Ari Folman
Valsa com Bashir
Waltz with Bashir, 2008. De Ari Folman. 90min. 8/10
Talvez prejudicado por uma bizarra estratégia de marketing, Valsa com Bashir foi vendido ao mundo como 1. uma fita de animação revolucionária e 2. um tratado sobre as relações políticas conflituosas no Oriente Médio.
Temo desapontá-los, mas o longa de Ari Folman não é uma coisa nem outra. É apenas um belíssimo ensaio poético sobre memória e traumas de guerra. Um filme poderosíssimo, que me fez lembrar mais das digressões de Waking life, de Richard Linklater, que do tom épico de Apocalypse now (ainda que exista sim um punhado de referências diretas ao clássico de Mr. Coppola). Diante da classe de 2008, seria um candidato bastante digno à Palma de Ouro.
Tudo o que ouvimos na cobertura de Cannes faz certo sentido: o cineasta realmente bagunçou os parâmetros de alguns gêneros ao projetar uma animação com a estrutura de um documentário, a lisergia de um clipe de rock psicodélico e a polpa amarga de um drama de guerra. Mas vejo exibicionismo nessa fusão pop frenética (como eu temia). É nada mais que a forma adequada que o diretor encontrou para narrar uma autobiografia íntima, que vai dos golpes de realidade aos delírios mais abstratos.
A técnica de animação, além de exuberante (só pelo deleite visual, eu veria várias vezes), compõe um ambiente que existe apenas na imaginação de Folman. Na trama, o diretor/personagem investiga uma questão de memória: as cenas da Guerra do Líbano, em 1982, sumiram de seu cérebro. Tudo o que lhe resta é um pesadelo incompleto, que mostra três soldados caminhando por uma cidade abandonada, sob um céu que cospe bolas de fogo. A partir de entrevistas com amigos e especialistas (alguns reais, outros inventados), ele tenta reconstruir as próprias lembranças. De onde veio o trauma? O que ele significa?
Em determinado trecho, um amigo do cineasta avisa: a memória é algo dinâmico, vivo. Não se controla. O filme se deixa empurrar por esse bicho, esse fluxo e, em vez de procurar respostas ou tomar partido, prefere reconstituir sentimentos: o medo e o horror, a carência e o abandono, as ruas vazias no dia que seguiu o massacre, o soldado que, longe pela tropa, sente saudades da mãe. A metralhadora transformada em guitarra, a valsa em meio ao tiroteio. São cacos de emoções, espasmos – simultaneamente, reportagem, testemunho e desabafo.
O filme se equilibra num solo tão movediço que o diretor sente a necessidade de encerrá-lo com imagens de arquivo. O painel surrealista se curva ao registro jornalístico. Há certo impacto nessa conclusão (será que Folman se inspirou em Noite e neblina, do Resnais?), mas parece ralo perto do efeito que ele consegue ao sobrepor as cores saturadas e quente da animação a um discurso comovido, que precisa expurgar traumas antes que exploda.
O anti-Che, enfim.