A vida segue

Write about love | Belle and Sebastian

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Para quem acompanha a história do Belle and Sebastian desde o início, Write about love será um dos discos mais agradáveis do ano.

Ao mesmo tempo, ele soará um pouco incômodo. Pelo menos um pouco.

A melhor comparação possível: é um álbum que equivale ao dia em que você reencontra uma namorada de infância. Dez, vinte anos depois.

Num primeiro momento, você se curva ao poder de uma lembrança longínqua. Ela, a ex, ‘adulteceu’ graciosamente. Continua com o mesmo sorriso, o mesmo humor, os mesmos tiques (adoráveis) e também sentiu muito a sua falta.

E essa sensação provoca conforto, familiaridade, alívio. “Ainda bem que tudo terminou bem”, etc.

Num segundo momento, você começa a notar as diferenças. Ela, a ex, hoje tem outros interesses, conheceu pessoas, superou decepções, criou novos planos, aprendeu (e desaprendeu) – e se tornou, na soma de todos os traços alterados pelo tempo, uma pessoa muito diferente daquela por quem você se apaixonou. Ainda que pareça igual.

Write about love é um disco que acena (de longe) para o Belle and Sebastian que conhecíamos. A faixa-título, por exemplo, é uma crônica falsamente ingênua sobre tipos comuns, gente que fantasia o amor enquanto se tranca em escritórios cinzentos. É, aparentemente, o mesmo mundo da obra-prima If you’re feeling sinister. Mas quanto tempo passou desde então? 14 anos!

Na época, o Belle and Sebastian era uma banda que guardávamos em segredo. Sabíamos pouco sobre eles e, por isso, ainda havia mistério. As canções nos apresentavam uma juvenília que era um pouco nossa (sob a ironia à Morrissey, Stuart Murdoch sempre foi um sujeito franco e dramático, devoto de Nick Drake) mas, ao mesmo tempo, eram escritas com a finesse literária de um fã de J.D. Salinger e L.P. Hartley. Um estilo

Os versos que abrem It could have been a brilliant career estão entre os melhores dos anos 90: “Ele teve um ataque aos 24 anos. Poderia ter sido uma carreira brilhante” (e seria possível que um adolescente de 16 anos, metido em provas de pré-vestibular, não se identificasse apaixonadamente com isso?).

Não que o tempo tenha maltratado o Belle and Sebastian. Não. O tempo apenas… Passou. Desde o início da década, a banda parece escrever discos que tentam recriar uma sensação que é antiga. Muitos dos adolescentes de 16 anos que os acompanhavam conseguiram, de fato, seguir carreiras brilhantes. E sobreviveram à idade adulta. Eis a ironia da coisa.

Acredito que, desde Dear catastrophe waitress (de 2003), a banda também tenta se adaptar à maturidade. Tenta se sentir confortável em ternos e gravatas. Ao mesmo tempo, se esforça para preservar uma certa sagacidade, um certo desespero juvenil. É uma banda que cresce (em matéria de técnica, eles nunca estiveram melhores) sem desapegar do que a fez relevante, grande.

Mas seria possível combinar as duas ambições? Talvez sim, talvez não.

The life pursuit (de 2006) foi muito elogiado por mostrar um B&S preocupado em refinar a própria sonoridade. A produção de Tony Hoffer (que esteve nos rocambolescos Midnite vultures, do Beck, e 10.000 Hz legend, do Air) podou os últimos resquícios de crueza que ainda resistiam e ajudou o grupo a criar arranjos elegantes, com alguma influência de soul music e pop setentista. Um disco quase pomposo que, de certa forma, ajudou a criar a onda vintage-delicadinha que produziu genéricos como o She & Him. Pior: um disco quase inofensivo (talvez por isso tenha feito tanto sucesso na parada inglesa).

Write about love segue a “evolução” de The life pursuit, mas com alguns avanços: é um álbum mais compacto e menos obcecado por perfeccionismo técnico (uma característica, aliás, que nunca combinou com as atitudes do Belle and Sebastian). As duas últimas faixas, I can see the future e Sunday’s pretty icons, nos transporta ao tempo de Tigermilk (1996): novamente, uma banda que soa próxima, falível. “Para frente, este é o único caminho que você deve seguir. Eu vejo o seu futuro e não há ninguém por perto”, eles avisam, docemente cruéis. 

É, ainda mais do que The life pursuit, um disco que nos acomoda num ambiente aconchegante – uma poltrona de veludo que nunca, em hipótese alguma, dá choque. É um disco, como eu disse, agradabilíssimo (e que pode provocar flashbacks emocionantes em quem viveu os anos 90). Mas, após a quinta audição, comecei a me perguntar se é isso que espero do Belle and Sebastian. Conforto e apenas conforto? Conforto e (medo!) comodismo?

A canção-símbolo dessa fase é, obviamente, aquela que tem a participação de Norah Jones – Little Lou, ugly Jack, prophet John. Soa como um presságio, na verdade: é assim que o Belle and Sebastian soará em 10 anos, quando organizará espetáculos no Carnegie Hall para fãs quarentões. Absolutamente manso. Para os padrões de Norah Jones, é uma bela canção (com todas as arestas aparadinhas e atmosfera jazzy-de-pelúcia). Mas que (eis o choque) poderia ter sido incluída em qualquer disco da cantora.

O restante do álbum é – felizmente – menos perfeitinho, ainda que previsível. I want the world to stop é um encontro entre os vocais amanteigados do Mamas and the Papas com a psicodelia do Love. E I’m not living in the real world poderia ter entrado num dos discos que o Blur gravou antes de Parklife: a pré-história do britpop. A produção de Hoffer cria os tons exatos, “sofisticados”, para o exercício de nostalgia (nada que se aproxime da densidade que encontramos num disco do Clientele, mas eles estão chegando lá).

O destaque, para mim, não deixa de provocar alguma frustração: a faixa-título, com participação de Carey Mulligan (a atriz de Educação), conta a historinha de uma mulher que sonha com um homem “intelectual e quente, mas que me entende”. Enquanto isso, Stuart ensina: “Eu conheço um feitiço que pode te ajudar. Escreva sobre amor: pode ser em qualquer tempo verbal, mas tem que fazer sentido”.

Write about love é gentil assim: faz sentido, aperta o coração, sugere cenas bucólicas, sorri maliciosamente e termina muito antes de provocar silêncios constrangedores. Um encontro feliz, ainda que um tanto rasteiro, com uma antiga namorada. Ela continua muito bonita. Ela sobreviveu. Mas a vida segue.

Oitavo disco do Belle and Sebastian. 11 faixas, com produção de Tony Hoffer. Lançamento Rough Trade. 6.5/10

Os discos da minha vida (5)

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Vamos a mais um capítulo do único, especial, napoleônico ranking dos 100 discos (isso, 100!) que atropelaram a minha vida. Não espere encontrar aqui um guia para os álbuns mais importantes de todos os tempos ou coisa que o valha. Não. Não é disso que estamos falando. Não é disso que estamos falando mesmo.

São dois por semana (vocês já sabem). E eles vêm com links para que você ouça os disquinhos e tente entender por que os danados puxaram o meu tapete.

Curiosamente (não fiz de propósito!), a dupla desta semana diz muito sobre o período em que vivo neste momento (como se você não soubesse…). No mais, são opostos que se atraem: uma descida ao purgatório; em seguida, um aviso reconfortante de que tudo vai passar. Carpe diem.

092 | The downward spiral | Nine Inch Nails | 1994 | download

Meus filmes de horror favoritos são aqueles que, sutilmente, acenam para o público com uma piscadela e nos avisam: ‘sabemos que isso é uma brincadeira diabólica, mas entenda que não estou levando muito a sério’. The downward spiral não é esse tipo de filme de horror. É o contrário: ele não desfaz a marra, não pisca, e por isso deixa a desconfiança de que o narrador pode ter sido contaminado pela angústia do monstro. Trent Reznor narra com tanta convicção o calvário de um homem autodestrutivo (da crise à tentativa de suicídio) que nos mancha de sangue. Que nos converte em cúmplices. Que nos mergulha no caldeirão. Alguns outros tentaram (White Zombie? Pantera?), mas é do Nine Inch Nails o disco mais cruel que já ouvi.

091 | All things must pass | George Harrison | 1970 | download CD1 CD2

Uma grande banda anuncia a separação e, no mesmo ano, um dos integrantes lança um álbum solo, triplo, que acaba por se impor como uma obra-prima. Quais são as chances? All things must pass tem um quê indulgente (no terceiro disco, uma jam que deve ser interpretada como um grito de alforria), mas não é nada que reduza o espanto provocado por este portfólio de Harrison. Enquanto Lennon foi à terapia (e produziu um dos discos mais tocantes de todos os tempos, aguarde-o neste ranking) e McCartney rendeu-se a pequenos prazeres, coube a Harrison defender a vocação dos Beatles para o pop monumental. Quando ouvi pela primeira vez, a sensação foi de alívio: o sonho não acabou.

Minha noite sem Rohmer

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Morreu o meu cineasta preferido. Eric Rohmer. 1920-2010.

Ele estava velhinho, 89 anos. Veio a notícia. Até fiz de conta que era engano. Daí soube que perguntaram: “Eric quem? Eric Romero?” E fiquei ali sem saber se o problema era comigo, que tratava aquele francês como uma espécie de pai, ou com os outros.

Não: pai seria um exagero (tenho dois e eles me bastam). Melhor seria dizer tutor, professor. Mestre. Rohmer não foi o único culpado por minha devoção ao cinema, mas ele me ensinou uma das lições principais. Que os filmes estão cheios de vida.

Os filmes de Rohmer me inspiraram a escrever sobre cinema, a entender algumas das minhas incertezas, a refletir sobre desejo e paixão, a experimentar uma juventude que não era a minha, a descobrir que eu não nunca soube exatamente o que fazer com as minhas férias, a tirar alguns dias na praia, a me apaixonar pelas ideias de garotas incrivelmente inteligentes, a travar longos diálogos com pessoas de ficção que soavam indecisas, frágeis, hesitantes, tolas e verborrágicas (às vezes insuportáveis) como eu.

É dificílimo, por isso, escolher um título que resuma a aventura. O próprio Rohmer admitiu que não estava preocupado com os filmes em si, mas com um conjunto de obra que se assemelhasse e um grande livro de contos. Ainda assim, sugiro um itinerário particular, que começa em Conto de verão (obra-prima sobre ter 20 e poucos anos) e segue com Minha noite com ela, O joelho de Claire, O amor à tarde, toda a série Comédias e provérbios numa maratona obsessiva, A inglesa e o duque (e os falsos dramas de época), A colecionadora e todos os outros, repetidas vezes.

Você, neófito, vai ser iluminado pela revelação de que Rohmer fez um só filme. E que essa história não termina, não vai terminar nunca.