Agonia

Albatross | Wild Beasts

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O clipe, dirigido por Dave Ma, é o que se espera de um vídeo do Antony and the Johnsons: mulheres deprimidíssimas, uma dançarina sôfrega, um vocalista em agonia, insetos, aves e sentimentos aflorados. Hmm. Mas atenção: esta é a nova do Wild Beasts, que, após o ótimo Two dancers, retorna este ano com o disco Smother. Albatross não parece voar alto: mas ouça duas vezes e tente esquecer.

Halcyon digest | Deerhunter

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Há momentos (e não são poucos) em que me envergonho de textos que escrevo.

Dias em que penso: escrevi demais, contei o que não devia. Ou então: usei as palavras erradas, fui ansioso e indulgente, não reli, faltou rigor. Ou: exagerei na pieguice e nas gracinhas, fui fraco, apelei, perdi.

Esse sentimento de frustração me acompanha já por muitos anos e, honestamente, não sei o que fazer dele. Escrevo para trabalhar e para me divertir. Escrevo pelos cotovelos, vocês sabem. Mas, ainda assim, mesmo com a prática, às vezes me falta coragem para ler o que escrevi. Quando leio, quase sempre me decepciono. Acabo chegando à conclusão triste de que ainda falta muito (talvez muito-muito) para que eu consiga os parágrafos que me matariam de orgulho.

Meu maior defeito, admito, é escrever além da conta e, no processo, me expor excessivamente. Daí que me identifico, e sempre me identifiquei, com as pessoas (os músicos, os escritores, os cineastas) que também não se poupam – que deixam, talvez por não conseguir evitar, que experiências muito íntimas contaminem os próprios “textos”. 

Que escrevem como que para um diário – sem medo, talvez sem cautela ou limites. E que depois largam o diário no banco da praça. 

Bradford Cox, vocalista do Deerhunter, é desses. Mas eu poderia estar falando sobre Elliott Smith e Kurt Cobain, sobre o John Lennon de Plastic Ono Band, sobre o Nick Drake de Pink moon, sobre o Beck de Sea change. E sobre cineastas como Jacques Nolot ou Hong Sang-soo ou Elia Suleiman. Todos tão perdidamente eles próprios, mesmo quando inventam, mesmo quando falseiam ou se camuflam em tipos de ficção.

No quarto disco do Deerhunter, Bradford Cox se exibe em quase todas as canções. Ora melancólico (quase suicida), ora estranhamente eufórico, otimista. Em todos os casos, leva às gravações um discurso franco, sem corretivos, que nos toma pelos braços. Somos cúmplices. Pode ser encenação – mas, nesse caso, a técnica só valoriza um álbum que soa como os posts desesperados (e ansiosos, e por vezes apressados) de um blogueiro que ouviu demais.  

O narrador só se revela por completo nas últimas faixas do disco – especialmente em Basement scene e Helicopter, duas das canções mais brutais (e tocantes) do ano. “Eu não quero acordar. Eu não quero envelhecer”, Bradford avisa, sobrevoando uma canção de ninar psicodélica. E depois, como um rockstar condenado, solitário, lamenta: “Nos clubs as pessoas sabem o meu nome”. Os fãs não curam. O palco é uma piada. A vida segue.

A faixa seguinte afoga o vocalista em um loop aquático. Profunda agonia. “Todas essas drogas que eles fabricam… Elas não surtam o efeito que provocavam. Eu costumava usá-las dia após dias”, conta. “Ninguém se importa comigo. Eu não tenho companhia.” E a voz de Bradford, 28 anos, vai sendo engolida por efeitos sonoros coloridos e distorcidos. Um parque de diversão decadente.

O restante do disco, ainda que não vá tão longe nessa autoanálise, vai compondo a persona dúbia de Cox com uma caligrafia trêmula. Mas atenção: trata-se de uma confissão desarranjada e não muito confiável (no sentido documental da coisa, digo), já que confunde sonhos, desejos e memórias. “Este é um disco sobre a forma como reescrevemos e editamos nossas lembranças para formar uma versão condensada e agradável daquilo que queremos lembrar”, disse o vocalista.

O impressionante é como Cox – e a banda, que não se ausenta – leva essa ideia para a sonoridade do disco, que alterna trechos mais oníricos (como Helicopter, Earthquake e Sailing) com faixas cruas (como He would have laughed, escrita em homenagem a Jay Reatard, que morreu este ano). No conjunto, as melodias do disco talvez tentem simular aquele estado breve que antecede o sono, quando nossos pensamentos sobre o cotidiano (nossas preocupações de cada dia) começam a se diluir em sonhos. Soa quase delirante.

A produção de Ben Allen (de Merriweather Post Pavilion, do Animal Collective) ajuda a moldar uma sonoridade a um só passo extravagante e familiar. O disco começa num andamento lento, duro (Earthquake é uma canção do Air remixada por Kevin Shields), mas logo se abre para arranjos de garage rock sessentista (Don’t cry, Revival) e versos inocentes. “Venha cá, garoto, você não precisa chorar. Você não precisa entender todas as razões”, Cox adverte, em busca da infância perdida (um tema que retorna em Memory boy).

Em Sailing, a brisa já passou. Cox está à deriva. “Apenas o medo pode fazer você se sentir sozinho por aqui. Você aprende a aceitar qualquer coisa que consegue encontrar.” E o disco então se parte em dois: verão e inferno, alegria e depressão, lado B misturado ao lado A. Mais do que em qualquer outro álbum do Deerhunter ou do Atlas Sound (até mesmo de Cryptograms, totalmente esquizofrênico), o vocalista depura uma sonoridade que resume um temperamento imprevisível, que oscila a todo momento.

Talvez mais interessante do que isso: uma sonoridade que mostra um compositor capaz de combinar referências de todo canto (do shoegazing ao pós-punk), que se transforma ora em Bowie, ora em Lou Reed, ora em Thurston Moore, ora em Julian Casablancas (na ótima Desire lines, escrita pelo guitarrista Lockett Pundt). Que é todos e ninguém (e, por isso, mascote de uma geração que ouve música exageradamente, apressadamente, talvez sem prudência).

Bradford Cox é um dos nossos: ele vive cada disco como se não houvesse amanhã. Ele está lá. Eu estava me perguntando por que, para mim, parece muito complicado comparar este Halcyon digest com qualquer outro álbum do Deerhunter (até com Microcastle, também hipnótico). Encontrei a resposta: Cox nos faz acreditar que este disco é a imagem fiel – até constrangedora, em alguns trechos – de quem ele é neste exato momento. Aqui e agora. E o que ficou lá atrás, enquanto durar este feitiço, não mais interessa. 

Quarto disco do Deerhunter. 11 faixas, com produção da própria banda e de Ben Allen. Lançamento 4AD Records. 8.5/10

Mines | Menomena

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Entendo por que tanta gente se espelha em bandas como o Grizzly Bear, o TV on the Radio. Eles, os nova-iorquinos, correram atrás de uma marca, de um lugar no mundo, e encontraram tudo isso.

Também compreendo que muitos tenham o enorme desejo de gravar discos como Veckatimest e Dear science. Álbuns coesos, duros, determinados, densos – a cristalização de um estilo! – mas também fascinantes, misteriosos.

Mas a vontade de ser uma banda como o Grizzly Bear ou o TV on the Radio e de gravar discões como Veckatimest e Dear science, é claro, muitas vezes é apenas uma vontade: concretizar essa ambição é que são elas.

Pois bem: Mines, o disco mais ambicioso do Menomena, mostra que não é fácil desenvolver uma trajetória particular, inimitável, dentro do indie rock. Não é fácil ser o novo Grizzly Bear, muito menos o novo TV on the Radio.

O Menomena, um trio de Portland, Oregon, está no quarto disco e, até agora, não pareciam muito interessados em definir uma identidade sonora. O anterior, Friend and foe (2007), era um tiroteio de promessas. Uma sacola de cacos de vidro. E um ótimo disco, com faixas fortíssimas como Evil bee e Wet and rusting. Ainda hoje, gosto muito dele.

Era complicado definir o som da banda e, por isso, muitos diziam que eles criavam arranjos “angulosos” (o que é verdade), com um emaranhado instrumental imprevisível (um quebra-cabeças de loops) que acenava para o math-rock de um Battles, por exemplo, mas com uma tendência a melodias sentimentais, doces. Era mais ou menos isso.

Essa definição também pode ser aplicada a Mines, mas trata-se de um disco menos brincalhão e arejado que o anterior. Naquele, cada música parecia ter sido gravada num dia diferente. Neste, as 11 faixas soam como se tivessem saído de um mesmo ensaio e, três minutos depois, lacradas a vácuo.

Antes, havia lacunas no quebra-cabeças. Essas lacunas soavam misteriosas. Algumas faixas não soavam exatamente como canções, mas como esboços de canções. Desta vez, o Menomena resolveu usar as peças do puzzle para formar canções bem acabadas, às vezes redondinhas.

Mines é um disco bitolado numa “ideia-fixa”: as canções soam mais melodiosas (e menos aventureiras), sutis, mais detalhistas e, alguns momentos, sisudas, cabisbaixas, como capítulos de uma história triste. Em vez da caixinha de surpresas, um bloco maciço daquilo que eles entendem por maturidade.

Se fosse possível catalogar toda a história da música pop em dois tipos de álbuns – os juvenis e os adultos -, Mines seria um álbum adulto. Friend and foe, um juvenil (mas não se preocupe: essa catalogação maluca é uma bobagem).

É uma bela reviravolta na carreira da banda, que será defendida por muita gente (procure na web: há fãs tratando o disco como um dos melhores do ano), mas a questão é: eles conseguem bancar o salto?

Fato: o Menomena aprendeu a usar uma aquarela de timbres, loops e efeitos (e tem de tudo: guitarras, sintetizadores, sopros dissonantes, piano de casa do espanto, coros fantasmagóricos, percussão, palminhas, etc) para compor uma imagem harmoniosa. Perto disso, Friend and foe era Jackson Pollock.

Há canções aqui, como Dirty cartoons e Tithe, que poderiam ser confundidas com baladas do Coldplay e do Snow Patrol. E do Elbow. São quase convencionais. E, ainda assim, soam belas, cuidadosas, corretas.

Meu problema com o disco está nessa última palavrinha: ele soa corretinho. E, para uma banda de rock que parecia solta no mundo, tateando possibilidades, essa tendência ao comodismo me parece meio assustadora. Era só isso que eles queriam? E, nessa perspectiva, como fica o disco anterior?

Ainda assim, Mines não parece errado: existe um lugar nas rádios para o Menomena, eles soam sinceros e verdadeiramente desiludidos com alguma coisa (as letras, escritas na primeira pessoa, lidam com inseguranças e responsabilidades da idade adulta, temas com que podemos nos identificar, e há um tom surrealista, um clima de paranoia urbana que deixa tudo mais complexo). Junto do Morning Benders, do Dodos e de alguns outros, eles entendem que é possível arredondar referências de rock psicodélico sem tomar o rumo de elevadores e consultórios de dentistas. E isso é bom.

Não estamos falando de um disco aguado como o terceiro do Band of Horses.

Mines é um álbum coeso, para ser montado e desmontado lentamente? Sim. Indica a possibilidade de algum sucesso comercial? Talvez (eu não duvidaria). A certidão de nascimento de um estilo? Ainda não.

De qualquer forma, fico imaginando o que teria acontecido ao Menomena se eles tivessem mergulhado no caos colorido de Friend and foe e descido mais fundo naquele laguinho. As bandas de rock não devem ser o que queremos delas. Elas são o que são. Mas fico aqui imaginando.

Quarto disco do Menomena. 11 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Barsuk Records. 7/10

Expo 86 | Wolf Parade

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Blogs são depósitos de bobagens, não são? Não tem editor olhando, então fulano se sente confortável para escrever qualquer sandice. Não tem produtor bancando, então sicrano vai lá e faz textos quilométricos, que não terminam nunca e mal fazem sentido. Quase não existe público, daí beltrano pode andar pelado na cozinha, pagando mico à vontade.

E você sabe disso, não? Você entende a lógica, certo? Você sabe que não deve levar-nos muito a sério, não é? Mas digo uma coisa: os melhores textos sobre Expo 86, o terceiro disco do Wolf Parade, serão encontrados em blogs. Sim, engula isto: em blogs.

(Talvez também em diários secretos de adolescentes, mas infelizmente não teremos acesso a eles. Não em microblogs, a menos que divididos em cinco ou seis sentenças febris)

Por quê? É que álbuns como este, arquitetados para provocar impacto imediato, excitação e surpresa, cobram respostas tão urgentes quanto o som que vaza nos fones. Escritas de madrugada, após a terceira audição. Rabiscadas no intervalo do almoço, com a pressa de quem tem que voltar logo ao trabalho. Confeccionadas no recreio, em bilhetinhos lambuzados de mostarda. É um disco que nos obriga a gritar alguma coisa sobre ele. Alguma coisa. E já.

O lançamento está marcado para 29 de junho. Anote na agenda. Nesse dia, você vai ler as avaliações de resenhistas profissionais que, em parágrafos objetivos, tentarão camuflar o baque provocado pelas primeiras audições do disco. Pobres almas. É para isso que servem as resenhas, certo? Explicar os porquês, ordenar comparações, contextualizar a obra e convencer-nos da relevância de alguns argumentos mui racionais que nos ajudam a defender nossas convicções.

Aposto que nove entre dez resenhas vão sublinhar o fato de que este disco foi gravado em apenas um mês, sem overdubs (no espírito “hey-ho-let’s-go”), e que soa mais direto, afiado e reluzente do que os anteriores. Não somos atirados, por exemplo, no pântano sinistro e anticomercial de At Mount Zoomer (2008), produzido pelo próprio grupo. Nem nas assombrações lindamente juvenis de Apologies to the Queen Mary (2005), um dos grandes discos dos anos 00.

Expo 86, dirão os resenhistas, soa mais como um statement, um atestado de “maturidade” (ou, vá lá, como uma correção de rota): após o “disco difícil”, a força criativa dos canadenses é condensada em um projeto mais acessível, meio que dançante, enérgico, arejado por sintetizadores e versos até compreensíveis (“Eu sou um desastre”, avisam, em In the direction of the moon, e desta vez conseguimos entendê-los!).

Depois do suicídio comercial, o renascimento.

Mas isto é um blog, ok? Então, por alguns parágrafos!, esqueça os críticos profissionais. Eles que se arranjem. Entender por que este é um belo disco não explica as sensações que ele provoca. Experimente ouvi-lo em volume altíssimo enquanto dirige nas vias da cidade: o golpe das guitarras equivale ao disparo de um airbag. Primeiro o susto, depois o conforto (e o conforto, creio eu, é provocado pela doçura dos sintetizadores, que amolecem canções como a tocante, deslumbrante Ghost pressure, e a lânguida Oh you, old thing).

Para quem havia se adaptado ao Wolf Parade arredio de At Mount Zoomer, o choque é ainda mais pesado. Naquele disco, produzido pela própria banda, os sons nos cobriam em lama e lodo: prog-rock para fitas de zumbis (e eu sou suspeito para falar sobre o disco; me afeiçoei pelo cachorro de três patas). Expo 86 é o oposto disso, o “lado a” para aquele “lado b”. É pós-punk para fitas de ação.

Quando fazemos algum esforço, conseguimos visualizar, entre uma faixa e outra, uma banda correndo dentro do estúdio, excitadíssima com as próprias canções, com pressa para gravar, mixar, concluir o trabalho e mostrar-nos o resultado (não à toa, eles pretendiam lançar um disco duplo – felizmente, a Sub Pop parece tê-los convencido a selecionar as cerejas). É, apesar dos versos ainda muito agoniados, um disco que sorri para si mesmo e para o público. Nada como o som de uma banda de rock no auge, feliz consigo mesmo.

E ainda me parece um mistério: como eles conseguiram forjar uma sonoridade tão coesa? Ao contrário dos álbuns anteriores, não é fácil identificar quais das canções têm a assinatura de Spencer Krug e quais pertencem a Dan Boeckner (claro, Spencer é o mais doentio da dupla, mas agora Boeckner não fica muito atrás). Todas parecem sonhar com uma jam session pirada com a participação de David Bowie, King Crimson, Gang of Four e Talking Heads.

Mas há como identificar a origem dessa confraria bizarra: aparentemente, Dan conseguiu convencer Spencer a usar os sintetizadores que ele adota no projeto The Handsome Furs. E Spencer, em retribuição, impregnou o disco com a agonia quase enlouquecedora do Sunset Rubdown. O importante é que todos saíram ganhando: o Wolf Parade, está mais claro do que nunca, é o lar para onde Spencer e Dan retornam após longas aventuras.

Mas pode não ter acontecido nada disso. Este texto hilariante de divulgação, assinado por Steve Martin (?), sugere que o álbum é uma ode à amizade: o título seria uma referência a uma grande exposição de ciência organizada em Vancouver, em 1986. Todos os integrantes, por coincidência, se conheceram naquela ocasião, aos 10 ou 11 anos de idade. E fizeram um pacto: formar um grupo de rock quando crescessem.

Invencionices à parte (mas olhe lá: eles até que têm um excelente senso de humor!), nunca as afinidades musicais dos quatro amigos soaram tão homogêneas. A parábola aloprada faz sentido. Expo 86 é o som de uma banda, não de compositores talentosos que jogam cartas de vez em quando. E, nesse reencontro, o que nasce é um animal tão feroz quanto adorável, um bicho de estimação com dentes pontiagudos. Nós amamos sentir medo dessa fera. 

“Eu tive um amigo que era um gênio, mas ninguém nunca escutou o que ele disse”, conta Spencer em What did my lover say? Pois bem: desta vez eles serão ouvidos.

É que a hora é esta. E, para a sorte de uma horda de blogueiros ansiosos (ainda impressionadíssimos, pelo menos por enquanto), o Wolf Parade não deixa o momento escapar.

Terceiro disco do Wolf Parade. 11 faixas, com produção de Howard Bilerman. Lançamento Sub Pop. 9/10