Ani DiFranco

Hadestown | Anaïs Mitchell

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Não sei se vocês perceberam, mas tenho um fraco por discos que miram ridiculamente alto, que apostam tudo o que possuem, que querem fincar bandeiras na lua. Em alguns casos, me esforço para não gostar deles por antecipação, antes de ouvi-los. Bons ou maus, têm a minha torcida.

Hadestown, o quarto álbum de Anaïs Mitchell, é dessa casta. Loucamente ambicioso. Talvez ambicioso demais. Você começa a ouvir e, 60 minutos depois, conclui: alguém deveria pendurá-lo numa das galerias da Pinacoteca.

Um álbum “de arte”, pois.

Em 20 canções interligadas, a cantora folk de Vermont convida amigos do metiê para interpretar uma recriação do mito de Orfeu e Eurídice, transferido para a Grande Depressão norte-americana. Mitchell é Eurídice, Justin Vernon (o Bon Iver) faz as vezes de Orfeu, Ben Knox Miller (The Low Anthem) incorpora Hermes e, por fim, Greg Brown e Ani DiFranco vivem Hades e Perséfone.

Felizmente, Cacá Diegues não foi convidado para produzir.

Quem assistiu às estripulias de Toni Garrido, aliás, sabe o que esperar da trama: paixão e tragédia, em resumo. E uma descida ao reino dos mortos. O disco oferece uma série de referências obscuras para quem se dispõe a destrinchar o mito. Mas a trabalheira não é obrigatória. Já que, como nos melhores álbuns “conceituais”, este também funciona muito bem sem referências bibliográficas ou manual de instruções.

Uma primeira audição, é claro, pode intimidar os desavisados. Mitchell usa o mote da Grande Depressão para pesquisar a música americana dos anos 1920, o que resulta num álbum que encena o mito grego com elementos de jazz, blues e country. Se fosse um filme, seria muito parecido com E aí, meu irmão, cadê você?, dos irmãos Coen. Um curto-circuito histórico-literário-mitológico.

Generosa, Mitchell (a atriz/diretora/roteirista do projeto) permite que os coadjuvantes apareçam em solos às vezes mais grandiosos do que a interpretação da moça. Os convidados cumprem uma função importante: eles ressaltam o quão elástico é o talento de Mitchell para a composição. Há faixas que soam como as peraltices de Tom Waits. Outras lembram as confissões mais pastorais de Joan Baez. Outras remetem aos “song cycles” de Van Dyke Parks.

E, se os agudos de Mitchell lembram de imediato Joanna Newsom (e a competição é dureza), as melodias e os arranjos vão numa outra direção, mais teatral. Cada música tenta capturar um momento na trama que é narrada, daí o frenesi de Papers (Hades finds out) e o bucolismo de Flowers (Eurydices song). A segunda metade do álbum é mais pesarosa que a primeira — em matéria de dramaturgia, tudo faz sentido, há começo, meio e fim.

O mais interessante do disco é que, quando esse historinha começa a evaporar (lá pela terceira audição), a maior parte das canções (não todas) vão se despregando umas das outras e soar como peças independentes, sobre sentimentos até muito comuns, ornamentadas com arranjos de cordas que caíram do céu (Michael Chorney, um gênio). Canções de amor e agonia.

E são faixas de temperamento forte — como Way down Hadestown, When the chips are down e Why we build a wall — que nos fazem retornar a este disco mesmo quando a narrativa deixa de nos deslumbrar. É por isso que o disco fica conosco: algumas cenas são mais duradouras e bonitas do que a ideia, o “conceito” da obra.

Se preferir, portanto, não tenha vergonha de encará-lo como um disco de música pop (mas admita: a depender dos esforços da curadoria e do estado de espírito do visitante, um passeio na Pinacoteca pode ser muito agradável).

Terceiro disco de Anais Mitchell. 20 faixas, com produção de Todd Sickafoose. Lançamento Righteous Babe Records. 8/10