Arcade Fire
Go tell fire to the mountain | WU LYF
No meu caso, antes acontecia assim: quando eu resolvia escrever, as palavras iam aparecendo em grupos de vinte, trinta, quarenta, e chegavam com tanta ansiedade que eu achava mais sensato não acalmá-las nem ordená-las: elas iam caindo no teclado de qualquer jeito, de barriga, de costas, de cabeça pra baixo. Era o caos.
A maioria, é verdade, mergulhava para a morte e era sepultada em parágrafos grotescos, sujando o monitor com gosma e boas intenções. Quando eu era um pouco mais novo, escrever era ejetar todas as frases que superlotavam a minha cabeça e tensionavam meus dedos. Eu as abandonava mais ou menos como um caminhão que estaciona no terreno baldio para descarregar o lixo.
Hoje as palavras aparecem em grupos menores, acredito que de dez a quinze por vez. E não chegam com a mesma intensidade, nem com a mesma fúria. Há os dias em que não noto gana alguma no desembarque, e me pergunto: se elas não me afligem da forma que elas me afligiam quando eu tinha 16 ou 17 anos, por que ainda me preocupo tanto com elas?
Há algum tempo, eu estava certo de que seria um escritor. Agora não sei mais.
Talvez seja sinal de maturidade (e isso existe?). Escrever menos, sem ir com tanta sede ao pote, pode ser indício de rigor e elegância. Em tese, adultos são mais rigorosos que adolescentes. Também são mais elegantes. Sabem o que querem ser, até porque já cresceram. No mais, o senso comum alerta que escrever é cortar palavras, ser conciso, exato, poupar tempo. Finitude é o termo.
Sim, sim. Só que dá um baita de um incômodo quando ligo o computador e fico admirando a tela em branco, o cursor vertical piscando. Às vezes até quero escrever. Mas vivo me perguntando: escrever para quê? Para quem? Por quê? E não encontro soluções para nada disso. Porque às vezes parece que ninguém está lendo, que ninguém merece ler tanta bobagem. E às vezes sinto que estou apenas sequestrando e matando palavras, por esporte.
Escrevo porque posso, e não porque devo.
Ainda acredito, contudo, que existe sim uma arte perversa (mas admirável) na carnificina de sílabas, nesse uso exagerado e infantil de frases, no exagero de significantes, no ato desmiolado de escrever por escrever, de escarrar as palavrinhas, de esparramá-las em parágrafos longos e feios, toscos de tão imaturos. Francamente, detesto os blogs que eu escrevia aos 16, 17 anos. Mas percebo algo romântico neles. Eram textos suicidas, que cheiravam mal e iam apodrecendo em público.
Não eram nada apresentáveis. Nada saudáveis.
Há alguns dias tento entender o que tanto me atrai ao disco de estreia da banda inglesa WU LYF (sigla para World Unite! Lucifer Youth Foundation), e acredito que tenha algo a ver com os textos que eu escrevia aos 16, 17 anos. Tai um álbum que tenta agarrar as palavras com um pulso adolescente. Elas praticamente derretem nos nossos headphones, esquartejadas após a outra. É uma matança cruel.
Adianto aos mais sensíveis: é quase impossível entender a interpretação do vocalista Ellery Roberts. Nem faça esforço. Ele não canta; ele grunhe. E não estamos falando da aspereza vocal de um ogro do thrash metal. Fico com a impressão de que Ellery está forjando um idioma próprio. É como se vestisse a persona de um homem pré-histórico que, depois de muita relutância, decidiu finalmente sair da caverna. Ele olha para o mundo de uma forma bestial. O que vê, em compensação, não é exatamente civilizado.
Mas a performance de Ellery, apesar de repulsiva, não tem a intenção de nos afastar dos versos da banda. Pelo contrário. No site oficial, o WU LYF publica as letras das canções para orientar os ouvintes. E é aí que as coisas começam a ficar, no meu ponto de vista, mais fascinantes. São canções que soam como o fluxo de consciência de um menino atormentado por um enxame de palavras. Chegou a hora de soltá-las no ar.
E Go tell fire to the mountain é, antes de qualquer coisa, um disco de palavras. Palavras de ordem, de guerra, de desabafo, palavras que vêm e voltam em ciclos, palavras cuspidas do esôfago, palavras de desencanto e fervor. Se Ellery fosse um vocalista menos excêntrico, mais fluente, e se as melodias acompanhassem o vigor e a vibração frenética das letras, estaríamos diante de uma banda comunicativa quanto um Arcade Fire. O WU LYF tem muito a falar.
É bem verdade que a garganta arranhada do vocalista colabora para que criemos toda uma mitologia em torno da banda, que bolou uma campanha misteriosa de marketing, na rebarba do Odd Future Wolf Gang Kill Them All. Também estamos falando de um coletivo que envolve músicos, artistas gráficos, cineastas etc; ainda que, no caso, o cerne do WU LYF seja um quarteto de rock até relativamente convencional.
Você ouve o disco e imagina um bando de bárbaros (e musicalmente, eles são pouco sutis – gostam de estrondo e da repetição de camadas de órgãos e guitarras; preferem a unidade à diversidade). Na realidade, o que temos são sujeitos de classe média alta, nascidos em Manchester. De qualquer forma, é muito convincente a fantasia criada pelo World Unite para capturar a nossa atenção.
E boa parte dessa ilusão é criada pelas letras, que conclamam o ouvinte a sair às ruas e mudar um mundo que, se levarmos a sério a ladainha da banda, está quase acabando. Um expediente até démodé, mas irresistível. O World Unite pede ao público para que “seja bravo”, para que “abandone as armas” e que viva intensamente, antes que a morte chegue e acabe com a festa.
São hinos, e não duvide disso. A banda cria uma sonoridade maciça, mas se aproxima do ouvinte como quem conta um segredo via MSN. “Ei, quantos de vocês têm medo da morte?”, eles perguntam, na faixa de abertura (que repete o bordão “te amo pra sempre”, sem perder a macheza). Na lista de agradecimentos do disco, que foi gravado numa igreja (naturalmente), citam Frida Kahlo e Tupac Shakur.
Não sei se o World Unite vai se transformar numa banda tão adorável, tão gente-como-a-gente quanto um Wolf Parade, um Hold Steady ou um Titus Andronicus, mas eles fazem o possível para se associar esse time de “adultescentes” que escrevem épicos para serem compactados em 160kbps. Spitting blood e We bros são faixas que fazem justiça a essa gangue de últimos românticos.
O diferencial, creio eu, está na fome de palavras que marca o disco do WU LYF. Em alguns momentos, mesmo diante das letras, me perguntei: sobre o que eles estão cantando? Para quê? E cheguei à conclusão de que, às vezes, não estão cantando sobre coisa alguma. São apenas palavras ocas, palavras suicidas, palavras em vão. Go tell fire to the mountain diz muito, exageradamente, talvez pelo prazer de dizer. O que ouvimos são palavras em pleno processo de digestão, retorcidas em suco gástrico, lambuzadas e incompreensíveis.
Acaba que não faz muito sentido. Mas a fricção entre a expressividade das palavras e a interpretação febril garante um sentido de urgência que nos emociona (mesmo quando não sabemos por que razão). Na última faixa, eles nos têm nas mãos. Mesmo quando notamos que os versos da banda não são muito diferentes do conteúdo de um blog juvenil – e daqueles ingênuos, desesperados, que nos fazem corar.
Primeiro disco do WU LYF. 10 faixas, com produção da própria banda e de Dave Jay. Lançamento L Y F. 8/10
Os melhores discos de 2010 (10-1)
Vamos ao top 10?
Não necessariamente os 10 Melhores Discos de 2010 (admito que o título do post ficou um pouco blasé: é pra chamar atenção no Google), mas aqueles que provocaram reações felizes neste blog e, simplificando de vez a metodologia, fizeram de 2010 um ano um pouco menos frustrante para o blogueiro que escreve estes posts confusos. Um sujeito que acha que entende sobre alguma coisa e que, de janeiro pra cá, sofreu um bocado.
Antes, as menções honrosas, para ouvir antes de morrer (em ordem alfabética): American slang, The Gaslight Anthem; Before today, Ariel Pink’s Haunted Graffiti; Broken dreams club, Girls; Cosmogramma, Flying Lotus; The fool, Warpaint; Forgiveness rock record, Broken Social Scene; Gorilla manor, Local Natives; Grinderman 2, Grinderman; Hidden, These New Puritans; IRM, Charlotte Gainsbourg; Pilot talk, Curren$y; Public strain, Women; Treats, Sleigh Bells.
E, coming soon, a lista dos 20 melhores filmes de 2010 e, se tudo der certo e eu cumprir o meu cronograma apertado, os 10 discos brasileiros do ano. Mas não prometo nada, ok?
10 | The age of adz e All delighted people EP | Sufjan Stevens
I should not be so lost… But I’ve got nothing left to love – ‘I walked’
Sufjan no furacão (ou: a crise dos 30). “Quanto mais ouvimos o disco, mais fica claro que a provocação não é gratuita – ele foi criado como uma afirmação de princípios. É como se as faixas refletissem um compositor de pulsos abertos, afetado por decepções amorosas, desejo de espiritualidade, medo da passagem do tempo e outras crises que se enfrenta aos 35. A reação de Sufjan a esse cataclisma define a música que ele produz hoje, mais tensa e caótica do que de costume.” (14 de outubro, texto completo)
9 | The Monitor | Titus Andronicus
The enemy is everywhere – ‘Titus Andronicus forever’
Um épico americano, em lo-fi. “Um disco imenso e valente, que cria uma atmosfera de filme de época (sobre a Guerra Civil) para se aventurar na América de hoje. Nunca sem paixão, o Titus Andronicus entende os desafios de uma banda de rock independente: aproveitar as liberdades do mercado para brincar com as convenções, experimentar, criar monumentos de areia — nem que apenas para procurar um tipo diferente de diversão” (12 de fevereiro, texto completo)
8 | The ArchAndroid (Suites II and III) | Janelle Monáe
It’s a cold war… You better know what you’re fighting for – ‘Cold war’
Janelle, nossa heroína. “Sem querer forçar comparações absurdas (mas já forçando), a estreia de Janelle Monáe soa como se tivesse sido criado por uma menininha que, sem contato com os produtos mais mecânicos do pop, ouviu um disco dos Beatles (ou do Frank Zappa, ou do Love, ou uma ópera-rock do The Who) e decidiu escrever algumas canções. Nos 68 minutos de duração, a palavra que quica é liberdade.” (27 de maio, texto completo)
7 | Body talk | Robyn
Get a heart made of steel ‘cause you know that love kills – ‘Love kills’
Agonia e êxtase. “Robyn entende o que há de mais poderoso na música pop: cumplicidade e catarse. Com arranjos introspectivos, este seria um dos discos mais melancólicos da temporada (reparem nos versos sobre amores perdidos, crises de identidade, depressão e solidão). Mas o clima é festivo de doer. Os minidiscos são de provocar dependência química, mas este aqui é grande disco pop do ano.” (9 de dezembro, texto completo)
6 | Halcyon digest | Deerhunter
Walking free… Come with me… Far away… Every day – ‘Desire lines’
Um álbum de memórias, sobre juventude, mas Bradford Cox ainda vive cada disco como se não houvesse amanhã. “O vocalista se exibe em quase todas as canções. Ora melancólico (quase suicida), ora eufórico, otimista. Em todos os casos, leva às gravações um discurso franco, sem corretivos, que nos toma pelos braços. Somos cúmplices. Pode ser encenação – mas, nesse caso, a técnica só valoriza um álbum que soa como os posts desesperados (e ansiosos, e por vezes apressados) de um blogueiro que ouviu demais.” (20 de setembro, texto completo)
5 | The Suburbs | Arcade Fire
Sometimes I can’t believe it, I’m moving past the feeling – ‘The Suburbs’
Um grande disco de rock dos anos 70 para as tardes silenciosas da minha juventude. “O discurso do Arcade Fire se infiltra em nossas vidas, em nossas lembranças, em nossas aflições. Não existe conclusão em The suburbs porque nossas vidas também são imprecisas. E, se o disco parece se movimentar em círculos (com trechos de melodias e de versos que se repetem), é que estamos sempre retornando às nossas casas, aos nossos antigos problemas, aos nossos sonhos mortos, às nossas frustrações e à nossa adolescência.” (27 de julho, texto completo)
4 | Teen dream | Beach House
It is happening again – ‘Silver soul’
Jornada delicada sonho adentro. “Este é um daqueles álbuns em que uma pequena banda adapta um estilo sólido a certas convenções do pop rock. Soa como um problema? Não quando essa pequena banda está disposta a usar um ou outro truque para facilitar nosso acesso a um mundo ainda sutil, ainda misterioso. Que me perdoem os mais radicais: à luz rósea do pop, a história do Beach House fica ainda mais bonita.” (26 de dezembro de 2009, texto completo)
3 | Have one on me | Joanna Newsom
Hey, hey, hey, the end is near. On a good day you can see the end from here – ‘On a good day’
Visões de Joanna (num disco onde, se aceitarmos o convite, podemos morar por um bom tempo). “A sensação de liberdade, de não dever satisfações ou se obrigar a algum tipo de obrigação, contamina de tal forma este álbum triplo que, lá pelos 60 minutos de viagem, tudo o que eu consigo ouvir nele é beleza bruta, beleza estranha, beleza sutil, beleza que emociona, beleza nos detalhes mínimos, beleza que não se sabe de onde vem, beleza inclassificável, beleza difícil, beleza insuportável. Outra beleza.” (2 de março, texto completo)
2 | Expo 86 | Wolf Parade
A little vision come, come shake me up – ‘Ghost pressure’
Quatro velhos amigos numa sala (enquanto o mundo pega fogo). “Quando fazemos algum esforço, conseguimos visualizar, entre uma faixa e outra, uma banda correndo dentro do estúdio, excitadíssima com as próprias canções, com pressa para gravar, mixar, concluir o trabalho e mostrar-nos o resultado. É, apesar dos versos ainda muito agoniados, um disco que sorri para si mesmo e para o público. Nada como o som de uma banda de rock no auge, feliz com a imagem refletida no espelho” (16 de maio, texto completo)
1 | My beautiful dark twisted fantasy | Kanye West
We’re going all the way this time – ‘All of the lights’
No mundo parelelo de Kanye West, discos pop ainda nos deslumbram e espantam, ainda nos levam a lugares onde nunca estivemos. “A angústia de West, para nossa surpresa, acaba por energizar o disco, já que ele compõe e grava como se estivesse à beira do precipício. Como se houvesse apenas mais uma chance (não é o caso, mas o sujeito é uma pilha de nervos). Em sua discografia, não existe um outro disco que aposte tantas fichas, que mire tão alto e que tome caminhos tão arriscados. As faixas são grandiosas por birra, não por necessidade. Muitas delas caberiam em três minutos de duração. Mas West as alonga para explicitar o que têm de desconfortável. Uma obra-prima.” (16 de novembro, texto completo)
The suburbs, o clipe | Arcade Fire
Este clipezinho arrepiante dirigido por Spike Jonze vai direto aos nervos do disco do Arcade Fire: existe algo nessas imagens que sintoniza a sensação de fim da adolescência. Até o subtexto político combina com as paranoias de Win Butler e cia – mas, mesmo sem isso, o clipe já seria um acompanhamento precioso para o vídeo de 1979, dos Smashing Pumpkins. Teenage angst.
Mixtapes! | Duas vezes julho
A mixtape de julho (e não encontro definição melhor) é uma mãe.
Sabe quando você vai num daqueles bares bacanas que oferecem dois drinks ao preço de um? Sabe quando você pede o hambúrguer e ganha um pacote de fritas? É mais ou menos isso.
Minto: é muito melhor do que isso. Você não paga absolutamente nada e ainda leva uma mixtape totalmente grátis. É uma transação incrível ou não é?
Daí vocês me perguntam: por que o surto de generosidade, ó bartender? Sinceramente: não foi intencional. Quando comecei a juntar as músicas da mixtape, acabei com um combo de 30 faixas. Tudo isso. Uma fartura. Daí me vi diante de duas opções: descartar a maior parte das faixas, pelo bem da coesão; ou montar duas mixtapes, uma ligeiramente diferente da outra.
Minha primeira decisão foi dar uma de Edward Mãos-de-Tesoura e cortar, cortar, cortar. Terminei com um disquinho de 12 faixas, esquizofrênico que só ele. Depois, já quase de madrugada, deitei (literalmente) a cabeça no travesseiro e decidi acolher todas as canções rejeitadas, deletadas, injustamente execradas. Terminei com duas mixtapes, 22 faixas, e assunto encerrado.
Eu sei, eu sei, eu sei que dá uma preguiiiiça danada fazer o download de duuuuas mixtaaaapes e depois ainda ter que escutaaaaar a baboseira toda (só de escrever essa frase, bateu um cansaaaaço). Nos poupe, Tiago! Mas (aí vai o aspecto gentil da história) você não precisa adquirir as duas mixtapes. Elas são bem grandinhas e sabem andar com as próprias pernas. Na verdade, elas têm muito pouco a ver uma com a outra. Não são irmãs nem nada. Talvez primas, mas nunca irmãs.
O esquema funciona assim:
A primeira parte da mixtape é (como dizer?) um filme da Sofia Coppola. Delicadeza com algo de malícia. Dream pop, power pop, odes a Brian Wilson, cantantes melancólicos, muita saudade e tristeza e doçura. É a mixtape mais tocante que você ouvirá na sua vida, eu garanto. Tem Department of Eagles, tem Foals, tem Avi Buffalo, tem Best Coast, tem Mystery Jets, tem Here We Go Magic (olha aí, Felipe!) e tem até Johnny Cash. Uma lindeza.
Esta primeira parte é uma continuação da mixtape de abril, sentimental e siderada. E é dedicada a duas pessoas muito bacanas que costumam baixar as mixtapes e comentar com certa frequência aqui no blog: o Daniel, do Power Pop Station, e o Pedro Primo, do Ouvido Cego. Se vocês curtirem, ficarei bastante satisfeito.
A segunda parte da mixtape é (como dizer?) um filme do Robert Rodriguez. Com efeitos especiais toscos, dublês, mocinhas estridentes, passagens absurdas, muita emoção e sedução. É como que dividido em duas partes: na primeira, um balancê infernal. Na segunda, guitarras pegando fogo. Tem M.I.A., tem Gaslight Anthem, tem a nova do Kanye West, tem Big Boi, tem Wavves e fecha com Arcade Fire – que, apesar de ter entrado na mixtape do mês passado, assina o disco que mais gostei de ouvir neste mês: The suburbs. Por isso eles aparecem na foto lá em cima.
Esta primeira parte é uma continuação da mixtape de maio: tique nervoso e adrenalina. E é dedicada a todo mundo que usa headphones para matar o tédio provocado por exercícios físicos repetitivos.
Assim funciona. Faça o que bem entender, ok? Ouça apenas a primeira, ouça apenas a segunda, ouça as duas ou não ouça nenhuma. Não sou seu pai e não vou monitorar seu IP. Fique à vontade (e, como sempre, a lista das músicas está logo ali na caixa de comentários).
Só peço um favor: se aqueles que ouviram a(s) mixtape(s) fizerem um singelo comentário, vai ser joia. “Sua gentileza levar-lhe-a ao sucesso”, li agorinha mesmo numa mensagem que encontrei dentro de um biscoito chinês. Sigam o conselho e sejam felizes.
Faça o download da primeira parte da mixtape aqui ou aqui.
E (força, rapaz!) faça o download da segunda parte aqui ou aqui.
The suburbs | Arcade Fire
As tardes na minha quadra eram as tardes mais silenciosas.
Eu chegava da escola e ficava deitado na cama olhando para o teto. Nenhum barulho.
Eu voltava da rua e ficava deitado na cama olhando para o teto. Nada.
Eu adoecia e passava o dia inteiro deitado na cama olhando para o teto. E a quadra lá embaixo.
Teve o dia em que eu me ajoelhei na cama para olhar da janela as crianças brincando de basquete lá embaixo. Eu morava no terceiro andar e raramente descia.
E o silêncio. Teve aquele dia em que o garoto (que eu não conhecia) gritou “o mundo tá acabando!”, e depois contaram aos vizinhos que ele era louco. Não se preocupem que ele é louco, o garoto, o coitado do garoto, o mundo não está acabando, sem grilo, ele é louco.
E o início da minha adolescência foi assim: silêncio, silêncio, silêncio, loucura (dos outros), silêncio (da quadra).
Então não acontecia quase nada. Eu e as minhas centenas de atividades, mas o que ficou foi a lembrança daquela quadra silenciosa. Daí que, em vez de pular da janela, eu ficava escrevendo. E lendo: Salinger, Goethe, Conta comigo, O senhor das moscas e outros livros sobre meninos prontos para pular da janela (no caso de O senhor das moscas, acho que nem havia janela, havia?).
Depois cresci e lamentei – quanto tempo perdido! Vivi intensamente dentro dos meus livros e dos meus discos e dos filmes e da minha cabeça. Como se isso tudo bastasse (não bastava). Wasted hours. Eu era um menino tão melancólico que, quando lembro, quase dói.
Passei este fim de semana ouvindo The suburbs, o terceiro disco do Arcade Fire, e foi como se eu tivesse sido atirado novamente àquele estado de espírito, àquela cama, àquele quarto, àquele apartamento, àquele prédio e àquela quadra silenciosa. Perdão, amigos: este é um texto mais pessoal do que vocês gostariam.
Desconfio que seja um álbum poderosíssimo para meninos e meninas melancólicos. Perigoso, até (como O apanhador no campo de centeio é, sim, um perigo, estive lá!). Eu, que já estou noutra (e hoje sou um adulto quase seguro de mim mesmo, quase saudável, quase pronto para ter um filho e mudar o mundo), o admiro como uma obra sobre um período, sobre uma fase da vida, um disco que consegue se aproximar dos sentimentos de quem cresce trancafiado em quadras silenciosas (no caso mais específico do disco, em subúrbios confortáveis, organizados e medonhos).
Os personagens têm tudo e não têm nada, têm tudo e ainda não sabem o que querem, têm todo o silêncio do mundo à disposição. E não se movem (apesar do desejo intenso, quase louco, por movimento, por ruptura, por uma vida diferente). “Nós costumávamos esperar por um tempo que nunca chegou”, resume Win Butler, nosso narrador-protagonista, amargo e desiludido e olhando para o teto.
No álbum de estreia do Arcade Fire, Funeral, de 2004, a morte acendia e apagava as luzes da vizinhança – era a ameaça que varria o cotidiano, e ela estava lá. Neon bible, de 2007, era uma viagem a um mundo de pesadelos (e de goth rock oitentista, meio maçante e tedioso). Menos surreal, The suburbs soa como uma continuação dos temas de Funeral, mas com uma diferença cruel: em Funeral, a tristeza era provocada pela perda de pessoas queridas. Em The suburbs, o desespero aparece com a dificuldade de seguir com a vida, de escolher um futuro, de pegar as chaves do carro e sair.
“Quando as primeiras bombas caíram, nós já estávamos entediados”, explica Butler, na faixa-título (que praticamente resume o universo do disco). E continua: “Os meninos querem ser durões. Mas nos sonhos estamos ainda gritando.” E continua: “Todos os muros que eles construíram nos anos 70 finalmente caíram. Eles não significaram absolutamente nada.”
E (que pancada!) é só o começo de um álbum que vai à estratosfera sem sair do quarto.
Butler é dos nossos: acompanha os personagens com a autoridade de quem viveu sensações parecidas (e quem não viveu?). Desde a primeira música, estamos com ele. Não há movimentos em falso. Desta vez, o Arcade Fire nos ganha por uma questão de cumplicidade. A banda está do nosso lado (está no nosso mundo) mesmo antes de decidirmos se queremos ou não acompanhá-la. Butler canta para a própria geração, para os meninos e meninas da América (e do Canadá, e da minha quadra silenciosa). Canta para uma multidão que provavelmente retribuirá em estádios lotados e com olhos cheios de lágrima.
É esse tipo de disco.
E o que ainda me impressiona (e já ouvi o álbum mais de uma dezena de vezes) é como esse laço que a banda cria com o público acaba por anular quase todas as fraquezas do disco. E (como não?) há fraquezas. É um álbum excessivamente longo, para começo de conversa. Que deixa a impressão de que três ou quatro faixas poderiam ter virado lados B de singles. É um álbum musicalmente conservador – que, no máximo, arrisca alguma combinação de Bruce Springsteen com Brian Eno e David Bowie fase Low (e quem fez isso recentemente? Quem? Quem? Cold-o-quê?). É uma dessas óperas-rock que não vão longe demais.
(Aliás, é curioso que Butler tenha falado nos “muros dos anos 70”, já que este disco inteiro parece criado com tijolinhos do rock dos anos 70, do punk de Month of may ao prog de Suburban wars ao soft rock de Modern man ao stadium rock de City with no children e ao clima new-wave de Mountains beyond mountains, que é quase uma versão lo-fi de Heart of glass).
Mas, é claro, é um disco que quer conquistar o mundo. E, hoje em dia, quantos discos querem conquistar o mundo? Não que isso seja mérito (e revistas como a Rolling Stone vão tentar convencê-los de que é sim um mérito). Eu mesmo prefiro os discos que não querem conquistar o mundo (ou que desprezam essa ambição muito ultrapassada, tão mid-eighties). The suburbs é Joshua Tree, é Born to run, é Use your illusion, é (sim, engulam) Viva la vida e é todos esses álbuns-monumentos family-size, grandes demais para nossos mundinhos. Estátuas de pedra, entertainment, quase autoparódia.
O fator-estranheza, no caso de The suburbs, é que esse porte épico parece contradizer um discurso introspectivo. Os hinos do Arcade Fire são frágeis e tristes, são hinos para consumo individual, hinos em cápsulas, hinos dos solitários. Mas, antes que eu cometa um erro muito feio (e eu já ia cometendo), devo notar que essa aparente contradição acaba se convertendo em força. Já que as melodias parecem ecoar os sentimentos gigantescos de personagens pequenos. The suburbs é, se prestarmos atenção, o som dos desejos que não se concretizam.
Um disco planejado para soar mundano (a faixa de abertura, por exemplo, é até contida para os padrões da banda; idem para Deep blue e Wasted hours) e espetacular. Talvez um salto maior do que as pernas, mas um salto. Talvez não funcione totalmente, mas eles tentaram.
Mas – como eu disse e repito – nenhuma dessas questões conceituais soa mais decisiva do que a forma como o discurso do Arcade Fire se infiltra em nossas vidas, em nossas lembranças, em nossas aflições. Não existe conclusão em The suburbs porque nossas vidas também são imprecisas. E, se o disco parece se movimentar em círculos (com trechos de melodias e de versos que se repetem), é que estamos sempre retornando às nossas casas, aos nossos antigos problemas, aos nossos sonhos mortos, às nossas frustrações e à nossa adolescência.
É que, de vez em quando, ainda nos pegamos deitados na cama olhando para o teto e decepcionados e melancólicos e sem ter para onde ir e o silêncio lá fora. Mesmo adultos. Não é simples como parece.
Terceiro disco do Arcade Fire. 16 faixas, com produção de Markus Dravs e Arcade Fire. Lançamento Merge Records. 8.5/10
Mixtape! | O melhor de junho
A mixtape de junho é mais ou menos (eu disse mais ou menos) um passeio na praia. A de maio, vocês lembram, era ruidosa e fantasmagórica. Desta vez, eu queria um pouco de leveza.
É claro: não encontrei o que eu estava procurando.
Mas encontrei mais ou menos isso, o que é raro. O mês de junho foi estranho. Ouvi muitos discos, mas poucos grandes discos. E álbuns de gêneros muito diferentes, daí a dificuldade de montar uma coletânea coesa. Quando percebi que seria impossível, relaxei.
Me vi obrigado, então, a descartar as canções de um dos melhores discos desse período, Before today, do Ariel Pink’s Haunted Graffiti. E encontrei uma brecha (aos 45 do segundo tempo) para o meu favorito, Public strain, do Women (e são eles na foto ali em cima). Teenage Fanclub, The-Dream e Major Lazer foram alguns que ficaram de fora.
É a vida.
Gravei o CD e, só depois, descobri que ele contava uma historinha. Que vai assim: era uma vez sujeito muito agoniado que pegou os dois filhos pequenos pelo braço, acomodou os petizes no carro e saiu para um rolê na praia. Os três beberam água de coco, tomaram banho de praia, tostaram ao sol, olharam as gaivotas e, no fim da tarde, quando voltaram para casa, o sujeito percebeu que a vida continuava triste. The end.
Traduzindo: o disquinho começa com um desabafo mui tenso da nossa serelepe Robyn, depois cai dentro da fofura mórbida do The Drums, e aí o sol abre um pouco (mas nem tanto, vemos nuvens aqui e ali) com The Black Keys, The Roots, Blitzen Trapper, tudo num clima gostoso de rádio FM. Aí bate um pouco de melancolia (que ninguém é de ferro) na interpretação dodói do Record Club (St. Vincent + Beck + Liars + Mutantes) para Never tear us apart, do INXS. Que é uma coisa fofa.
Depois de um entardecer ao som de Arcade Fire, a noite vai chegando e escurecendo tudo: Menomena e Drake. Na volta para casa, Women. A despedida deprê é com o How to Destroy Angels. E the end.
Aposto que você vai ouvir pela primeira vez e pensar: “é a mixtape mais frouxa do ano”. Lá na terceira audição, você vai reconsiderar a opinião e concluir que esta é uma das melhores mixtapes que você ouviu. As primeiras impressões podem ser cruéis, vá por mim.
Um alerta: não a ouça enquanto faz exercícios físicos. Tentei e não funciona. Nesse caso, prefira a mixtape de maio.
E, se possível (é possível, vá!), comente algo sobre o que você ouviu. Nem que seja um “esta mixtape está bem mais ou menos“. A tracklist tá logo ali, na caixa de comentários.
Faça (hoje mesmo!) o download da mixtape de junho: aqui ou aqui.
Superoito express (16)
Heartland | Owen Pallett | 7
E o prêmio de aluno mais dedicado da classe vai para… Depois de compor arranjos de cordas para discos como Funeral (Arcade Fire), The age of the understatement (The Last Shadow Puppets) e The flying club cup (Beirut), Owen Pallett aposenta o codinome Final Fantasy, assina com a Domino Records (talvez o selo mais bacana do mundo) e sai do armário (artisticamente, pelo menos) num álbum que, se dependesse da torcida vip e das expectativas que provoca, teria acesso garantido às listas de melhores de 2010.
Heartland é uma sinfonia pop com uma premissa insólita: um fazendeiro grosseirão de um planeta fictício olha para o céu e, siderado, trava uma série de monólogos com seu deus. Com uma piração dessas, o Flaming Lips escreveria uma ópera psicodélica. Pallett é mais contido, polido e blasé (e, às vezes, pálido): mais Van Dyke Parks, menos Pink Floyd. A primeira metade do disco, à beira do pop, resume tudo o que o violinista faz de melhor – trilhas perversas para desenhos da Disney. A segunda, espaçosa, vai diluindo a trama num cartoon para adultos. Voo alto, mas errático. Ainda assim, não vai desapontar os fãs de Andrew Bird e Sujfan Stevens.
Odd blood | Yeasayer | 6.5
Um alerta: este pode soar como um disco projetado para dar alguma ocupação aos fãs do MGMT e do Empire of the Sun – psicodelia-chiclete em modo hiperativo, com surpresas reluzentes e superficiais a cada curva. Mas o trio de Nova York (que estreou bem com All hour cymbals, de 2007) leva um pouco mais a fundo o projeto de experimentar com elementos do pop e do underground, sem compromisso com nenhum dos dois times. Daí esquisitices muito alegres e saborosas como O.N.E. (que parece até homenagem ao Erasure) e o single Ambling Alp. A estratégia de distribuição explica muito sobre o álbum, lançado nos Estados Unidos pelo selo independente Secretly Canadian e nos outros países pela EMI. Vai ser impossível, por isso, não ouvir falar sobre eles em 2010.
End times | Eels | 5.5
Até os fãs concordarão que o “álbum de divórcio” do Eels soaria um tantinho mais tocante se lançado antes de pelo menos outros três discos dele que lidam mais ou menos com a mesma angústia (e com a mesma receitinha sonora). Para Mark Oliver Everett, a depressão provocada por desilusões amorosas é um standard. Por mais que as circunstâncias nos levem a admirar End times como um esforço corajoso e extremamente franco (separado da mulher, mais desamparado que cão sem dono, Mark se isolou no porão de casa, onde vomitou o álbum inteiro num gravador fuleiro), o resultado da terapia ocupacional soa como o lamento de alguém que acabou de sofrer um baque desses: os amores acabam e o mundo é cruel. Multiplique o drama por 14 canções.
Of the blue colour of the sky | OK Go | 5
Produzido por Dave Fridmann (Flaming Lips, MGMT), o terceiro disco do OK Go é a projeção em 3D de um filme mediano. Os efeitos especiais entretêm, mas não tente procurar mais do que isso. Fridmann, ainda enfeitiçado pelo sucesso do MGMT, segue maltratando uma fórmula que ajudou a criar com os Lips (o pai de todos esses disquinhos pop meio aguados e muito apelativos, acredite, é The soft bulletin). A banda o anunciou como um “álbum honesto e dançante, inspirado em Prince”. Previsível assim. Três discos, participações em trilhas sonoras, fã-clube no YouTube, tapete vermelho estendido por uma grande gravadora… Nada disso ajuda o OK Go a forjar uma identidade. Como alertaria o Eels, mundo sarcástico o nosso.
50 discos para uma década (parte final)
Em Brasília, são 22h. Vamos terminar esta novela?
Primeiro, devo lembrar (até para os que chegarem depois) de mais uma fornada de discos que ficaram de fora da lista. Infelizmente, não tem lugar para todo mundo entre os meus 50 favoritos da década. Mas vejam a situação com otimismo: se muita coisa boa foi limada da lista, isso significa que vivemos uma década (musicalmente, pelo menos) muito inspirada e devemos ficar felizes com isso. Certo?
E, também para a posteridade: os vencedores foram anunciados ao vivo, com o apoio de uma conexão precária e ao som do greatest hits do Blur.
São eles (em ordem alfabética): Boy in da corner, Dizzee Rascal, For Emma, forever ago, Bon Iver, From a basement on the hill, Elliott Smith (hors-concours), The Futureheads, The Futureheads, Good news for people who love bad news, Modest Mouse, Heartbreaker, Ryan Adams, The hour of bewilderbeast, Badly Drawn Boy, In search of…, N.E.R.D., Jim, Jamie Lidell, Microcastle, Deerhunter, Myths of the near future, Klaxons, Parachutes, Coldplay, The runners four, Deerhoof, Since I left you, The Avalanches (heresia ter ficado de fora!), The Carter III, Lil Wayne, Vampire Weekend, Vampire Weekend, XTRMNTR, Primal Scream.
E prometo não demorar muito entre um post e outro (sabe como é: tem muito texto, isto deu um trabalhão e eu gostaria de verdade que vocês lessem pelo menos a primeira frase de cada um dos comentários, por favor).
10. Smile – Brian Wilson (2004)
A história ainda parece inacreditável: quase 40 anos depois, Brian Wilson finalmente concluiu uma das grandes obras fantasmagóricas da música pop. Só por isso – esse esforço obsessivo, heroico – Smile já seria um monumento. Mas não fica nisso. Os fãs dos Beach Boys já conheciam as músicas que estão no disco, mas não faziam ideia de um detalhe fundamental: juntas, as peças do quebra-cabeças finalmente se encaixam numa sinfonia pop que, além de soar deslumbrante do início ao fim, esclarece as ambições do projeto e (ainda que tardiamente) leva adiante as loucuras de Pet sounds. Curiosamente, em tempo de Flaming Lips, Animal Collective e Fiery Furnaces, as experiências de Wilson soaram novas. De novo.
9. Discovery – Daft Punk (2001)
“O disco tem muito a ver com a nossa infância e com as memórias que temos daquela época. É sobre nossa relação pessoal com aquele período. É menos um tributo a uma era musical (de 1975 a 1985) e mais a forma que encontramos de focalizar o tempo em que tínhamos menos de 10 anos de idade. Quando você é criança, você não julga ou analisa música. Você gosta porque gosta. Você não quer saber se é cool ou não é. Este disco encara a música de uma forma brincalhona, divertida e colorida. É sobre a ideia de olhar para algo com a mente aberta, sem fazer muitas perguntas. É sobre a relação verdadeira, simples e profunda que temos com a música”, Thomas Bangalter (e só tenho duas coisas a acrescentar: é o grande momento do Daft Punk e um modelo para quase tudo o que foi feito em electropop na década).
8. Merriweather Post Pavilion – Animal Collective (2009)
Uma lista séria sobre a década deve conter pelo menos dois álbuns do Animal Collective, uma banda que gravou o primeiro disco exatamente em 2000 e chegou madura a 2009. Além de Merriweather Post Pavilion, que é a obra-prima deles, eu escolheria Feels, o auge da psicodelia folk que eles experimentavam desde o início da carreira (e que deu no também genial Sung tongs). Em Strawberry jam, outra cria excelente, a sonoridade pesou num tom áspero, mecânico e quase sempre perturbador. Difícil escolher um só. Mas Merriweather, dois passos a frente dos outros, consegue sintetizar tudo o que eles fizeram e apontar para o futuro. Um disco que brinca com uma eletrônica feérica, eufórica, e explora o lado mais emotivo dos versos, que, mesmo quando voltam-se às memórias de infância, não deixam de enfrentar as incertezas do mundo. Uma banda em progresso, crescida, segura de si mesma – e ainda sim, ainda estamos assustados.
7. Funeral – Arcade Fire (2004)
Visto de longe, o primeiro disco do Arcade Fire não parece muito complicado: conhecemos muitos álbuns sobre a morte. Além do mais, os canadenses não foram os primeiros a fazer indie com escopo e vocação para estádios. Ainda assim, Funeral ainda soa como um disco peculiar, inimitável (e não foram poucos os que tentaram imitá-lo). Poucas obras confessionais têm um conceito tão bem definido – e todas as cinco primeiras faixas soam como a trilha de um filme – e um desejo tão intenso de criar melodias inesquecíveis, perfeitas (e aí vale citar Pixies, U2, pop francês, space rock americano e o diabo a quatro). Uma marcha fúnebre que celebra a vida – eis a bela contradição deste belo disco, uma surpresa que a banda não conseguiu superar (no segundo eles seguiriam um caminho mais dark e épico).
6. Yankee hotel foxtrot – Wilco (2002)
Até o fim dos anos 1990, o Wilco era uma banda de country rock insatisfeita com a camisa-de-força do gênero. Em Summerteeth, eles brincaram com a psicodelia sessentista, mas o resultado ainda soava polido, como se faltasse coragem para dar o grande salto. Ele viria com Yankee hotel foxtrot, um disco de certa forma maldito, já que rejeitado pela gravadora (dizem até que os executivos ouviram e acharam uma porcaria), e que mostra uma banda em transe. Foi lançado só depois de ter virado objeto de culto na internet, e ainda soa como uma espécie de milagre. Cada vez mais interessado no art rock dos anos 1970 (um estilo, nos discos seguintes, seria lentamente diluído em soft rock), Jeff Tweedy aproveitou-se da produção de Jim O’Rourke para criar uma obra instável, tortuosa, imprevisível e desiludida – um instantâneo da América do início do século. Ainda parece frustrante que a banda tenha optado por, depois disso, seguir um caminho confortável (ainda que o seguinte, A ghost is born, seja todo espinhoso e também belíssimo). Houve um momento, no entanto, em que eles encontraram a sintonia perfeita com o tempo em que vivem.
5. The grey album – Danger Mouse (2004)
Por que não? Essa perguntinha meio banal deve ter motivado o DJ Brian Burton (Danger Mouse) a cometer a heresia mais brilhante da década: arrombar o cofre dos Beatles, pilhar o tesouro mais sagrado da música pop e combinar os clássicos do Álbum Branco com os hits do Black album, recém-lançado por Jay-Z. Dois discos separados por algumas décadas, mas que, um menos explicitamente que o outro, sugerem uma mesma atmosfera de despedida. A mutação genética não é perfeita (e há faixas truncadas, tortas), mas tem um valor histórico que ainda não conseguimos medir. O disco que esfregou a era da internet na fuça das gravadoras? Um ato de vandalismo artístico? Uma amostra de que nada mais é sagrado? Sinal dos tempos (e apenas isso)? Quem não se importa com esse tipo de análise ainda leva de brinde algumas das canções mais divertidas de todos os tempos. É aquela coisa: proibido é mais gostoso, né não?
4. White blood cells – The White Stripes (2001)
O White Stripes é a melhor gag da década: um homem e uma mulher que se vestem de vermelho e branco e soam como se uma banda de garage rock tivesse resolvido fazer versões toscas para o repertório do Led Zeppelin. A fórmula de Jack e Meg White ilustrou perfeitamente uma época que elegeu o minimalismo ruidoso como sabor da estação e contraponto aos excessos do rock do final dos anos 1990 (de certa forma, essa foi a nossa interpretação para o punk dos 70 e o grunge dos 90). E, para nosso espanto, White blood cells trazia algo além de contenção e explosão: revelava uma banda de rock com tutano e ambição – e capaz de citar Cidadão Kane em meio a um esporro pós-punk (cinco pontos só por isso!). Os dois discos seguintes são tão bons e relevantes quanto, mas esta aqui é a cápsula que contém todos os segredos e manias do casal 2000. E nem preciso comentar Fell in love with a girl. Preciso?
3. Stankonia – Outkast (2000)
Olhe para a década: os grandes discos de hip hop lançados nos últimos 10 anos são os musicalmente irrequietos, que forçam os limites do gênero e saem furiosamente para a aventura. Jay-Z, Kanye West , à frente deles, o Outkast. Depois de ter implodido dentro de um maravilhoso e louco álbum duplo (Speakerboxxx/The love below), o duo acabou perdendo parte do poder de influência que tinha no início da década. Mas não custa lembrar: até 2003, eles ditaram quase todas as regras, até dominar o pop por completo (com o hit Hey ya!) e deixar a cena sorrateiramente.
Há quem prefira os primeiros álbuns, também alienígenas, mas Stankonia hoje soa como o auge criativo de Big Boi e André 3000 — numa comparação ridícula, é o Sgt. Pepper’s deles (e, naquela época, não conseguimos antever o Álbum Branco). E um período de colheita generosa, com 24 faixas, 74 minutos e clássicos absolutos como Mrs. Jackson e B.O.B. Já estavam claras as diferenças entre André (o soulman insano) e Big Boi (o mano apegado a boas tradições) — mas, ali, elas se uniam numa química imbatível. Um daqueles discos imensos que nos deixam muito pequenos.
2. Is this it – The Strokes (2001)
Lembro a primeira vez em que ouvi um single do Strokes (acho que The modern age): apaguei o arquivo de MP3 e fui procurar outro. A qualidade de som parecia terrível. Depois, envergonhado comigo mesmo, notei que o jogo era aquele: a atmosfera ruidosa das gravações (que pareciam saído de uma fita demo largada num estúdio abandonado de Nova York por volta de 1967) contava tanto, talvez mais, que as melodias e as letras. De qualquer forma, todos os elementos se complementavam. Sabemos tudo sobre o hype criado em torno deles — e provocado por uma imprensa inglesa que ainda era poderosa nesse ramo —, mas (ao contrário de queridinhos como The Vines e Kings of Leon) eles sobreviveram heroicamente a tudo.
Hoje, fica claro por que: Julian Casablancas honra a tradição dos grandes band leaders, sempre prontos a se rasgar de angústia diante do público (e o disco posterior, o ótimo Room on fire, aprofunda o tom desesperado e pessoal das composições) e Albert Hammond Jr entende tudo sobre o poder hipnótico de um riff palatável (o projeto solo do sujeito não nos deixa mentir). Uma banda simplesmente real. E oportunista, no bom sentido. Nenhum outro grupo soube aproveitar com tanta gana o revival do rock de garagem e do pós-punk: endividados tanto com o Velvet Underground quanto com o Ramones, eles restauraram Nova York como um fervilhante laboratório de rock. Taí, então: um dos poucos discos da década que merecem entrar numa lista não tão longa de grandes álbuns de todos os tempos.
1. Kid A – Radiohead (2000)
Não importa se você ouviu ou não ouviu Kid A (ou se você prefere Hail to the thief – ninguém é perfeito): nenhuma discussão sobre o rock do início do século se sustenta sem alguma referência a este disco. É grande assim. Produzido num período de transição para a indústria musical, foi um dos primeiros a se integrar intensamente à onda da troca de arquivos via internet (na lista de melhores discos de 2000, a revista Spin deu o primeiro lugar apropriadamente para o hard drive dos computadores dos leitores, e em segundo ficou Kid A) — e, para muitos fãs, o “último suspiro” da era do álbum. De qualquer uma das formas, é um triunfo do timing. O disco certo para um mundo errado.
Se Ok computer se deixa afinar por tradições do rock — o progressivo, o pós-punk, o goth rock dos anos 80 —, Kid A derruba os dogmas e barras de segurança em busca de uma sonoridade nova, radicalmente atual (e, com o excelente In rainbows, a banda novamente confrontou ideias dadas como intocáveis). Com o esforço de se reinventar, o Radiohead renasceu como um projeto de eletrônica e jazz-rock capaz de compor canções fragmentadas, tortas, que transportam para o processo de composição toda a confusão que Thom Yorke sempre imprimiu às letras de canções. Antes, ele comentava a paranoia urbana, a opressão tecnológica. Com Kid A, converteu todas essas angústias em pura música. Dos sintetizadores sufocantes de Everyting in its right place à metralhadora eletrônica de Idioteque, tudo é agonia. E o mundo (da música, pelo menos) acordaria perturbado desse pesadelo.
Dark was the night | Vários Artistas
Não é que eu tenha problemas com coletâneas, mas veja o caso de Dark was the night. Nem sei por onde começar, sério.
O álbum duplo, lançado com a Red Hot Organization (que arrecada fundos em benefício dos portadores do HIV, e está por trás de discos como No alternative e Red Hot and Blue), tem 31 faixas, dura mais que muito longa-metragem e funciona praticamente como um yearbook para ídolos da comunidade indie (classe de 2007/2008, com paraninfos e agregados).
Quer dizer, Deerhoof ficou de fora. Mas eles não contam exatamente como ídolos, contam?
No mais, a turma está reunida: produzido por Aaron e Bryce Dessner (do The National), o álbum reúne canções exclusivas (entre inéditas e covers) de bandas como Arcade Fire, Spoon, Antony and the Johnsons, Grizzly Bear, Andrew Bird, The New Pornographers, My Morning Jacket, Cat Power. O set é tão diversificado (dentro dos limites do indie, claro) que praticamente todo leitor da Pitchfork vai querer uma cópia do disquinho.
Dá para forçar a barra e identificar uma atmosfera de melancolia em torno da maior parte das faixas – e algumas delas, como You are the blood (Sufjan Stevens) e Stolen houses (Iron and Wine) vão direto ao tema. Mas é um projeto abrangente demais para caber numa síntese (que o próprio título sugere).
Como de costume, há opções meio duvidosas. Conor Oberst, por exemplo, presta reverências ao próprio umbigo com uma versão de Lua (se faz acompanhar por Gillian Welch). E o Decemberists extrapola com uma faixa chorosa de oito minutos de duração (Sleepless). Mas são poucos equívocos, e eles quase desaparecem num conjunto bastante forte.
Eu destacaria umas 15 faixas, mas isso não ajudaria ninguém. Sejamos práticos: lá no topo da minha lista de preferidas estão Deep blue sea, do Grizzly Bear (tão boa quanto qualquer uma do disco Yellow house, que é maravilhoso), Knotty pine, com Dirty Projectors e David Byrne (que abre o disco, e não à toa) e You are the blood, que aponta uma direção mais experimental e eletrônica (mas ainda doce) para Sufjan Stevens.
Well-alright, do Spoon, abre o segundo disco e… Se não mereceria entrar no álbum mais recente dele, ainda é Spoon e por isso vale quase a coleânea toda. E, no departamento das covers, é uma delícia a versão do New Pornographers para Hey, snow white, do Destroyer (e a de Antony para I was young when I left home, de Bob Dylan).
Isto é: daqui a 60 anos, quando quiserem resgatar o indie rock do início do século, este álbum aqui servirá como uma introdução bem decente.
Coletânea produzida por Aaron e Bryce Dessner. 31 faixas. 4AD/Red Hot Organization. 8/10