de criança, que aquelas aberrações domésticas provocavam. São discos que apontam para nossas fuças e dizem: eu sou um pouco como você; e você, se tivesse um pouco mais de talento, poderia ter me criado.

São álbuns que podem despertar uma intensa impressão de proximidade (ainda que falsa). Existe um quê de motivação punk nesses projetos. Do it yourself. No caso de Jamie xx, ainda mais. Temos aqui um disco incomum de remixes, que só encontra pontos de contato nos mashups de Danger Mouse, especialmente The grey album. Com a arrogância feliz de um adolescente, Jamie desmonta e reinventa o linguajar de Scott-Heron.

Um daqueles discos complicados que soam fáceis, sim. Mais do que isso, um daqueles discos atrevidos, que impõem uma identidade à prática do decalque, do “recortar e colar”. Eu admiro.

Desde a estreia do The xx, Jamie exercita um pop lacunar e sutil. É com essa palheta de cores escuras que ele cria uma atmosfera onde os versos, a fala de Scott-Heron se movimentam e respiram. Isso sem a necessidade de preencher todos os espaços, todas as crateras que marcam as canções do sujeito que, há um ano, lançou o assombrado I’m new here.

Aquele é um disco, aliás, que ainda me perturba um pouco. Não consigo escrever sobre ele, talvez por me parecer autoexplicativo. O que temos é a voz de um velho poeta americano, que viveu muito, que talvez nem esteja mais tão lúcido quanto imaginamos (hematomas expostos) – isso, a voz, as ideias, as lembranças, e quase nada mais. Mas, diante desse retrato saturado, por que cobraríamos mais? (eis a questão).  O que o inglezinho Jamie faz é se apropriar desse discurso, desse “personagem”, e inseri-lo num filme. Que poderia se chamar No silêncio da noite.

A exemplo dos álbuns de Blake e do The xx. há uma mise-en-scene noturna, fantasmagórica, ao redor dessas canções. Tal como Blake, Jamie se limita a apontar pequenas variações entre uma faixa e outra, ainda que, aqui, a eletrônica minúscula saia dos limites do dubstep para às vezes soar como a arquitetura de uma colagem do DJ Shadow: camadas de samplers sujos, mofados, colhidos de uma antiga coleção de vinis.

Os três momentos mais diretos do disco, que renderiam singles excelentes, mostram as oscilações de uma obra que, numa primeira audição, soa uniforme (às vezes irritante de tão uniforme; se você cair em tédio, eu entenderei). My cloud, o algodão-doce do parquinho, é trip hop manso, acolchoado. Já NY is killing me mergulha em paranoia, sob chuva de pedras digitais. O disco termina com, I’ll take care of U, uma faixa que leva ao pé da letra um ensinamento de Heron: “Jazz music is dance music”. E não é? Jamie dá uma risada de moleque e entra na pista.

Não dá para dizer que é um disco inventivo, que entusiasma pela originalidade. Que nos leva a recantos desconhecidos. Essas canções, no entanto, têm algo de espontâneo, de lúdico (é apenas música pop, não é nada muito importante, mas essa besteira pode acabar salvando as nossas vidas), que me leva às tardes em que meu primo reunia os meninos na varanda para apresentar a criação da semana. Silêncio total. Três minutos depois, ele deixava de ser gente – e se transformava no nosso herói.

Disco de remixes de Jamie xx, a partir do repertório de I’m new here, de Gil Scott-Heron. Produzido por Jamie xx. Lançamento XL Recordings. 8/10

2 ou 3 parágrafos | Toy Story 3

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Antes que perguntem: não chorei em Toy Story 3 (3.5/5). Nada, gente, lágrima nenhuma. Nem no finalzinho, que praticamente inundou o multiplex. Eu sei: a reação desapaixonada faz de mim um bruto. Mas vejam: nunca me afeiçoei aos meus soldadinhos do Comandos em Ação nem me vi obrigado a, aos 17, abandonar o ninho e transportar minhas tralhas para uma universidade da Ivy League (saí para morar sozinho, é, mas minha família está logo ali). Então este filme me parece apenas uma aventura sobre brinquedos falantes com algumas metáforas afetuosas sobre o valor da amizade (mesmo quando com seres de plástico) e doloridos ritos de passagem.

No filme, um adolescente vive um dilema: não sabe se guarda os bonecos no porão, se doa tudo para uma criancinha, se deposita os amiguinhos numa creche ou se os manda ao triturador de lixo. Enquanto isso, os bonecos entram em parafuso, coitados. Sei que esse conflito pode ser extremamente tocante e sei que ele nos diz tanta coisa sobre a aventura humana, mas preciso analisá-la com um pouco de distanciamento (tudo bem?). O que vejo no filme, acima de tudo, é a fase de acomodação da carpintaria da Pixar, com todos os truques a que tem direito. Eu já havia notado essa característica (que não chega a ser um problema) em Up – Altas aventuras, que começa maravilhosamente bem, mas acaba se acoplando a uma narrativa muito quadradinha e segura (traduzindo: eles não querem, não podem ou não sabem fazer um filme completamente lírico ou deliciosamente louco como os do Hayao Miyazaki).

Toy story 3, por isso, não me parece tão bem bolado quanto Toy story 2, apesar de funcionar (e odeio essa palavra, mas ela é muito precisa nesse contexto) muito bem, como uma máquina bem calibrada. O roteiro é todo esquemático, engraçadinho e quase tão satírico quanto as comédias da Dreamworks, com climas de fitas de presidiários (uma versão censura livre de O profeta, digamos) e cenas de ação até cruéis (se bem que a solução para o clímax tenso me frustrou completamente). Mas, apesar de ter deixado boas lembranças, o filme  me deixou com a impressão de ter visto um brinquedo sob medida, montado com peças de sucessos da Pixar: o coração mole de Up e Procurando Nemo, os hormônios de Os incríveis, a graça meio nonsense de Monstros S.A., etc. Tudo bem. Divertido até. A pipoca do ano. Mas prefiro a Pixar que deixa os diretores pintarem e bordarem: mais Brad Bird, menos Lee Unkrich.

Compass | Jamie Lidell

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De Jamie Lidell eu espero quase todo tipo de surpresas. Se o sujeito criasse um gênero e decidisse chamá-lo de neo-merengue ou de digisalsa, eu não me assustaria. Mas nada me preparou para um álbum caótico (na mais cruel das análises) e espontâneo (na mais generosa delas) como este Compass. É, numa descrição rápida, um fluxo de consciência em formato de música pop. Soa como uma novidade verdadeiramente inusitada – até para os parâmetros de um artista que sempre se portou como um menino irrequieto de três anos de idade.

Até hoje, Lidell era o nerd britânico, meticuloso, que controlava obsessivamente as próprias criações sonoras. Multiply, de 2005 (o primeiro álbum dele pelo selo Warp Records), ganhou logo o emblema “neo-soul”. Não era um disco conciso, mas todo ele se erguia sobre um conceito muito bem definido: o de contrabandear algumas heranças da black music (soul, funk) para o mundo pós-tudo das colagens eletrônicas. Uma operação quase matemática – para alguns, é um disco que soa frio, congelado em câmara de gás e bits.

Pode ser. Mas o admiro. Desde o início, os gostos de Lidell sempre me pareceram muito sinceros. Ele sabe que nunca será tratado como um autêntico soulman, mas não se contenta com o destino. Consigo imaginar os traumas sofridos por um adolescente de Cambridgeshire, branquelo, míope, que insistia em cantar como Otis Redding.

Mas, contra tudo e todos, no disco seguinte Jamie resolveu prestar uma homenagem até certo ponto sóbria, direta, afetuosa, aos ídolos setentistas: James Brown, Marvie Gaye, Otis e tantos outros. Fácil e polido como um antigo álbum da Motown, Jim (2008) assombrou o fã-clube. Era como se ele dissesse: vocês modernos que se virem com a tradição. Um disco agradabilíssimo, incompreendido, falsamente conservador (já que, de ponta a ponta, desafiava as regras da cartilha indie) e talhado para exibir a voz furiosamente negra de Jamie.

Só havia uma semelhança entre Jim e Multiply: eram discos apolíneos, arquitetados cuidadosamente, discos-experimentos, discos-conceito; mais para Prince e Beck, menos para James Brown e Ray Charles.

Em Compass, Jamie altera exatamente esse padrão: tenta criar um álbum menos planejado, mais “irracional”, mais “humano” (como se os outros não o fossem). As 14 canções foram escritas no período de um mês – e é exatamente assim que o disco soa.

A história do álbum começa quando Beck convidou Lidell para participar do projeto Record Club – uma reunião de amigos famosos cujo objetivo prático é regravar um grande álbum. Com Wilco e Feist, ele colaborou para a versão de Oar, de Alexander Spence. Entusiasmado com o clima da gravação, Jamie convidou a turma para gravar Compass. O disco, produzido por Chris Taylor (do Grizzly Bear), tem convidados como Beck, Feist, Gonzáles e Pat Sansone (do Wilco). Foi gravado em Los Angeles, Nova York e no Canadá.

Esse método mutante de criação está no DNA de Compass. Jamie tenta organizar a “grande bagunça que estava armazenada no laptop” (como ele próprio explica, no site oficial) e, sinceramente, nem sempre consegue. O que vale, no entanto, é o tamanho do empreendimento: desta vez, Jamie soa como o Prince dos anos 90, especificamente o de Chaos and disorder (aliás, ele bem que poderia ter roubado o nome daquele disquinho). Testar um ou outro conceito não é o suficiente: o rapaz quer tudo ao mesmo tempo, de preferência com um punhado de chantilly em cima.

Essa ânsia de multiplicar-se faz de Compass um disco exaustivo (de propósito, parece), confuso, enervante, looongo demais. Cada uma das faixas parece pertencer a a galáxia diferente. Completely exposed, a abertura, lembra um pouco a soul music quebradiça de Multiply, mas Your sweet boom, a seguinte, se aproxima das invencionices psicodélicas do Of Montreal. I wanna be your telephone é Prince dos mais alucinados, compactado nos ritmos mecânicos do Beck fase Modern guilt. The ring = blues-rock. E Gypsy blood é exatamente o que o nome indica: algo exótico.

Descrever cada uma das canções seria tão cansativo quanto ouvir o disco do início ao fim. Melhor pular para as combinações mais felizes: orientalismo chic + vocais emotivos + violões dedilhados por um aluno em fase de iniciação no instrumento + eletrônica hipnótica (a faixa-título, Compass), corinho sessentista + bateria endiabrada + funk rock à Red Hot Chili Peppers (You are waking), lamento doloridíssimo à Pearl Jam + arranjo letárgico (Big drift).

E (tirando algumas baladas até simplórias) a coisa fica ainda mais improvável.

O importante é que, a partir de agora, sabemos o seguinte: Jamie Lidell sabe fazer uma bagunça dos demônios. É corajoso. É um guerreiro. É um exemplo de vida. Faz o que dá na telha. E, em vez de criar um disco planejadinho para agradar aos críticos ranhetas que desprezaram Jim, dobrou o quarteirão e seguiu em frente. Bom para ele. Boa sorte! Agora, eu? Demorei um tempinho para perceber que essa bagunça não me satisfaz e, na maior parte do tempo, me deixa com saudades do músico obsessivo e perfeccionista (e às vezes frio, ok?) de Jim e Multiply. Talvez Compass seja o rascunho para uma nova fase – mais sangue, menos cérebro.

Talvez sim. E vou esperar essa primavera chegar. Por enquanto, o Jamie Lidell impulsivo de Compass me deixa mais frustrado do que desnorteado.

Quarto disco de Jamie Lidell. 14 faixas, com produção de Jamie Lidell e de Chris Taylor. Lançamento Warp Records. 6.5/10

Tomorrow, in a year | The Knife

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Quando o The Knife anunciou que escreveria uma ópera inspirada no livro A origem das espécies (1859), de Charles Darwin, muitos se apressaram a enxergar ali uma anomalia pop. Mas vamos lá, gente! Pelo menos para mim, sempre pareceu óbvio que as descrições do naturalista britânico acabariam engolidas por um disco do Flaming Lips. A diversidade biológica! A evolução! A árvore da vida! A viagem do HMS Beagle! Os tentilhões de Galápagos!

No mundo pop, os mais destemidos também sobrevivem. Daí que o duo sueco teve a ideia primeiro e, numa colaboração com Mt. Sims e Planningtorock, escreveu as 15 faixas que compõem o álbum duplo Tomorrow, in a year, cujo repertório foi criado inicialmente para uma performance encenada pelo grupo dinamarquês Hotel Pro Forma. Depois de uma pesquisa exaustiva sobre a vida e a obra de Darwin, o Knife escreveu a primeira ópera da carreira.

No site da banda, Olof Dreijer comenta que não havia assistido a uma única ópera e desconhecia o significado da palavra libretto. Mas, num intensivão por conta própria, aprendeu tudo sobre os “gestos dramáticos” e, depois de um ano, finalmente conseguiu se emocionar com a interpretação de uma soprano. Talvez o grupo Hotel Pro Forma estivesse procurando algo do gênero: uma ópera desajeitada, virgem, naturalmente experimental, mais ou menos o que Lars von Trier buscava quando escalou a Björk para escrever as canções do musical Dançando no escuro.

É claro que, em casos como esses, só a experiência completa só é possível para quem assiste ao resultado da combinação entre música e performance. Em disco, Tomorrow, in a year soa lacunar. Quando ouvimos o som de cachoeiras e passarinhos piando, tudo o que podemos fazer é imaginar alguma cachoeira ou alguns passarinhos piando. Azar dos ouvintes pouco criativos. Sorte de quem comprou ingressos para as apresentações de Estocolmo, encerradas anteontem.

Talvez melancólico com o fim da jornada, o The Knife entrou em estúdio e resolveu registrar essa ópera-minimal (!) em CD. O resultado, previsivelmente, é o disco mais (espere um momento enquanto busco uma palavra gentil) desafiador desde Embryonic. Um projeto experimental com alguns respiros pop.

Para provar que não fujo dos desafios, ouvi o disco da forma como o The Knife recomenda no site da banda: com headphones e máxima concentração. É uma viagem insólita e entediante, adianto, mas que faz justiça ao caráter exploratório do conceito. Fica evidente que o The Knife se embrenhou por territórios desconhecidos (há trechos de passarinhos ou cachoeiras que foram gravados na Amazônia!) e aprendeu algo sobre ópera. Várias das canções são interpretados com pompa e agudos agudíssimos. As letras traduzem o espírito de descoberta e espanto que, sim, está no coração de A origem das espécies.

Ouvi o álbum de uma vez só, como se não houvesse como comprar ingressos para outras sessões, e saí do espetáculo com a impressão de que fui recompensado pelo esforço. A primeira metade do disco, talvez de propósito, soa quase impenetrável: ruídos minimalistas são sobrepostos a som ambiente e colorido new age, distorcidos por sopranos e valorizados por um registro curioso da natureza (há uma faixa que flagra um passarinho aprendendo a cantar, em diferentes estágios).

O segundo CD, mais amistoso, inclui uma canção arejada que poderia entrar no próximo álbum pop do The Knife, Colouring of pigeons, e mais divagações sobre biologia, sementes e as relações entre Darwin e a filha Anne.

Se o objetivo era captar a dimensão quase asfixiante da obra monumental de Darwin, o The Knife chegou perto. Tomorrow, in a year é um gigante construído com pedacinhos delicados. Apresenta, para os mais pacientes, um jeito inusitado de olhar o mundo, como se pela primeira vez. Não é um disco que eu ouviria várias vezes (talvez duas faixas e olhe lá), mas aposto que ele não quer ser ouvido várias vezes. Não é um álbum pop. Depois do primeiro contato, a tendência é que a sensação de familiaridade dilua a aura de mistério que cerca esse sonho de Darwin.

Então, e falo sério, siga meu exemplo: não ouça novamente. Desista. Fique com o primeiro gosto. E, exaurido, contente-se com as boas e más lembranças dessa estranha, impossível expedição.

Ópera escrita pelo The Knife, com Mt. Sims e Planningtorock. 15 faixas. Lançamento Rabid Records. Qualquer nota/10 (mentira, é 6).

Superoito e o fio da tragédia

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Sim, eu estava em Angra dos Reis entre os dias 30 de dezembro de 2009, quando pancadas insistentes de chuva começaram a descamar o balneário, e 3 de janeiro de 2010, o domingo em que conseguimos finalmente tirar os carros da garagem e, num passeio melancólico de não mais que 15 minutos, desviamos dos morrinhos de lama, das pedras pontiagudas cuspidas no asfalto e das vias bloqueadas (eram três, todas estreitas) para abandonar apressadamente uma cidade que…

…uma cidade que, naquela manhã, vinha para cima das pessoas, de todas as pessoas, atacava-nos com o muque de um terrível paradoxo: o céu brilhante de tanto azul (sem nuvens, lindo), o mar quase vermelho (de tanto barro), os turistas nas lanchas, as crianças de bicicleta, gente apreensiva gesticulando nas varandas de casas que se equilibravam perigosamente nas encostas, postes tortos, fios soltos nas calçadas, crateras nas curvas, jet skis e piscinas lá longe, uma menina com um balde vermelho na cabeça, cerveja gelada no boteco, futebol no campinho e o vulto de um trator. É pegar ou largar, a cidade dizia. Permaneça ou fuja, que sou estranha e incompreensível e contraditória e você não me entenderá.

Decidimos fugir. Essa paisagem em scope ficou para trás quando tomamos a rodovia e seguimos ao atalho que dava para a Via Dutra.

Você quer o relato objetivo da aventura? Então tome: eu e cinco pessoas muito queridas estávamos hospedados numa casa a poucos quilômetros do centro. Como quase todas as casas da região, ela foi construída a poucos passos da encosta. Uma bela encosta, por sinal: árvores altas e exóticas, de todo tipo, uma vegetação robusta que sempre associei ao cheiro úmido que antecipa as chuvas. O cheiro lembrava a minha infância. Algumas pessoas ergueram casas elegantes e chamativas sobre o morro – não para copiar os miseráveis que se empilhavam nas favelas próximas, mas talvez para que a paisagem da Praia do Retiro enchesse as janelas todas as manhãs, com os jet skis, as lanchas e todos os outros acessórios da boa vida. Não sei explicar: há pessoas que curtem viver perigosamente, nas encostas, em meio às árvores, ali num poleiro privilegiado, e prefiro parar esse raciocínio por aqui e voltar ao relato objetivo dos fatos.

Chegamos à casa na noite do dia 28, uma segunda-feira. No dia seguinte, tomei banho de mar e fiquei queimado de sol. Tudo muito comum e desinteressante. Minhas costas ainda ardiam quando, na quarta-feira, começamos a sentir uma chuva fina, fria. O céu fechou em camadas infinitas de cinza e os turistas guardaram os jet skis para jogar baralho, tirar sonecas, ler livros e fazer os planos para o réveillon. “Que pena. Essa chuva…”, lamentavam. Mas ninguém parecia preocupado com ela, a chuva, que não caía com a potência de um tsunami. Era uma chuvazinha de nada. Está certo que, de vez em quando, o chuvisco engrossava e virava um chuvão. Mas depois voltava ao normal, àquela aguazinha sem graça, que precisaria comer muito feijão para botar alguém pra correr.

Na manhã do dia 31, estranhei a persistência da chuva. Ela simplesmente continuava. Continuava. Fraca, tímida, mas firme na labuta. Sugeri (juro que sugeri!) que fizéssemos um filme de horror sobre a chuva que nunca para. Um filme chamado A chuva que nunca para. Ninguém achou muita graça. Mas estávamos certos de que o sol voltaria a brilhar e de que (quem sabe?) a noite de ano-novo seria luminosa. Por volta das 19h, acabou a energia elétrica. Às 21h, recebíamos os primeiros telefonemas: “Parece que o caso aí de emergência, tome cuidado” (era minha mãe). “As estradas estão fechadas, parece que caiu uma encosta na rodovia” (era outra pessoa, não lembro quem). “Parece que parece que parece que parece que a coisa está feia, mas parece que parece que talvez pareça que” (tudo parecia, nada era).

Jantamos à moda medieval, iluminados por um santo lampião e nos embalos de uma trilha sonora orquestrada por grilos e ondas do mar. Os encantos selvagens da natureza, sem óculos 3D. Os vizinhos trouxeram um som portátil que espantou um pouco o clima de frustração. À meia-noite, vimos a queima de fogos mais sombria da história: explosões coloridas engolidas pela neblina, pipocos amarelados numa ilha perdida, cores meio mudas, já que a chuva (cada vez mais feroz) minimizava o impacto dos sons. As pessoas, coitadas, deixaram de lado até um ritual dos mais sagrados: pular três ondinhas do mar. Esquecemos de brindar. Trocamos champanhe por água-com-açúcar. No início da madrugada, fomos todos dormir, fulos da vida com a vida.

Antes de deitar, ouvi um barulho que em nada soava assustador. Era um baque abafado. Depois do baque, um sopro gordo de vento atravessou a janela (como se produzido por um dragão de desenho animado).

Logo descobrimos que uma árvore havia desabado no quintal da casa onde estávamos hospedados. Os galhos grossos (de quase 10 metros de largura) desceram a encosta, deitaram sobre a fiação elétrica, entortaram dois postes e foram parar exatamente à frente do nosso portão, bloqueando a passagem. Para nosso azar, não havia como sair de casa (e, com o estrago na fiação, ficaríamos sem luz por mais um tempo). Para nossa sorte, as duas outras árvores que quase cederam continuavam se equilibrando no barro de uma encosta que havia (também para nossa sorte) descolado só um pouquinho.

Todos estávamos tensos quando fomos dormir. “Com essa chuva, e as outras árvores? E a encosta? E se?” Ainda assim, deitamos. Não havia o que fazer. Tínhamos medo, mas não contávamos com possibilidades terríveis. Pouco antes de tudo isso, na manhã daquele 31, saímos de carro para o centro da cidade e, numa ladeira íngreme, quase fomos levados por uma carreta velha que, pouco antes de se chocar contra o nosso carro, fez um desvio acelerado e colidiu numa parede. Seria muita tragédia para um dia só, eu pensei. E já havíamos passado muito tempo dançando no fio da tragédia. Deveria haver uma lógica nisso tudo, na nossa vida, e essa lógica possivelmente permitiria um pouco de sorte a quem havia vivido duas quase-catástrofes em menos de 24 horas. Isso sim faria algum sentido!

Passamos o primeiro dia do ano olhando para um portão trancado, preso dentro da barriga de uma árvore morta. Não parecia muito engraçado.

Mas, de uma perspectiva menos pessimista, era sim muito engraçado. Era! Sem energia elétrica (e impedidos de sair até para comprar o jornal), não sabíamos nada sobre a dimensão de uma tragédia que era narrada a conta-gotas, com tons de exagero e nonsense. “Parece que morreram 200 pessoas numa pousada”, comentou um sujeito que havia seguido de lancha até a cidade. “Parece que fecharam a rodovia, e pra não abrir tão cedo, talvez semana que vem”, arriscou o outro. “Dizem que os homens da Defesa Civil estão chegando pra tirar a árvore e abrir o portão, mas só semana que vem”, prometiam. Enquanto ninguém aparecia para resolver o problema, tomávamos banho de piscina e tostávamos ao sol, mais ou menos felizes, mas nunca completamente felizes, com o momento de descanso (era nossa folga e éramos filhos de deus). Vi até uma cena que era puro surrealismo: uma mulher de biquíni verde, tristíssima, concentradíssima, de pé sobre uma prancha de surfe, flutuando lentamente sobre o mar plácido e marrom. Era um sonho. Era um pesadelo. Era algo inexplicável.

Abreviando o caso: a luz não voltou, os homens da Defesa Civil não chegaram, o jornal não veio e ficamos completamente alienados por 24 horas. As informações faziam eco por telefone, e truncadas. “Não vi o noticiário, meu filho.” “Mas por que, mãe?”, eu perguntava. “É que me assusto.” “Mas mãe…” E o cabo-sem-fio continuava a dissolver notícias que pareciam falsas de tão mirabolantes. 500 mortos numa pousada? Que pousada grande.

Na manhã de sábado, alguém decidiu fazer um passeio de bicicleta no fundo do apocalipse. Das cinzas do armagedom, a boa alma trouxe o jornal.

E que notícias! Era tudo tão horrível que parecia não ter acontecido. Aquela chuva boba havia criado avalanches de terra que, na noite em que a árvore caiu no quintal, aniquilou cerca de 50 pessoas. Todos corríamos risco: os da favela e os da beira-mar, os que estavam em pousadas e os que moravam perto de pousadas. A Defesa Civil pedia para que os turistas deixassem a cidade, mas não parecia ter nenhum conselho para os turistas que queriam deixar a cidade, mas estavam impedidos de sair de casa. Que Buñuel morresse de raiva: ainda havia macarrão e molho de tomate – de fome e sede nós não morreríamos.

Diante das páginas do jornal, me assustei com a ideia de que, sem o registro oficial, eu provavelmente não teria sentido a tragédia de que – em alguma medida – eu fazia parte. Depois de ter assistido às notícias da tevê, minha mãe parecia outra pessoa: estava transtornada, chorando e soluçando e gemendo ao telefone.

– Tiago, vocês foram se meter no meio de uma notícia! – minha mãe estava assombrada com aquilo tudo.

– Mas mãe, eu não sinto como se estivesse no meio de uma notícia.

– É que você não tem a noção.

– Não tenho, mãe.

– As pessoas morreram.

– Elas morreram.

– E você quase morreu.

– Não sei se foi isso o que aconteceu. Nunca se sabe.

– Um moço de 30 anos desapareceu.

– Eu estou bem aqui.

À tarde, quando os homens da Defesa Civil chegaram (com tratores e serras a diesel), começamos a notar o que (não) havíamos vivido.

– Resgatamos cinco corpos. Muitos mortos. Vocês foram sortudos. Estão dentro de casa. Tem de tudo aí pra baixo. Árvore esmagando os carros. Árvore quebrando telhados. Pedras desse tamanhão assim. Hoje cedo, fizemos dois partos numa lancha – narrou o chefe da equipe, que usava óculos Ray Ban modelo 1978 e, com um topete generosamente branco, parecia o personagem de uma série de tevê prestes a ser criada.

Não entendi onde os partos aquáticos se encaixavam na trama, mas a narrativa contada por aquele homem, vestido num macacão alaranjado e pronto para a guerra atômica, começaram a nos tragar para a cidade. O coração da selva. Quando a Defesa Civil foi-se embora e abrimos o portão, vimos a cidade. E foi só aí que sentimos a cidade. O cheiro da cidade. Um ar de ressaca. Uma impressão de medo. Depois, a sensação de que a tragédia havia passado de raspão. E que estávamos vivos graças a uma conjunção muito delicada de fatores. E se os troncos que caíram a alguns centímetros da janela do meu quarto tivessem se aproximado um pouco mais, um pouquinho mais, alguns centímetros? E se a encosta tivesse lambido o asfalto com a força com que desabou sobre as cinco casas de lha Grande? O que faríamos? Para onde correríamos? De que janela saltaríamos? Estaríamos acordados? Daria tempo? Seríamos fortes? Quem sofreria mais? Quais traumas seriam os mais intensos? Que história contaríamos? Que relevância teria a nossa história? Em quanto tempo ela seria esquecida? Como sairíamos no jornal?

E se?

Na verdade, estávamos à margem de qualquer matéria de jornal. Talvez por isso, um pouco aliviados. Se algum jornalista nos abordasse para saber sobre a nossa experiência, diríamos simplesmente: “Mas não aconteceu nada! Estamos muito bem! Foi um feriado um pouco tenso, mas saímos dele sem arranhões. Veja: estamos respirando!” Tudo muito limpo e civilizado. Quase nada aconteceu. Não havia motivo para virarmos celebridades-relâmpago.

De volta a Brasília, narrei o caso a algumas pessoas curiosas. Dez, quinze pessoas. A mesma ladainha. A casa, a árvore, a falta de luz, a encosta, a cidade esvaziada, as rodovias fechadas, o medo de morrer. Meus amigos ficaram verdadeiramente espantados com a situação, mas tenho poucos amigos. Alguns deles fizeram piadas, o que me deixou menos preocupado com a minha própria vida: rir do quase-desastre mostrava para mim que ele, o quase-desastre, estava cada vez mais longe do meu alcance, como que perdido numa realidade inventada por softwares de efeitos visuais. E, distante dele, eu poderia cumprir as atividades do cotidiano de uma forma mais leve e despreocupada, e não prestes a correr para a sala do cafezinho com medo de que uma encosta desabasse sobre o meu computador. Eu não estava perturbado por nada daquilo. Repeti três vezes, no banheiro: eu não estou perturbado, eu não estou perturbado, eu não estou perturbado.

Quando voltávamos para São Paulo, pela estrada, um dia antes, alguém comentou que eu não tinha demonstrado nervosismo algum quando vi a árvore caída no nosso quintal.

– Você ficou tão tranquilo, Tiago. Eu mal consegui dormir. Talvez você só se desespere com as pequenas tragédias.

– Deve ser isso – eu respondi (mas menti, já que não entendia ainda nada do que havia acontecido).

A viagem de volta, de carro, durou seis horas. A pista estava menos movimentada do que esperávamos. Parecia inacreditável. Tudo conspirava para a nossa felicidade, enfim. Um desfecho razoavelmente feliz. Não perdi o avião. Quando desembarquei no aeroporto de Brasília, minha mãe chorou, me abraçou e pediu para que eu dormisse em casa. “Não quero perder meu único filho”, ela chantageou, entregue ao papel de mãe total, com aquele jeito dramático que é todo meu. Decidi ficar com eles. Minha mãe, meu padrasto, minha irmã e os cachorros.

Chegamos a tempo do noticiário da meia-noite. “Venha ver o que aconteceu com vocês”, minha mãe exigia. Preferi ler o capítulo de um livro e dormir. Chega de histórias reais, pensei. Mas tombei no segundo parágrafo. Eu estava exausto.

Sonhei com encostas azuis e vermelhas sob um céu verde. Desabando.