Álbum triplo

Superoito express (29)

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Pilot talk | Curren$y | 8

O hip-hop nos acostumou a esperar por discos sempre maiores, melhores e, principalmente, mais ousados. Este Pilot talk chega depois de um álbum que cumpre muito bem esses requisitos – o do Big Boi -, e não haveria momento mais adequado. A estreia de Shante Anthony Franklin não tão grande, nem tão bom, nem tão atrevido. Mas é praticamente um tratado sobre uma habilidade essencial para o gênero: flow. Fluência. É um disco que se movimenta como uma máquina tão potente, tão elegante, que quase não faz barulho. Soa tranquilo. Uma pluma.

Mais que isso: soa seguro. Shante chegou ao primeiro disco depois de uma longa viagem pelas paragens das mixtapes – e tudo o que ele aprendeu está condensado nesses 40 minutos que, em matéria de concisão, oferecem uma aulinha para The-Dream e Drake. As melodias meio metálicas e jazzísticas de Ski Beatz (que despontou no excelente Reasonable doubt, do Jay-Z, ainda em 1996) criam um ambiente enevoado que combina perfeitamente com as crônicas dopadas do rapper, sobre situações às vezes banais de tão corriqueiras (em resumo: maconha, videogame, cachorros, a inveja dos outros manos etc). Mas até aí o disco nos surpreende: Life under the scope tem tudo para virar um dos hits mais lúcidos sobre as neuras de celebridades. “Eles só assistir à nossa queda. É por isso que a câmera está ligada quando estamos andando. É por isso que eles escutam quando estamos falando”, resume Curren$y. No alvo.

Body talk pt. 2 | Robyn | 7.5

Se fosse uma mulher mais prática, Robyn reuniria todo o repertório que escreveu para o projeto Body talk, selecionaria 10 faixas e lançaria o melhor disco pop do ano. Mas preferiu fazer algo menos eficiente, mas talvez muito mais interessante: essa extravagância tripla soa como uma resposta ‘dançável’ (e mui desencanada) a Have one on me, da Joanna Newsom. Com uma diferença (fundamental): Robyn garante que os minidiscos sem refletir muito sobre o assunto. Uma certa displicência que resulta em singles muito fortes (In my eyes e Love kills, por exemplo), em tentativas curiosíssimas (desta vez, a paranoica We dance to the beat, que dá sequência aos desabafos de Don’t fucking tell me what to do) e em álbuns disformes, incompletos, mas que, de alguma forma, conversam uns com os outros. A ponte entre a primeira parte e a segunda é Hang with me (antes, uma balada esgorregadia; agora, um hit para pistas). E o desfecho, Indestructible, finalmente nos convence de que Robyn também tem sentimentos. To be continued.

Wake up the nation | Paul Weller | 7

Ouça o amigo aqui: os confetes da crítica inglesa para a este disco (por lá, uma das unanimidades do ano, à altura de Arcade Fire e Janelle Monáe) diz mais respeito ao que se espera de Weller do que ao álbum em si. A resenha do Guardian é o melhor exemplo disso: para quem aguarda por um disco prevísível e cômodo como uma novela das oito (como o resenhista esperou), pode ser um choque. Existe um esforço muito eficiente para criar uma arquitetura sonora que remeta a álbuns de rock psicodélico do fim dos anos 1960 (sonoridade de box Nuggets, vide os discos mais recentes do Super Furry Animals). As faixas curtísstimas – a maior, de quatro minutos, soa como um épico progressivo – evitam que percamos a paciência com o discurso embotado (Weller nos pede até para “desligar o telefone e o Facebook”) e estimulam várias audições. Na média, no entanto, é o tipo de disco aventureiro que Bob Dylan continua gravando (e o álbum solo que o Noel Gallagher não teria a coragem de lançar). Mas a distância entre Weller e Dylan ainda é aquele abismo que conhecemos bem…

Mount Wittenberg Orca | Dirty Projectors + Björk | 7

Dave Longstreth e Björk: dois mamíferos separados no nascimento. Mount Wittenberg Orca, este miniprojeto ecológico-beneficente, é o atestado dessa (odeio a palavra, mas soa apropriada) simbiose quase perfeita. Ela sussurra versos escritos do ponto de vista de uma baleia (!) e ela responde com mantras lânguidos para a Mãe Natureza. Ela geme, ele sussurra – aposto que Dave continua as frases que Björk começa. São artistas que – mais uma semelhança! -gostam de desafiar as expectativas que eles próprios despertam. Daí que, para quem temia por uma miniópera enigmática e aborrecida, este EP soa como um banho de água quente – melodioso e quase espontâneo. Em alguns momentos, é como se Dave tentasse grudar as pecinhas de Bitte Orca nas de Homogenic. Dá liga. E olhe que beleza: em Beautiful mother, a experiência deu num filhote bastardo de Child is father of the man, de Brian Wilson. Golfinho de pelúcia, digamos.

Have one on me | Joanna Newsom

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Conheço gente que acha Joanna Newsom um desastre. Um erro. Quase um nojo. Eu digo é mais: a mulher é insuportável.

Eu mesmo, que viro um menino desamparado quando ouço a harpa da moça, reconheço que é mesmo difícil olhar nos olhos desse furacão. Nós conhecemos uma multidão de cantoras e compositoras que estão por aí, desnorteadas, perdidinhas, à procura de um estilo, uma voz, um raio de personalidade. A maioria não encontra nada. A arte de Joanna Caroline Newsom, exceção entre exceções, é tão particular que machuca. Dá medo. Provoca alguma raiva (e uma pontinha de inveja, que ninguém é santo).

Joanna Caroline Newsom tem 28 anos, canta como só ela canta (naquela voz agudíssima e às vezes alienígena que põe muito marmanjo nervoso), compõe como só ela compõe, toca harpa como só ela toca e escreve álbuns que, por mais que você tente mapear as comparações fáceis (Joni Mitchell, Kate Bush, Vashti Bunyan), soam radicalmente diferentes de tudo o que você ouve no blog e na rua e na rádio e no elevador e na loja de roupas e na feira hippie.

Não existe outra Joanna Newsom. Entendeu o drama? E, aos que ainda se amedrontam diante desta mulher com franja de menina, recomendo que pode ser uma boa ideia (e note que não estou forçando nada) começar a conhecê-la desse modo meio inocente, quase tolo, nada irônico, nem um pouco sacana, sem a predisposição de encontrar um modelo formatado de musa indie, diva folk, nerd excêntrica, celebridade cult, outsider de butique. Ela não é nada disso (ainda que possa ser categorizada injustamente com todos esses adesivos).

O culto a Joanna Newsom – que existe e pode ser irritante como qualquer culto a qualquer astro pop (e odiamos as fãs mais descabeladas de um Marcelo Camelo, não odiamos?) – tem muito a ver com a forma como ela abre a porta do quarto e nos deixa entrar. Simples. E complicado. A música de Joanna é de um intimismo profundo, que exige total cumplicidade do ouvinte e, por isso, provoca um tipo muito sensível de conexão sentimental. O fã ouve um disco de Joanna como quem lê compulsivamente as páginas de um romance delirante escrito em primeira pessoa. Está enfeitiçado desde o prólogo.

É por isso que todas as estranhezas da moça, que podem soar imperdoáveis (e insuportáveis) para os infiéis e não-iniciados, são imediatamente perdoadas pelos súditos. A esses, recomendo que tomem um certo distanciamento, nem que por alguns minutos. O que eles vão encontrar? Uma caligrafia que não é bem folk, não é exatamente barroca, não é tão etérea quanto parece e que às vezes soa como a trilha sonora para uma versão lisérgica de Branca de Neve e os sete anões. Um conto de fantasia cuja protagonista parece habitar o nosso mundo e, se tivéssemos muita sorte, poderia ser a nossa vizinha.

Esse contraste que entre a atmosfera onírica das canções de Joanna e o tom pessoal do discurso pode não ter ficado muito claro no disco anterior, Ys (2006), um impressionante ciclo de melodias dividido com o auteur e arranjador Van Dyke Parks. Aquele era um álbum obsessivamente ornamentado – um (lindo) quadro na parede, uma obra-prima pensada como obra-prima. Have one on me é um disco mais espontâneo, menos carregado de ambições e, para minha surpresa, ainda mais apaixonante.

Mais uma vez, Joanna mostra um desejo imenso de jogar com aquilo que conhecemos como um formato tradicional de álbum. Ys tinha a quantidade de canções de um EP, mas soava monumental como uma obra conceitual do fim dos anos 1960. Have one on me, por sua vez, é um disco triplo (e, à exceção do Prince e do Magnetic Fields, quem comete uma sandice dessas?) com a duração de um CD duplo e organizado como três mega-EPs. Mais inusitado ainda: um disco triplo que aproveita o espaço amplo para se espreguiçar, abrir lacunas entre os acordes, tecer pequenas variações melódicas, deixar o tempo passar, espairecer.

Se Ys soava como a obra de uma artista que precisava imediatamente definir uma visão de mundo e se impor acima dos formatos mais convencionais do pop, Have one on me acaba por parecer muito mais sereno (no estilo) e complexo (nos temas e emoções despertados por cada canção). Talvez você não acredite, mas é o álbum mais convidativo – e talvez o melhor – que ela gravou.

O que surge no disco é uma compositora mais permeável e generosa, disposta a assimilar uma diversidade de ideias sem medo de desviar do caminho que resolveu seguir. O disco oscila entre delicadas canções curtas como a perfeitinha On a good day e monumentos folk como No provenance. Há temas históricos (Have one on me é aparentemente sobre Lola Montes) e confissões muito íntimas (Easy, um poeminha belíssimo sobre as inseguranças do amor).

Talvez mais importante é como Joanna desta vez compartilha o disco com uma banda, que caminha junto dela e, quando necessário, preenche as brechas da harpa e do piano com violões, bateria, instrumentos de sopro. Tudo até meticuloso – como na deslumbrante You and me, Bess, que permite até a inclusão de um coro. Sabemos que esse processo de abrir-se ao mundo é sempre muito perigoso – mas Joanna cumpre o desafio sem perder nada daquilo que, para os ouvintes que se deixam atropelar pelas canções, sempre soou esquisito e radical.

Lembro que, quando Ys foi lançado, as resenhas mais furiosas comparavam o álbum ao que há de mais exibicionista e esnobe no rock progressivo dos anos 70. Temi que Joanna Newsom acabasse por levar em conta esse tipo de comentário. Mas não. Have one on me, gravado em Tóquio com produção da própria Joanna (e, em seis faixas, mixagem de Jim O’ Rourke), surpreende fãs e detratores. Talvez para o mal. Interessa (a mim, pelo menos) a forma decidida como Joanna segue uma trajetória de completa independência criativa. “Eu não vou voltar, agora que o caminho está mais claro”, ela avisa, em On a good day.

E a sensação de liberdade, de não dever satisfações ou se obrigar a algum tipo de concessão, contamina de tal forma este álbum triplo que, lá pelos 60 minutos de viagem, tudo o que eu consigo ouvir nele é beleza bruta, beleza estranha, beleza sutil, beleza que emociona, beleza nos detalhes mínimos, beleza que não se sabe de onde vem, beleza inclassificável, beleza dura, beleza fácil, beleza difícil, beleza insuportável. Outra beleza.

Daí em diante, lá pelos 80 minutos, Joanna está completamente no controle. É um disco dela é para ela. E o que resta a nós, os pobres súditos, é o prazer de sermos conduzidos para um lugar infinitamente misterioso.

Atualização (3 de março): Depois da décima audição, dá pra bater o martelo: You and me, Bess é a música mais bonita do mundo.

Terceiro disco de Joanna Newsom. 18 faixas, com produção de Joanna Newsom. Lançamento Drag City. 9/10