Anos 80
2 ou 3 parágrafos | Super 8
Como se não bastasse tudo o que há de metalinguístico nesta história toda, talvez Super 8 tenha sido feito para mim. De verdade. Se existe uma plateia ideal para este filme, eu faço parte dela. J.J. Abrams (o diretor) e Mr. Steven Spielberg (o produtor) aparentemente criaram esta aventura com centenas, milhares de frames da minha infância. Foram grudando, umas às outras, as lembranças de um tempo que antecedeu o período em que o cinema se transformaria, para mim, numa espécie de obsessão. Se existe um documentário sobre a pré-história da minha cinefilia, é este.
Era o que eu via na tevê, era o que eu alugava em VHS: Os Goonies e Contatos imediatos, E.T. e Gremlins. Eu e meus amigos. Eu e meninos que eu nem conhecia. Super 8 soa como uma mixtape do cinema comercial juvenil dos anos 80: e, se é assim, como ignorar a grife produzida pelo “hitmaker” da ocasião? Um filme sobre/a-partir-de/para Spielberg, com a caligrafia meio torta que encontraríamos na confissão (tocante) de um espectador que chora quando vê as seleções de clipes do VH1. Os anos 80 enquanto estado de espírito (se é que vocês me entendem). E um olhar orgulhosamente infantil para o cinema (aliás, ele dá pano pra manga aos críticos que se dispuserem a tratá-lo como um filme-sobre-fazer-filmes).
Acredito sim que temos a assinatura de Abrams no projeto deste trem supersônico — tal como Spielberg, o homem fazia curtas em Super 8 quando pequeno, e o argumento do longa poderia ter sido imaginado por um menino de 10 anos, fã de quadrinhos e sci-fi. Inevitável, por isso, que este filme pareça falar diretamente a mim (e a uma parte grande da minha geração). Mas a programação visual retrô (e o esqueminha narrativo idem, com um mix de drama-família e bombardeio) aplicada por Abrams me deixa um pouco melancólico; acho que cresci. Quando o saudosismo me abandona, me sinto um tanto desamparado diante de um filmezinho tão choroso e eficiente (Syd Field ficaria orgulhoso), tão amável e inofensivo quanto um bom Spielberg. Talvez por essas eu evite rever os filmes que estão no top 10 dos meus oito anos de idade: são memórias que me desarmam, mas às vezes me matam de vergonha.
Os discos da minha vida (37)
Há uma semana, aconteceu algo especial neste ranking, mas perdi a cabeça e esqueci de avisar: chegamos ao top 30, meu povo! Top 30! Há 15 anos, quando começamos esta saga, quem imaginou que chegaríamos a este ponto? É um momento importante na história deste blog.
Diga aí: é ou não é? É ou não é?
Ok, NÃO é. Não é um momento importante. Afinal, este é apenas um ranking dos 100 discos da minha vida. Apenas uma lista cheia de idiossincrasias e escolhas duvidosas, tudo muito pessoal e sentimental. Ugh!
Apenas uma lista de álbuns que foram importantes para mim e provavelmente não surtiram o mesmo efeito na sua rotina, amigão. Apenas isso, apenas aquilo, apenas aquilo outro. Arg!
Bem, nas minhas andanças por São Paulo aprendi uma gíria que me agrada muito e que combina muito bom a fase atual deste blog: estar zuado. Há vários usos para o termo, que na maior parte das vezes tem conotação negativa. Por exemplo: hoje eu acordei todo zuado, ou o tempo está zuado, ou este é um disquinho muito zuado (sobre o novo do Strokes, por exemplo). Ou, na real: este blog anda extremamente zuado. Espero que as coisas melhorem em breve (também estou na torcida, acredite).
Lembrei da palavrinha porque um dos discos desta lista é apelidado com uma das gírias mais bacaninhas da língua portuguesa: transa. Que quer dizer uma série de coisas, com conotação geralmente positiva. Daqui para o fim desta lista você vai encontrar dois discos brasileiros, que são (obviamente) os discos brasileiros mais importantes da minha vida. O primeiro está aqui. O outro chega aparece mais.
Já o outro disco do dia chegou enfezado, foi se instalando, e praticamente ensinou tudo o que sei sobre indie rock (na época já chamavam de indie rock?). É o disco mais lindamente tosco que eu conheço, e você devia conhecê-lo.
Sem mais firulas, vamos à dupla desta segunda-feira azulada em Brasília, cinzenta em São Paulo e blue dentro do meu coraçãozinho cheio de saudades. Top 30 goes on.
028 | Transa | Caetano Veloso | 1972 | download
Na época do lançamento, Caetano rodou a baiana quando descobriu que, na confecção do encarte, esqueceram de incluir os nomes dos músicos que participaram das gravações. Injustiça gravíssima, de fato, já que este é o disco cuja sonoridade foi inventada em grupo e registrada como que para simular um ensaio livre e muito espontâneo, sem cronômetro ou prazos (um esquema que se repetiria em outros grandes álbuns dos anos 70, como Tábua de esmeralda, de Jorge Ben, e Ogum xangô, de Ben e Gil). Com Jards Macalé, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Sousa, Caetano finalmente atingiu um ponto de equilíbrio entre as ideias mui cerebrais (e quase intransitivas) dos discos anteriores e um formato mais solto, transitivo – e a (boa) impressão é de que às vezes o compositor se deixa perder dentro da onda sonora, como quem desce num longo mergulho. You don’t know me, ele avisou, submerso no transe londrino. E um cara rejuvenescido, menos controlado e mais satisfeito com a própria arte, parecia ter sido partejado ali. Top 3: You don’t know me, Nine out of ten, Triste Bahia.
027 | Zen arcade | Hüsker Dü | 1984 | download
O fã de Green Day que descobre este disco do Hüsker Dü pode ficar com a impressão de ter assistido a uma versão censura-12-anos para o teen movie mais desiludido de todos os tempos. Este é o mundo de Bob Mould, Grant Hart e Greg Norton: um álbum “conceitual”, na visão distorcida do grupo, é um disco duplo de 70 minutos de duração (e 23 faixas) sobre um moleque que, ao fugir de casa, descobre que o mundo lá fora é mais cruel ainda. “Algo que aprendi hoje:”, ele conta, logo na primeira faixa, “preto com branco dá sempre cinza”. E está explicado. No álbum, o Hüsker Dü experimentou com folk, jazz e psicodelia. Mas o som que nos maltrata é o de guitarras sempre muito secas, e de vocalistas que cantam como se a garagem estivesse sempre prestes a cair em centenas de pedaços. Um disco de rock que soa como um monumento feito de sucata, peças antigas, máquinas de pinball defeituosas, brinquedos velhos encontrados no quintal. E a infância chegando ao fim. Top 3: Something I learned today, Never talking to you again, Somewhere.
Depois do pulo, confira os discos que já apareceram neste ranking.
Os discos da minha vida (33)
Só por hoje, vou simplificar a equação. Os discos + Minha vida = Saga dos 100 discos da minha vida. Capítulo 33.
Facinho.
Sem pormenores, então. Que não tá fácil pra ninguém, a vida. Tenho uma montanha de livros para ler, muitos discos para ouvir, filmes para três vidas, séries de tevê que adormecem na dimensão dos desejos que não serão realizados. No meio tempo entre uma e outra coisa que não vou fazer, ainda tenho que aprender a fritar ovo e a talhar madeira. Hoje, o que me resta é escrever este post, esticar as pernas na cama e dormir. Que o tio aqui está pregado.
E ainda tem que peça pra eu escrever mais sobre cinema. Vocês, hem.
Os dois discos deste post são insubstituíveis. Caso contrário, não estariam entre os meus 40 favoritos de todos os tempos. Darei um jeito de encher uma caixa de papelão com os 40 disquinhos, daí vou carregar todos comigo para uma ilha deserta. Vamos ficar bem.
036 | Daydream nation | Sonic Youth | 1988 | download
Este é um dos raros discos de rock que a Biblioteca do Congresso, nos Estados Unidos, selecionou para efeitos de preservação. É justo. Mas imagino o que vai acontecer quando, daqui a 50 anos, um menino muito curioso, 12 anos de idade, se aventurar numa pesquisa sobre a música pop do fim do século 20 e esbarrar nisto aqui. Certeza: um tanto de susto será inevitável. Ainda mais se ele tiver crescido na companhia de bandas que se acostumaram ao conforto das escolhas óbvias, dos pequenos riscos, dos hits de efeito imediato e curta duração. O Sonic Youth de Daydream nation é um esporte inseguro: as longas jam sessions que deram origem ao disco transformam cada música em cruzamentos de pop e vanguarda, Jimi Hendrix e Joni Mitchell, Neil Young e Andy Warhol. O estilo da banda já estava criado, mas aqui ele é amplificado numa moldura monumental. Para museus de arte contemporânea, garagens encardidas e afins. Top 3: Teen age riot, Providence, Silver rocket.
035 | What’s going on | Marvin Gaye | 1971 | download
What’s going on é soul music naquilo que, a partir dos anos 70, o gênero teria de essencial: um homem perplexo diante do mundo. Depois de se tornar uma das vozes mais populares da Motown, Gaye ignorou as obrigações do pop-para-rádios para compor um disco que pode ser “lido” como uma carta aberta, uma crônica pessoal sobre o início dos anos 1970. O personagem principal – um veterano que retorna do Vietnã e encontra um país despedaçado – era um reflexo do cantor, perdido numa década que não prometia ilusões. A pergunta que guia o álbum ecoava, por isso, com o poder de um emblema: “O que está acontecendo?”. Ainda ecoa, aliás. Hoje, pode não ser fácil a identificação com versos que comentavam um período histórico muito específico. Mas o sentimento de inadequação que transborda nessas canções é universal, eterno, e continua a nos emocionar. Top 3: Mercy mercy me, What’s going on, Inner City blues.
Angles | The Strokes
Quem me conhece sabe que meu filme favorito é Um corpo que cai, do Hitchcock. Que prefiro Godard a Truffaut. Que não consigo entender por que vi Presságio quatro vezes no cinema (apesar de gostar de Hitchcock, Godard e Truffaut). E que o Strokes, não estou mentindo, é uma das minhas bandas preferidas entre todas as que começaram a lançar discos de 2000 para cá.
Sobre minha admiração pelo quinteto, (acho que) sei explicar. Outro dia, fiz um parágrafo – daqueles bem irresponsáveis — sobre Is this it (2001) para o ranking dos 100 discos da minha vida. Lá pelas tantas, escrevi o seguinte:
“Com o passar do tempo, ficou até um tanto embaraçoso explicar por que este álbum tão sucinto, um resumo do pós-punk de Nova York (numa coleção de singles de dois, três minutos de duração) foi acolhido como um marco. Mas talvez devamos tomá-lo como o sintoma de um período muito específico – o início do século, o começo dos anos 00. Com o placar zerado, o Strokes entrou em cena como um bando de pioneiros. Estilosos, irônicos, ridículos. Nos tomaram pelo braço. E com eles nós dançamos como se fosse a primeira noite.”
Hoje, apesar da minha má vontade com o novo disco da banda, eu não reescreveria esse texto. Ele resume, mesmo de uma forma meio desastrada e cheia de floreios, as minhas impressões sobre o Strokes. É uma banda de rock muito talentosa e competente que, graças aos poderes do timing, virou ícone.
Sem exagero: quem ouve os dois primeiros discos do Strokes, queira ou não (ame ou odeie), é conduzido à porta de entrada dos anos 2000. De alguma forma, sabe-se lá como, eles nos levam até lá. É como ouvir Nirvana, e ser atirado aos anos 90. Ou ser devorado pelos anos 80 (mesmo sem ter vivido a década) ao ouvir uma canção dos Smiths. São bandas que nos situam em determinados momentos, fases (arbitrárias, é claro) da história do pop e das nossas trajetórias tão pessoais.
Mas a importância do Strokes não anula ou compensa as fragilidades da banda – que nunca foram invisíveis para ninguém.
Até o segundo disco, quando Julian Casablancas pensava primeiro nos singles e depois nos álbuns, eles produziram coletâneas quase perfeitas. Não conheço quem questione o talento do sujeito para criar hits fulminantes, que nos conquistam à queima-roupa. Sei de DJs que criaram sets inteiros só com o repertório de Is this it e Room on fire. Na pista, ninguém reclamou.
Algo mudou no terceiro disco, First impressions of Earth (2006), e às vezes desconfio que ali nasceu uma outra banda. Mais ou menos como o Oasis de Standing on the shoulder of giants, o Strokes mudou o sistema de governo – de monarquia (do príncipe Casablancas) a uma espécie de parlamentarismo (todos os integrantes da banda passaram a ter mais poderes). E, mais ou menos como o Blur de 1997, resolveu arriscar, ampliar o cercadinho, desafiar as expectativas dos fãs.
Esse desejo de ir além (e desculpe se soa brega, mas soa brega) aparece já na letra do primeiro single do disco novo, Under cover of darkness: “Todo mundo está cantando a mesma canção há 10 anos”, diz Casablancas. Mas soa como ironia (e uma boa ironia), já que a música é uma das poucas do disco que reprisam o modelo das primeiras faixas do grupo, como Someday e Last nite. Escritas, claro, há 10 anos.
É um single que nos deixa um tanto nostálgicos. Precocemente nostálgicos. Como nos bons tempos, Casablancas segue agonizando na pista, gemendo feito um menino que acabou de perder os dentes de leite: “Não vá por esse caminho. Eu vou esperar por você”, diz. O efeito do single, porém, não é de catarse. Soa um tanto cínico, na verdade. Como se a banda soubesse exatamente os botões que deve apertar para mimar os fãs.
O restante do disco, com poucas exceções, não vai por esse caminho. Casablancas ainda não encontra satisfação (e tome pensamentos vagos como “não quero te contar nada”, “você vai esperar por mim também?”, “alguém está sempre atrasado”, “não tente nos parar”, “eu queria contar que está melhor, mas que sentido faz?), mas a banda parece disposta finalmente a gravar um ÁLBUM (em maiúsculas) tão poderoso quanto os hits que coleciona desde sempre. E, literalmente, anguloso.
Não é simples como parece. Ainda que o discurso de Casablancas tenha um quê de Kurt Cobain (as frases são curtas, vomitadas, desesperadas), a sonoridade do grupo está mais para Ramones do que para Radiohead. Explico: o estilo do Strokes é inconfundível, mas ele tem limites muito claros, é até estreito. Não é uma banda de mutações radicais, mas que se sente mais confortável quando faz movimentos repetitivos com uma ou outra transformação sutil.
Desde First impressions of Earth, o que ouço é Ramones tentando agir como Radiohead. Soa, no mínimo, frustrante. Principalmente porque, ao contrário de bandas que se contentam com pouco, os Strokes estão tentando, estão olhando para frente, estão jogando um jogo que deveria nos entusiasmar. Amamos as bandas que rejeitam a repetição oportunista, certo? No caso do Strokes, até eu começo a perguntar se não seria melhor depurar a fórmula (em vez de se aventurar por aí).
Em tese, Angles é o disco mais arriscado da banda, o mais corajoso. Na prática, porém, é desconjuntado e um pouco melancólico – talvez como reflexo de uma gravação tumultuada, cheia de desencontros. Não acho agradável assistir a um acidente desses: cada faixa apresenta pelo menos três boas ideias que, após muito sofrimento, morrem na areia. É uma tragédia ambiental, praticamente.
Two kinds of happiness, por exemplo, começa com os ares de pop eletrônico de Ibiza, mas logo esbarra num refrão que, de tão óbvio, maltrata a alma. Metabolism, a pior do disco, já rende comparações com Muse – mas soa como um cruzamento deprimente entre heavy metal e Interpol.
You’re so right também deixa a sensação de mal estar provocada por uma fita de tortura à la Jogos mortais: não há beleza ou graça nesses riffs mecânicos, desalmados. Não vejo prazer nessas canções. Nem a agonia que nos remeteria, digamos, a um Joy Division. São esboços de canções (e não noto canções que foram escritas para soar fragmentadas, despedaçadas, como é o caso do Radiohead).
Muito se falou sobre o tom oitentista do disco, mas existe algo diferente aqui: as referências dos Strokes não indicam uma pesquisa de sons ou um interesse específico por alguma fase da música pop, e sim um esforço frio de agregar ao som da banda uma série de elementos que hoje são considerados “in”: os sintetizadores datados do MGMT e do Crystal Castles, os riffs adoçados do Phoenix, a eletrônica delirante e leve de um Delorean e tudo o mais que eles descrevem como “música do futuro”. Soa como um disco de garage rock produzido por um menino que passou muito tempo lendo a Pitchfork.
O que não seria um problema (nada errado com a Pitchfork!) se o Strokes fizesse justiça a ambições que, infelizmente, pairam muito acima das capacidades da banda. Às vezes as coisas são simples assim: há os ídolos que, a cada disco, miram (e acertam) um planeta diferente. Já o Strokes se sente pesado, um outsider, sempre que ameaça decolar.
Quando tentam abandonar a bela cidadezinha onde vivem, eles perdem o caminho de volta. Nos deixam dançando na pista – desta vez, solitários.
Quarto disco do Strokes. 10 faixas, com produção da própria banda e de Joe Chicarelli. Lançamento RCA. 4/10
Kiss each other clean | Iron & Wine
Eis a reviravolta mais chocante deste estranho início de 2011: as vidas do Iron & Wine e do Decemberists, que habitavam cidadezinhas americanas tão distantes uma da outra, acabaram se cruzando.
A terra de Samuel Beam, que atende por Iron & Wine, era silenciosa, menos de mil habitantes, arejada por uma brisa morna e delimitada por árvores amareladas. Um outono sem fim. Muitos motivos para ficar em casa, amparado no violão, sussurrando ao gravador.
Já o lar de Colin Meloy, o macho-alfa do Decemberists, era extravagante de uma forma um tanto decadente, cenário desgastado de um musical dos anos 1950. Os moradores usavam roupas de outras épocas e desfilavam em carros grandões, démodé. Toda semana, tios e tias dançavam no baile da primavera.
Resumindo, sem encenações esdrúxulas: há cinco ou seis anos, o Iron & Wine nos obrigava a apertar o fone de ouvido para captar cada detalhe de um estilo sutil, introvertido. Já o Decemberists se tornava cada vez mais barroco, perdendo as estribeiras disco a disco.
A novidade é que, em 2011, ambos se mudaram para o Sul. São vizinhos num bairro “família”, confortabilíssimo, onde os tiozinhos abrem as janelas e regam jardins enquanto escutam os greatest oldies de uma juventude que acabou nos anos 1980.
Os famosos da comunidade lançaram discos que podem até não compartilhar as principais referências, mas inspiram a imagem de um entardecer desbotado, capturado por uma câmera fotográfica antiga. Em película. São álbuns que nos acolhem, nos afagam, nos convidam para jantar e nos recebem com uma fatia de bolo de chocolate.
Samuel comentou que, em Kiss each other clean, a intenção é sintonizar o climão aveludado, melodioso, dos primeiros hits de Elton John. Estamos no início dos anos 1970, pois bem. Já Meloy, nos comentários sobre The king is dead, apontou para o período de formação do R.E.M. Início dos 1980. A primeira coincidência aparece aí: são lançamentos que tentam recuperar o frescor, a inocência, o otimismo dos Primeiros Discos.
As semelhanças ficam ainda mais claras nas estruturas das canções, que, nos dois casos, optam por formas simples, cores primárias, como se tentassem reproduzir (e amaciar, atualizar) o que há de mais básico no folk: são canções que sobrevivem porque assimiladas e amadas pelas pessoas, que as armazenam na memória e as presenteiam naturalmente aos filhos e netos. Canções de domínio público.
As duas bandas usam estratégias quase opostas para cumprir esse objetivo. Em The king is dead, o Decemberists se despiu do figurino rococó e trocou o romantismo pelo bucolismo. Em Kiss each other clean, o Iron & Wine acrescentou sacarose pop — e saxofones brejeiros à soft rock que deixariam Dan Bejar, do Destroyer, muito orgulhoso — a um estilo antes esquelético. É uma transformação que começou no anterior, The shepherd’s dog (2007), mas que agora finalmente desabrocha.
São transformações cujos resultados querem provocar quase o mesmo tipo de efeito: são discos arredondados, galantes, e elegantemente antiquados, e devem soar especialmente bonitos quando em vinil ou jukeboxes. Como se cobrassem do indie rock de 2010-2011 um pouco mais de formosura.
Difícil não sorrir para eles.
Só percebo que, enquanto o Decemberists aplica esse corante a uma superfície fina (é um disco de beleza unidimensional, que vai perdendo densidade quanto mais voltamos a ele), o Iron & Wine trata essas intenções todas de uma forma mais profunda, e Samuel deixa a impressão de que passou anos e mais anos refletindo sobre as estruturas dessas canções. Cada faixa do disco soa como o trabalho de um mês. Páginas escritas e depois reescritas.
É um disco que se impõe refrão a refrão, palavra a palavra, com a segurança e a concisão que encontramos em álbuns como The greatest, da Cat Power, ou The reminder, da Feist.
É, sobretudo, um disquinho muito bem editado. Não é longo (tem apenas 10 faixas), mas abre frestas para um ambiente amplo, de muitos cenários e possibilidades. Visita, sem vergonha, a singeleza indie de um The Shins (Walking far from home), a precisão de uma velha canção da Tin Pan Alley (Half moon) e brincadeiras psicodélicas que lembram a fantástica fábrica de Jon Brion (os barulhinhos fofos de Monkeys uptown).
E é um álbum que não se cansa nunca, que parece sentir prazer com a mudança que operou. Um temperamento de criança diante de brinquedo novo. Na penúltima faixa, Glad man singing, toma um desvio e paquera as baladas inglesas pomposas do The Verve, do Stone Roses. Nem parece que estamos na cidade, no mesmo país de onde essas canções partiram.
A unidade do disco, no entanto, está na leveza. O Iron & Wine já lançou projetos mais desafiadores, que nos conquistam quando estamos prestes a abandoná-los. Os mais desconfiados podem acusar a influência da Warner, a grande gravadora que controla a tesouraria do álbum (já o Decemberists lança pela Capitol; dois ex-indies). Mas essa não é a praia de Kiss each other clean. Estamos falando de um disco pop que prefere o coração ao cérebro, que se entregam no primeiro encontro. Sorvete vermelho derretendo.
Quando ouço logo depois do álbum do Decemberists, soa como o início de um movimento. Um ato de protesto. A favor das canções agradáveis. Contra os garotos cínicos da classe.
Quarto disco do Iron & Wine. 10 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Warner Bros. 8/10
Os discos da minha vida (24)
Neste episódio da saga dos 100 discos que atazanaram a minha vida, meu voto é pela economia de parágrafos: vocês sabem como são as regras deste jogo, vocês sabem que as regras deste jogo são muito subjetivas, vocês sabem que este ranking não segue uma lógica muito clara e vocês sabem que somos grãos de areia num universo grandalhão e infinitamente misterioso.
Resumindo: a falta de sentido tem o seu encanto.
Só preciso lembrar-lhes, antes de partir para os álbuns da semana (extraordinários, juro), que é o grande lance desta série interminável de post é clicar naquela palavrinha sublinhada em azul e fazer o download de discos que deixarão a sua discoteca muito parecida com a minha. Não sei se há vantagem nisso, mas fico feliz com a ideia.
054 | Murmur | R.E.M. | 1983 | download
O primeiro LP do R.E.M. ainda soa a expressão mais cristalina da banda. As melodias vêm carregadas de uma intensidade quase bruta, que contrasta com uma poesia sempre engenhosa, enigmática. Uma tipo sofisticado de rusticidade que muitos tentaram copiar, mas cujo efeitos poucos conseguiram reproduzir (a tentativa mais recente: The king is dead, do Decemberists). Nos álbuns seguintes, o R.E.M. se tornaria mais “inconsequente” – com resultados às vezes deslumbrantes, mas sem essa dedicação obsessiva a uma ideia musical. Uma das obras-primas dos anos 80, Murmur retrata uma juventude precocemente madura – uma banda apaixonada por um estilo que soava simultaneamente novo e clássico, original e velho. E a história estava só no começo. Top 3: Talk about the passion, Pilgrimage, Sitting still.
053 | Parklife | Blur | 1994 | download
Um álbum pop que soa como um daqueles livros infantis que tentam nos surpreender a cada dobradura: se o rock britânico dos anos 90 precisava de monumento, encontrou neste playground do Blur. Mais grandioso que isso: neste voo panorâmico sobre a ilha, Damon Albarn usa os standards do pop inglês à serviço de uma longa crônica sobre a vida de meninos e meninas anônimos que se aprontam para o feriado, sonham com a América, temem a velhice, sofrem de amor e caminham em ruas enevoadas. Pessoas comuns (so many people!) – cujas histórias são narradas com o misto de euforia e melancolia, excitação e a certeza dolorida de que, apesar dos pequenos prazeres que provoca, o cotidiano não vai mudar. Top 3: To the end, End of a century, Parklife.
Os discos da minha vida (20)
Semana delicadíssima para a saga dos 100 discos que estouraram o champanhe da minha vida: entre as festas de Natal e ano-novo, muita gente bronzeada está tirando férias, viajando, curtindo a praia, desligando computadores, afogando pen-drives e respirando ar puro. O que é triste: este blog, que costuma receber cinco ou seis visitas diárias, já se sente muito só.
Os que saíram pra curtir a vida vão perder um capítulo especialmente inspirado desta série interminável de posts. Vale por um dia inteiro de sol, mate leão e sanduíche natural (ok, não vale tudo isso, mas vamos fazer de conta que sim).
Por coincidência (e tudo aqui é mera coincidência, reparem), dois discos que me pegaram mais ou menos na mesma época, quando eu era um garoto de 14 anos que amava os Simpsons e a revista Rolling Stone.
Sim, eu vestia camisas de flanela meio pobretonas, adquiridas na C&A. Mas as coisas não eram tão estereotipadas assim (e o outro disco do post mostra que havia algo de complexo naquele tempo bom que não volta nunca mais).
062 | In utero | Nirvana | 1993 | download
A primeira audição foi um terremoto. Minha irmã trancou a porta do quarto, minha mãe avisou que eu estava passando dos limites e meu padrasto me chamou para uma conversinha. Eu mesmo demorei para sobreviver a um disco que soava como uma cirurgia dentária (sem anestesia). Era uma época em que as bandas de rock disputavam para ver quem gravaria o álbum mais enfezado. Kurt Cobain, mais uma vez, venceu. In utero registra com secura (saudades de você, Steve Albini!) o pessimismo dos depressivos, a agonia dos suicidas, a aflição dos obsessivos. Síndromes de uma geração. “A fúria adolescente rendeu muito bem, agora estou entediado e velho”, Cobain admitiu, aos 26. Era como nos sentíamos: velhos, e cedo demais. Top 3: Heart-shaped box, Serve the servants, Pennyroyal tea.
061 | Paul’s boutique | Beastie Boys | 1989 | download
O disco que adaptou o Beastie Boys aos anos 90 (Check your heads, de 1992) me levou a este álbum de 1989 que é, talvez sem chance de discussão, o manifesto do trio por uma colagem pop sem freios ou vergonha na cara. O medley final, B-boy Bouillabaisse, cria uma conexão entre o hip-hop dos anos 1980 e o lado B de Abbey Road, dos Beatles. Por que não? Produzido sem os padrões de polidez da época (saudades de vocês, Dust Brothers!), o disco é uma confusão de samplers e hinos adolescentes que primeiro nos sufoca e depois nos deslumbra. Uma prévia para Odelay, do Beck, e para todos os outros discos pop dos anos 1990 e 2000 que fizeram da reciclagem (e do contrabando de ideias) uma arte. Top 3: Hey ladies, Shake your rump, Shadrach.
Superoito express (31)
Grinderman 2 | Grinderman | 8
Ouvi este disco enquanto eu lia o livro A morte de Bunny Munro, de Nick Cave, e admito que até confundo um com o outro. O personagem do romance é um vendedor de cosméticos mulherengo, amoral, que sofre uma crise terrível após a morte da esposa — começa a sofrer todo tipo de alucinação, cai no caldeirão da culpa, ainda que não consiga se livrar dos vícios que sempre amou. Cave acompanha esse homem de meia-idade (quase-morto) como se escrevesse um roteiro para Jim Jarmusch, com uma lente distanciada, um tanto irônica e sacana, porém cúmplice. Impossível não encontrar esse anti-herói em Grinderman 2.
Acredito até que, na banda, Cave se sente ainda mais livre para exercitar esse talento de ficcionista. Mais ainda do que nos discos do Bad Seeds, ele cria um ambiente bolorento, decadente, com atmosfera de filme B (um noir de quinta categoria, digamos), onde os personagens se movimentam. Nesse ponto, é um disco ainda mais cinematográfico do que a estreia do Grinderman: as faixas são longas e “desarrumadas” o suficiente para evocar imagens de estradas vazias, madrugadas que cheiram a enxofre, quartos de hotéis com teias de aranhas — cenas de crimes. O disco soa até como o “produto final”, criado a partir do livro (que seria o roteiro). É o “filme” de Cave. E um filme que nos entretém e nos maltrata a um só tempo.
Business casual | Chromeo | 7
Aviso: a primeira audição deste disco pode ser absolutamente frustrante para quem conhece projetos como o Les Rhythmes Digitales (de Stuart Price) — que, há mais de 10 anos, já contrabandeava o electropop mais artificial dos anos 1980 com essa mesma dosagem de afeto e humor. A impressão é de que o Chromeo chega tarde, perde o timing da piada — e o pior é que todas as faixas do álbum respeitam exageradamente os limites que a dupla criou para um estilo que não tem nada de extraordinário. Dá uma certa preguiça de ver onde essa história vai dar. Mas, para minha surpresa, ela não é casinho de uma noite só: sob a aparência, os canadenses escrevem canções duráveis, verdadeiras e, nesse ponto, eles acabam lembrando o Phoenix pré-It’s never been like that (principalmente de Alphabetical, um disquinho subestimado de que gosto muito). Uma faixa como Don’t walk away, por exemplo, não deve ser levada como brincadeira: é compromisso, e vai durar.
Crush | Abe Vigoda | 6.5
O Abe Vigoda vem da mesma cena californiana de noise e pós-punk que revelou o No Age. Mas, enquanto o No Age tenta alternar zoeira e doçura num modelo que lembra os discos lançados pela Sub Pop no fim dos anos 1980 (e o novo, Everything in between, vai equilibrando esses dois traços sem muitos sustos), os colegas acabaram fazendo um disco também bipolar, mas de uma forma totalmente diferente. Crush é claramente um disco de transição — em parte, a banda experimenta com sintetizadores secos, duros, à Joy Division; em outra parte, fazem o feijão-com-arroz lo-fi, com orgulho de ser tosco. Essa indecisão soa espontânea, mas também dá uma ideia de desleixo que não combina muito com os novos rumos que eles estão tomando.
Wilderness heart | Black Mountain | 6.5
Por falar em bipolaridade… O Black Mountain passa por um conflito ainda mais complicado, já que os canadenses tentam crescer e aparecer, sem se virar um Kings of Leon. O equilíbrio é dificílimo, e eles ainda não o encontraram (procuram desde o anterior, In the future). O triste é que eles são competentes no que fazem, entendem muito bem alguns símbolos do rock psicodélico dos anos setenta (a faixa Radiant hearts, uma balada de quebrar corações, mataria o Robert Plant de orgulho), mas não conseguem vencer a impressão de que eles ocupam uma espécie de segunda divisão do indie rock, talvez reverentes demais aos ídolos. Acaba que não faz muita diferença ouvir este disco ou qualquer outro lançado nos anos 1970 por bandas que sumiram na sombra de um Neil Young, de um Greatful Dead. Mas, apesar disso tudo, está longe de ser um disco medíocre.
PS: A mixtape de setembro, que me orgulha muito, chega nesta quinta-feira, dia 30, um pouco mais cedo do que o habitual. Entre 18h e 19h. Espero vocês, ok?
Phrazes for the young | Julian Casablancas
Se depender das listas de melhores discos da década que foram publicadas até agora, deveríamos chegar à seguinte conclusão: por acidente ou mágica, o Strokes concebeu um dos maiores álbuns dos últimos dez anos (a estreia, Is this it, de 2001) e, logo em seguida, provou ser uma banda de rock menos interessante do que imaginávamos. Em resumo: eles nos desapontaram. E, sem fôlego ou talento (ou ambos), acabaram pisoteados por contemporâneos como White Stripes e Yeah Yeah Yeahs.
É exatamente este o problema das listas de melhores: elas simplificam tudo.
A história, obviamente, não aconteceu dessa forma – ainda que possamos, e com razão, entender a saga dos Strokes como uma canção que começou em tom maior e, depois do primeiro refrão explosivo, acabou se desenrolando com alguma melancolia. Mas quem se prende ao impacto de Is this it perde uma parte dramática dessa trama: a partir do segundo álbum, os nova-iorquinos ressaltaram o tom confessional, dolorido, de um estilo que, até então, escondia essa carga de amargura e desespero sob camadas de (brilhantes) artifícios. A armadura cedeu.
Preste atenção sobretudo a Room on fire, de 2003, o segundo disco: é ali que o Strokes descobre em Julian Casablancas um band leader disposto a comparilhar angústia. O álbum abre com os versos “I wanna be forgotten, and I don’t want to be reminded” (“Eu quero ser esquecido, e não quero ser lembrado”), de What ever happened, e fecha com uma faixa intitulada I can’t win (Eu não posso vencer). Algo andava errado com Julian, mas estávamos todos entretidos demais para notar.
O disco seguinte, First impressions of Earth (2006), que soava como um esforço conjunto, amenizou a turbulência emocional do vocalista. Mas a crise criativa se fez mais audível que nunca num disco disforme, excessivamente longo, que lutou contra os limites da própria banda e perdeu a briga. Não é de se admirar que Julian tenha ficado em silêncio nos três anos seguintes, enquanto o guitarrista Albert Hammond Jr gravava dois trabalhos que, no máximo, provavam que era ele o autor de muitos dos riffs econômicos e afiados da banda. Mas e a alma do Strokes? A força vital que fazia da banda uma máquina dançante e agoniada? Rodrigo Amarante que me perdoe, mas não a encontramos em nenhum lugar.
É assim que finalmente chegamos a Phrazes for the young, um exercício de tentativa-e-erro que, apesar de todos os deslizes, mostra didaticamente a importância de Julian para o Strokes. Lembro que, no primeiro álbum da banda, muitos tratavam o vocalista como um garoto-propaganda, um poser bem-nascido que cumpria preguiçosamente o papel de frontman. Nada mais equivocado. No primeiro disco solo, ele não apenas demonstra um tipo raro de inquietação criativa (e acaba atirando para todos os lados, sem dó) como comprova que, sem ele, o Strokes seria uma banda estilosa, cool e divertidíssima, mas sem coração.
O disco abre, talvez para nos convencer disso, com uma faixa que parece dar sequência à fúria autodepreciativa de Room on fire: Out of the blue começa com o verso “Somewhere along the way, my hopefulness turned to sadness” (“Em algum ponto do caminho, minha esperança se transformou em tristeza”), o que soa, no mínimo, sintomático. A canção desce gloriosamente a ladeira com um misto de orgulho ferido, empáfia e franqueza. “É isso o que acontece com a maior parte das pessoas no mundo”, ele conta. Um príncipe caído. No final do disco, Julian diz sentir-se um turista em qualquer lugar onde vá. Não sei o que vocês pensam sobre isso, mas eu entendo. E é triste.
Acredito que poucos tenham se preocupado com as letras das canções gravadas pelos Strokes, daí a dificuldade de entender que elas carregavam um subtexto sombrio – eram, quando não se metiam em caminhos impressionistas, retratos de um certo desencanto com a idade adulta. O disco de Julian explicita essa sensação. “Estou a caminho de algum lugar. À esquerda e à direita no escuro”, admite, em Left and right in the dark.
Não é desta vez, no entanto, que Julian gravou um Blood on the tracks. A sonoridade que acompanha as letras é quase sempre luminosa, decalcada descaradamente de pop rock oitentista (o início de 11th dimension, por exemplo, lembra Van Halen) e com frufrus musicais que lembram luzes pisca-pisca, chamando repetidamente a nossa atenção para os efeitos especiais. Musicalmente, Julian parece ter desenhado o álbum como um antídoto aos discos do Strokes: as faixas são longas e rebuscadas, o tom é de experimentação (o miolo do disco é country rock desajeitado, talvez cortesia de Mike Mogis, do Bright Eyes, que colaborou na produção) e há até algumas bizarrices eletrônicas que lembram o Thom Yorke de The eraser (River of brakelights é o parente mais próximo), com loops repetitivos no lugar dos acordes de guitarra.
No fim da aventura (que, para o meu gosto, soa mais vibrante que o terceiro disco do Strokes), ficamos com um perfil contraditório de Julian: quando lemos os versos, encontramos a ressaca de um ídolo; se paramos de prestar atenção neles, ouvimos um disco tão hiperativo quanto o mais recente do The Killers. É isso e não é. A ambiguidade e a coragem de Julian fazem deste um álbum para colocarmos naquela prateleira quase vazia dos projetos solo que não se contentam com qualquer rascunho. É um disco completo, inteiro.
Podemos confiar em Julian. E, pelo menos aqui, ele nos deixa com a impressão de que o melhor está por vir.
Primeiro álbum solo de Julian Casablancas. 8 faixas, com produção de Jason Lader. Rough Trade/RCA. 7.5/10
La Roux | La Roux
Dizem que não devemos avaliar discos quando estamos nos sentindo miseráveis e agoniados. Pois bem: estou triste (muito triste) e irritado (mais ou menos irritado, dependendo do momento do dia), mas algo acontece quando ouço os discos do La Roux e do Little Boots. Se entendo o meu corpo direito, eles provocam reações físicas: apertam minha barriga até quase me levar às lágrimas e depois me confortam com teclados iluminados, melodias antidepressivas e refrãos com sabor de xarope de morango. É como se nada, absolutamente nada estivesse por um fio. Ainda que esteja.
São tempos difíceis, meus amigos.
Mas vamos aos discos, que eles curam: o primeiro, aviso logo, é superior ao segundo. La Roux é uma dupla de electropop da Inglaterra com uma fixação por hits dos anos 1980 – de Yazoo a The Human League (passando por figurões como Prince e Depeche Mode), eles devoram tudo o que era lixo e hoje é um luxo. Num sistema solar habitado por Phoenix e Cut Copy, não é um flashback exatamente inusitado (e este não é um grande álbum). Mas limitar a banda a essa referência é muito pouco, é uma besteirada, já que existe um mulherão deitado nessa cama sonora. E ela se chama Elly Jackson.
Bem Langmaid, o produtor e compositor do La Roux, é o principal responsável pelo som retrô-chic, bem-humorado da dupla (que, nos trechos mais inspirados, lembra os hits mais irônicos do Daft Punk e alguma coisa de Air, Miss Kittin e Annie). Mas é Elly Jackson, a fã de Carole King e Nick Drake, quem tira esse estilo do quarto de brinquedos e infla os acordes de angústia – e aí é sangue mesmo, não é mertiolate (e Karen O tem muito a invejar, no caso). É ela, e só ela, quem faz desse o disco de dance music uma pilha de nervos – e um dos lançamentos mais interessantes do ano com o selo de uma grande gravadora (se bem que há pouquíssimos concorrentes nesse nicho).
O álbum narra uma saga extremamente banal (por isso real) de inseguranças, neuras, algumas alegrias e pequenos desastres amorosos – daqueles que vivemos de vez em quando, mas machucam feito gastrite. “Pontos finais e pontos de exclamação. Minhas palavras derrapam antes que eu tente começar”, ela avisa logo na primeira faixa, In for the kill (e, mais adiante, diz que está nessa “só pelo frio na barriga”). Em Colourless colour, a melhor do álbum, ela lembra dos anos 1990 como um deserto existencial. “Queríamos nos divertir, mas não havia nada mais para brincar”, lembra. E continua: “Quero fugir para sentir o sol na minha pele”. Uma canção tão descartável deveria soar tão verdadeira?
E Cover my eyes é diário de adolescente, tolinho que só: “Quando eu te vejo andando com ela tenho que cobrir meus olhos. Toda vez que você sai com ela, algo dentro de mim morre”, Elly canta. E, entre teclados à Strangelove, é logo acompanhada por um coro de crianças que encontraríamos numa baladona do Michael Jackson à época de Dangerous. Só ouvindo.
Little Boots não soa tão excitante, ainda que também provoque o efeito de um analgésico. O projeto de Victoria Hesketh (outra britânica, outra mulher à beira de um colapso) peca pela afobação: o álbum de estréia, Hands, é desnecessariamente superproduzido (faz a estréia do La Roux parecer um ensaio sobre o minimalismo). São nove produtores (!) – mãos para todo lado. Fica até difícil enxergar uma linha narrativa no álbum, que oscila do electro ao hip hop norte-americano de FM, já que cada canção parece esgotar totalmente suas possibilidades, deixando o espaço aberto para a próxima aventura. Ainda assim, não entendo o disco como um desastre (se isso é um desastre, o que é Lady Gaga?), mas sim como um esforço descontrolado de provocar uma boa impressão.
Uma bobagem. Mas não qualquer bobagem. E vá por mim: experimente nos piores dias.
Créditos
La Roux | La Roux (Polydor, 2009) 7.5
Hands | Little Boots (Atlantic, 2009) 6