Ari Folman

Adeus, 2009 | Os melhores filmes do ano (parte 1)

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Primeiro, às regras: entram nesta lista apenas os filmes que foram exibidos no circuito de cinemas brasileiro em 2009. Não contam, por isso, os que vi em festivais ou em DVD.

Isso significa, por exemplo, que Guerra ao terror (que chega às telas em fevereiro) talvez fique para o top do ano que vem. E que, para nosso azar, não haverá lugar para 35 doses de rum, Vício frenético, A família Wolberg, O que resta do tempo, Ricky e outros filmes mui bacanas que certamente estariam neste ranking.

Em resumo: o nosso circuitinho anda morno, o circuitão vai pior ainda, mas este foi (surpreendentemente) um bom ano. Os filmes que ocupam as oito primeiras posições são especiais, recomendadíssimos – e há outros, ainda que não tão extraordinários, se comunicam comigo de formas profundamente misteriosas (pule para a 12ª posição). Esta é a minha lista, e eu gostaria muito de conhecer a sua.

Infelizmente, não vi Moscou, do Eduardo Coutinho. Não sei, por isso mesmo, se gosto ou desgosto dele. 

Vou tentar ser breve nos comentários: sei que vocês estão de férias na praia, que a conexão é discada e que, neste mundo, ninguém tem mais tempo para nada. Comecemos (e sem menções honrosas, que aí já é abuso).

20. Milk – A voz da igualdade – Gus Van Sant

O filme político de Gus Van Sant é de uma precisão que emociona. Sem distrações, o cineasta desenha o perfil de um homem que virou mito que virou símbolo. Imagens dignas. E Sean Penn faz o resto do trabalho. 

19. Entre os muros da escola – Laurent Cantet

A escola de Cantet é uma metáfora para as tensões sociais da França, ok: mas bom mesmo é como este filme permite que entremos de corpo inteiro num ambiente tão familiar e, ao mesmo tempo, desconhecido. Imersão absoluta – sem a necessidade de óculos 3D.   

18. O equilibrista – James Marsh

Não são muitos os documentários que abrem lacunas misteriosas para que preenchamos com a nossa imaginação. O que motiva o equilibrista Philippe Petit a se arriscar em espetáculos de altíssimo risco. James Marsh, felizmente, não tenta explicar.   

17. O fantástico sr. Fox – Wes Anderson

Um giro colorido e acelerado no parque temático de Wes Anderson, com todos os tiques, neuras e maravilhas a que estamos acostumados. Um avanço importante, no entanto: inesperadamente, o cineasta reencontrou a fluência narrativa e o gosto pelo riso solto. Brinquedinho bom, portanto. 

16. Up – Altas aventuras – Pete Docter

No formato de um curta-metragem de 15 minutos, seria a obra-prima melancólica da Pixar. Do jeito que está, mais para Madagascar do que para Meu vizinho Totoro, mostra que existe um preço que se paga quando o objetivo é agradar à toda família. Para os padrões dos blockbusters de férias, porém, é sofisticação em alto grau.

15. Valsa com Bashir – Ari Folman

Com traços psicodélicos e cores quentes, Folman reconstroi as memórias de uma guerra. De quebra, tira o cinema de animação do quarto das crianças.

14. Se nada mais der certo – José Eduardo Belmonte

Um olhar desconfortável para o Brasil, um país em perigo. Belmonte mira a classe média, essa gente estranha que compra ingressos para ver filmes, mas não se contenta com o diagnóstico da nossa tragédia: nos laços de companheirismo, há esperança. 

13. Avatar – James Cameron

O Star wars de James Cameron também é um filme “para crianças de 10 a 12 anos” (como diria George Lucas), com assumida carga moralizante, personagens-arquétipos e conflitos que cabem em pilulas que alimentam astronautas. Só não é ingênuo. Com a tecnologia 3D, o cineasta nos atira num mundo maravilhosamente estranho. Um planeta de ilusões palpáveis – sonhos reais.  

12. Presságio – Alex Proyas

A ficção científica mais subestimada do ano é também a mais assustadora. Esqueça 2012: Alex Proyas nos conduz numa viagem a um fim de mundo que soa cruel de verdade. O desfecho, que frustrou uma multidão, é a peça de resistência: uma ideia talvez tola, mas levada apaixonadamente às últimas consequências.  

11. Horas de verão – Olivier Assayas

Depois de rodar o mundo no encalço de personagens sem destino certo, Assayas os reúne numa casa de campo. A nossa trajetória deixa algum rastro? Uma crônica em tom menor, atenta a detalhes e à composição de ambientes, que, apesar de aparentemente singela, logo se faz grande: um dos melhores filmes do diretor.

Valsa com Bashir

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bashir

Waltz with Bashir, 2008. De Ari Folman. 90min. 8/10

Talvez prejudicado por uma bizarra estratégia de marketing, Valsa com Bashir foi vendido ao mundo como 1. uma fita de animação revolucionária e 2. um tratado sobre as relações políticas conflituosas no Oriente Médio.

Temo desapontá-los, mas o longa de Ari Folman não é uma coisa nem outra. É apenas um belíssimo ensaio poético sobre memória e traumas de guerra. Um filme poderosíssimo, que me fez lembrar mais das digressões de Waking life, de Richard Linklater, que do tom épico de Apocalypse now (ainda que exista sim um punhado de referências diretas ao clássico de Mr. Coppola). Diante da classe de 2008, seria um candidato bastante digno à Palma de Ouro. 

Tudo o que ouvimos na cobertura de Cannes faz certo sentido: o cineasta realmente bagunçou os parâmetros de alguns gêneros ao projetar uma animação com a estrutura de um documentário, a lisergia de um clipe de rock psicodélico e a polpa amarga de um drama de guerra. Mas vejo exibicionismo nessa fusão pop frenética (como eu temia). É nada mais que a forma adequada que o diretor encontrou para narrar uma autobiografia íntima, que vai dos golpes de realidade aos delírios mais abstratos.

A técnica de animação, além de exuberante (só pelo deleite visual, eu veria várias vezes),  compõe um ambiente que existe apenas na imaginação de Folman. Na trama, o diretor/personagem investiga uma questão de memória: as cenas da Guerra do Líbano, em 1982, sumiram de seu cérebro. Tudo o que lhe resta é um pesadelo incompleto, que mostra três soldados caminhando por uma cidade abandonada, sob um céu que cospe bolas de fogo. A partir de entrevistas com amigos e especialistas (alguns reais, outros inventados), ele tenta reconstruir as próprias lembranças. De onde veio o trauma? O que ele significa?

Em determinado trecho, um amigo do cineasta avisa: a memória é algo dinâmico, vivo. Não se controla. O filme se deixa empurrar por esse bicho, esse fluxo e, em vez de procurar respostas ou tomar partido, prefere reconstituir sentimentos: o medo e o horror, a carência e o abandono, as ruas vazias no dia que seguiu o massacre, o soldado que, longe pela tropa, sente saudades da mãe. A metralhadora transformada em guitarra, a valsa em meio ao tiroteio. São cacos de emoções, espasmos – simultaneamente, reportagem, testemunho e desabafo.

O filme se equilibra num solo tão movediço que o diretor sente a necessidade de encerrá-lo com imagens de arquivo. O painel surrealista se curva ao registro jornalístico. Há certo impacto nessa conclusão (será que Folman se inspirou em Noite e neblina, do Resnais?), mas parece ralo perto do efeito que ele consegue ao sobrepor as cores saturadas e quente da animação a um discurso comovido, que precisa expurgar traumas antes que exploda.

O anti-Che, enfim.