Aparente simplicidade
Measure | Field Music
Entre os meus 15 e 17 anos de idade, escrevi cerca de 200 músicas. Curtas e longas, alegres e tristes, algumas verdadeiramente radicais (lembro que, entusiasmado com um novo software, tentei cruzar grunge com trance), outras confessionais, singelas. Todas sofríveis. Muitas das canções foram gravadas em fitas-cassete. Volta e meia, ouço tudo novamente, meio constrangido com o meu passado. Mas fico aliviado. Esses registros lo-fi são a prova concretíssima de que não cometi um erro que poderia ter me transformado num sujeito miserável: não superestimei meu dom para a composição.
É que, para quem começa a arranhar o violão, criar canções parece algo até simples. Sei de pessoas que se orgulham de repertórios mais vastos que o meu. 500, 600 músicas. Todas inéditas, à espera de algum afago, de reconhecimento tardio, de um tapinha nas costas. Eu não tenho ilusões. Aposto que, aos 15 anos, Kurt Cobain já conseguia converter desespero em diamante. O petiz Elliott Smith, não duvido, fazia os primos chorar com interpretações agoniadas para Happy birthday. Eu, no máximo, usei acordes primários como escape para tristeza (quase sempre despropositada) e tédio. Tudo o que fiz foi um longo diário sonoro (e eu cantava terrivelmente mal).
Conheço bandas iniciantes que cabem nesse relato sobre a minha modesta aventura no universo do bedroom rock. É a mesma história. São esforçadas, prolíficas e (infelizmente!) desprezíveis. A elas recomendo Measure, o terceiro disco do Field Music. Um álbum que esfrega na nossa cara a tal verdade inconveniente. Existe sim uma matemática da música pop (que soma carisma, conceitos espertos, timing, malabarismos estilísticos, “atitude”), mas, quase sempre, ela nos leva a um denominador muito simples e muito abstrato: alguns têm talento para a coisa, outros não.
E alguns têm talento extraordinário para o que há de básico na arte da canção. É o caso dos irmãos David e Peter Brewis, o “núcleo duro” do Field Music. Eles praticam um estilo que parece destoar de tudo o que está na moda, tanto no nicho indie como nas rádios: discos como Tones of town, de 2007, e Measure poderiam ter sido lançados em 1979, em 1989 ou em 1999. São álbuns que permitem fácil classificação (pós-punk, indie rock, garage britânico) e que não pedem para ser valorizados pela ousadia do conceito, pelas experimentações formais. Soam até conservadores, talvez um tanto nostálgicos, mas, acima de tudo, desprendidos do tempo em que foram produzidos.
Nada retrô nisso — eles soam simplesmente despreocupados com o mundo ao redor. Uma questão de temperamento. O ouvinte é que deve se adaptar à discrição da banda, que se especializou em criar arranjos sinuosos (às vezes complicadíssimos) para canções que parecem mais simples do que são. Numa das faixas deste novo disco, Something familiar, eles até brincam com essa aparência ordinária: “Sempre encontro uma forma de complicar as coisas. Não é nada difícil ser complicado.” Eles fazem isto: descomplicam.
Essa obsessão por estruturas familiares de canção pode provocar alguns mal-entendidos. Para os iniciantes, Measure periga parecer fácil demais. Sei que isto é um blog e leitores de blog curtem amores à primeira audição, paixões explosivas, mas sei também que os leitores deste blog são inteligentes e curiosos o suficiente para, neste caso, dar pelo menos cinco chances ao disco, pacientemente, antes de tirar conclusões. Ele tem 20 canções que, na melhor tradição de um Guided By Voices e de um Sea and Cake, se instalam na nossa vida quando estamos prestes a descartá-las para sempre.
Até para quem acompanhava o Field Music com interesse, Measure soará um tanto surpreendente. Nem parece o retrato de uma banda que, há poucos anos, parecia prestes a desmontar (David e Peter pareciam mais entusiasmados, respectivamente, com os projetos School of Language e The Week That Was). Sem tapa-buracos, este álbum duplo tem o tamanho exato para fazer justiça a uma fase de alta produtividade. São poucas as bandas que conseguem justificar esse formato widescreen: mas, como o Frank Black de Teenager of the year, o Field Music nos convence com uma justificativa simplezinha — as canções eram boas demais.
Claro que não é só isso: conhecedores que são da história do rock, David e Peter fazem um inventário sutil de todos os gêneros que os influenciaram, do soft rock ao pós-punk, do folk à música abstrata, de Pixies a The Who. Nas primeiras 10 músicas, o disco se desenrola como uma continuação direta de Tones of town: com polidez e ironia tipicamente britânicos, um artesanato impecável (a irresistível In the mirror, com guitarras que choram e versos existencialistas, é uma aula para qualquer novato em rock), vocação literária (uma das canções se chama Let’s write a book) e sem o menor esforço (a faixa-emblema se chama Effortlessly). Finíssimo — e seu pai, que tem muito bom gosto, ouviria numa boa.
Na segunda metade, a banda aproveita as liberdades típicas de um álbum duplo, perde a medida e supera tudo o que já gravou — quase como numa mini ópera do The Who, as canções parecem narrar uma trama com leve tom de rock progressivo, à Pink Floyd (You and I é belíssima), e de psicodelia sessentista à Love (First comes the wish, The wheels are in place). Influências que aparecem mais na estrutura das canções e menos na atmosfera do disco, que passa longe da grandiloquência ou da psicodelia cool que está em voga.
Veja: Measure é um disco que pode ser defendido assim, com argumentos organizadinhos num texto de blog. E que provavelmente será desprezado por parte da crítica, tratado como um álbum ultrapassado e corretinho demais. Ok. Entendo. Mas nada explica de onde vem a força elementar dessas canções: algo que David e Peter têm e nós, meros compositores dedicados e quase eficientes, nunca teremos.
Terceiro disco do Field Music. 20 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Memphis Industries/Revolver. 8.5/10
2 ou 3 parágrafos | Lunar
Desde o lançamento de Avatar, ouço a reclamação de que, apesar de todo o deslumbramento visual, o filme de James Cameron tem um problema: a trama é fraca. A esses, indico Lunar (Moon, 6/10), uma ficção científica muito engenhosa — mas que, pelo menos na tevê lá de casa, não pareceu nem um pouco hipnótica.
Duncan Jones, o diretor (e filho de David Bowie), tenta uma provocação sobre a ética da ciência. Para isso, joga com as expectativas do público, que fica meio perdido entre personagens que, isolados numa estação espacial, podem ou não ser clones. Como reconhecer um ser humano?, eis a questão. Sam Rockwell embarca no delírio solitário como quem tenta superar o Robert Duvall de THX 1138.
As ideias são até atraentes; o visual, old school (e, como Avatar, Jones cita um punhado de fitas de ficção científica, de 2001 a Alien). Mas me incomoda a falta de domínio da narrativa, a dificuldade de traduzir as filosofices em situações vivas, fortes, singulares. Parece até que a trama está emperrada, embolada. E, se é assim, do que adianta uma trama supostamente complexa? Em matéria de clareza e fluência, ninguém tem muito a reclamar de James Cameron. E me parece um erro essa história de confundir ficção científica inteligente com ficção científica que, às custas da nossa paciência, se faz de inteligente. São duas coisas bem diferentes. De aparente simplicidade, o mundo de imagens criado em Avatar me parece mais autêntico.