Adaptação literária
Drops | Mostra de São Paulo (6)

Filme do desassossego | João Botelho | 2/5 | Compreendo perfeitamente: qualquer adaptação do Livro do desassossego tenderá a tratar de uma forma mui respeitosa (resumindo: cheia de dedos) as palavras de Fernando Pessoa: mas, no caso deste filme-sonho de João Botelho, as imagens são aplicadas apenas para ilustrar, às vezes preguiçosamente, o texto declamado pelos personagens (nas divagações sobre sexo aparece um casal trepando; nos trechos sobre a língua portuguesa, o ator caminha dentro de uma biblioteca). Admito que, em alguns momentos, fechei os olhos para ouvir os versos sem a interferência de cenas quase sempre tão banais.
Como eu terminei este verão | Kak ya provyol etim letom | Alexei Popogrebsky | 3/5 | Se Na natureza selvagem, de Sean Penn, pode ser interpretado como um “filme de aventura”, este longa russo também aceita a classificação, e por um motivo mais ou menos parecido: é um conto sobre ritos de passagem (e o fim da adolescência) em que o ambiente (uma região gélida, isolada) cumpre um papel importantíssimo, já que catalisa os conflitos entre os personagens. É de se admirar, por isso, que o diretor Popogrebsky não se deixe seduzir por cenários tão fotogênicos e mantenha os protagonistas em primeiro plano. O filme é um belo exemplo de fé na narrativa clássica, linear, com todas as peças encaixadas nos devidos lugares, ainda que o terceiro ato tente criar uma atmosfera de tensão e paranoia que me parece tão fria quanto as paisagens filmadas.
!!! Caterpillar | Kyatapirâ | Koji Wakamatsu | 4/5 | Sou um iniciante na obra de Wakamatsu e, por isso, só consigo ver este Caterpillar como um comentário frontal, furioso, quase monocromático e grosseiro (num bom sentido), acerca dos horrores da guerra. E descrever o filme com simplicidade me parece apropriado, já que é com absoluta clareza e economia de efeitos que Wakamatsu cria este catálogo de atrocidades: mostra o horror no combate (nas primeiras cenas, uma mulher é estuprada por um soldado), o horror na volta para casa (o soldado retorna sem pernas e braços, como uma “lagarta gorda”), o horror psicológico (a relação entre o soldado e a esposa se torna uma espiral de loucura) e, finalmente, o horror das convenções sociais e religiosas (o soldado-lagarta, que não consegue nem falar, é consagrado deus). O contexto político aparece em frases curtas disparadas entre uma cena e outra. É o suficiente: a matéria de Caterpillar é a tragédia doméstica, física, pessoal. E, aí, não adianta remediar: a guerra não acaba quando termina.
PS: Não pensem que esqueci dela: a mixtape de outubro (também conhecida como a ‘mixtape das férias’) vem aí, e vai chegar mais cedo do que de costume. Vou postá-la amanhã cedo, por volta das 11h. Aí vocês fazem o download a tempo de curtir o feriado. Pode ser? Então vai ser.
Crash, o filme, por J.G. Ballard
“O filme Crash, de David Cronenberg, foi lançado no Festival de Cannes em 1996. Foi o filme mais polêmico do festival, e a controvérsia continuou durante anos, em especial na Inglaterra. Políticos do Partido Conservador desesperados, prevendo a derrota nas eleições gerais iminentes, atacaram o filme tentando ganhar créditos como guardiões da moral e da decência pública. Uma ministra, Virgínia Bottomley, pediu que o filme (que ela não tinha visto) fosse proibido.
O Festival de Cannes é um extraordinário evento de mídia, capaz de intimidar profundamente um reles romancista. É possível que os livros ainda sejam lidos em grandes números, mas os filmes são objeto de sonho. Eu e Claire (esposa de Ballard) ficamos assombrados com as multidões aos gritos, as festas suntuosas, as limusines exageradas. Participei de todas as entrevistas publicitárias do filme e fiquei impressionado ao ver como os astros do filme estavam comprometidos com a elegante adaptação do meu romance feita por David Cronenberg.
Eu estava sentado ao lado da atriz principal, Holly Hunter, quando se aproximou um importante crítico de cinema de um jornal americano. Sua primeira pergunta foi: “Holly, o que você está fazendo nessa merda?” Holly saltou da cadeira e partiu para uma apaixonada defesa do filme, acabando com esse crítico por seu provincianismo e sua mentalidade estreita. Foi a melhor atuação do festival, e aplaudi vigorosamente.
Em poucas semanas o filme estreou na França, com muito sucesso, e depois passou a ser exibido em toda a Europa e no resto do mundo. Na América houve problemas quando Ted Turner, que controlava a distribuidora, achou que Crash poderia ofender a decência pública. É interessante notar que na época ele era casado com Jane Fonda, que reanimou sua carreira representando o papel de prostitutas (como em Klute) ou fazendo malabarismos nua em uma nave espacial forrada de peles (em Barbarella).
Na Inglaterra o lançamento foi retardado por um ano quando as autoridades de Westminster o proibiram de ser exibido no West End de Londres, e várias municipalidades do país seguiram o exemplo. Mas quando o filme por fim estreou não houve nenhum desastre de carro tentando imitá-lo, e a polêmica acabou morrendo. David Cronenberg, um homem muito inteligente e profundo, ficou completamente perplexo com a reação dos ingleses. “Mas por quê?”, ele vivia me perguntando. “O que está acontecendo por aqui?”
Depois de cinquenta anos morando no país, eu não tinha resposta alguma para lhe dar, nem de longe.”
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A coincidência: antes de ler esse trecho da autobiografia de Ballard, Milagres da vida (que é fantástica, recomendo), pensei muito em Crash enquanto assistia ao Confissões de uma garota de programa, do Steven Soderbergh. Faz muito tempo que não vejo o do Cronenberg (um dos meus favoritos dos anos 90), mas tudo o que o Soderbergh tenta encenar (relações afetivas frias/mecânicas/despaixonadas) não chega nem perto das minhas lembranças daquele outro filme, de como Cronenberg foi fundo no mal-estar de uma época. Crash me perturba até hoje – o filme até mais que o livro. E talvez todo o problema do cinema de Soderbergh (ou pelo menos o que me incomoda nele) esteja aí: no medo de dar um passo para fora da zona de conforto e arriscar seriamente.