Dia: fevereiro 12, 2014

[erramos]

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Eu estava conversando hoje à tarde no Facebook com um amigo, jornalista recém-formado, sobre erros – os erros banais que cometemos de vez em quando (e que nos irritam) e, principalmente, sobre o quão frustrante é perceber que, por mais que nos esforcemos, seguiremos errando, sempre e talvez mais.

O que provocou a conversa foi um erro dele, que entrevistou quatro ou cinco pessoas para uma reportagem e, na hora de transcrever as gravações, se confundiu e trocou, sem querer, uma das declarações. Acabou que, no papel, um dos entrevistados dizia com muita fluência e convicção algo que, na realidade, nunca havia dito.

Quando percebeu a besteira que fez, meu amigo por pouco não mordeu a parte interna da bochecha, de tanta raiva. Sem exagero: ele se sentiu doente, desabrigado; um trapo. Entendo a sensação porque também acontece comigo nessas situações, quando cometo o tal equívoco bobíssimo e não consigo identificar de onde ele veio, por que errei, o que aconteceu, qual foi a origem da palhaçada toda. Me sinto estúpido, indefeso e perplexo diante do mistério dos erros, da vida e de tudo mais.

“Por que você trocou os depoimentos?”, eu perguntei (uma pergunta óbvia, porém necessária). “Não sei”, ele respondeu, digitando rapidamente na caixa de mensagens do Face. “Não sei, não faço ideia. Chequei as entrevistas uma, duas vezes, três, estava tudo certo. Mas depois vi que não estava nada certo. Quando fiquei sabendo, me perguntei: você tá brincando comigo?“.

Desastre feito, o pobre jornalista recém-formado tomou uma bronca do chefe e, depois de se afogar em copinhos de café, a vida seguiu. A bronca, no entanto, não foi o que feriu a alma do coitado. Ele sentiu uma dor, digamos, filosófica: outros erros viriam e não também não haveria como identificá-los. Não existiria estratégias para precaução. E ele não aprenderia com aquele erro, em específico. Na dimensão paralela dos erros indefiníveis, ninguém aprende nada. Eles simplesmente viriam, como mosquitos na praia, baratas na subida da Pamplona, bombons dentro do ovo de páscoa etc.

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O que fazer? Nada. Não há nada a ser feito.

O desabafo do meu amigo acabou levando meus pensamentos à época em que eu era um estagiário numa redação de jornal e em que, como todo estagiário, eu errava muito.

Tentarei resumir o caso, que aconteceu mais ou menos assim:

Eu era um repórter ainda muito iniciante na editoria de Cidades, onde eu cobria, entre outros assuntos, assassinatos e brigas de gangue. Naquele dia, minha missão era ir ao velório de um adolescente que havia sido assassinato por um grupo de adolescentes. Aquele tipo de crime acontecia muito e, creio eu, ainda acontece nas melhores e piores cidades [Brasília, onde eu morava, não era das piores].

Cheguei ao velório e, sem muito traquejo para apuração, tentei puxar assunto com três ou quatro amigos do garoto morto. Eles me contaram algumas histórias importantes e outras desimportantes sobre a vítima. Quando percebi que eu tinha todos os detalhes de que precisava para escrever um texto de trinta linhas, voltei para a redação. No início da noite, a matéria estava pronta: era um perfilzinho singelo sobre o rapaz assassinado.

No topo dos três parágrafos, lia-se: “Da Redação”. Explico: estagiários eram proibidos [pelo sindicato] de assinar matérias.

O erro? Sim, vamos à ele. O erro começou a se infiltrar naquela pequena matéria quando o editor sugeriu que eu usasse nomes fictícios para identificar as pessoas que entrevistei. Obviamente, nenhuma delas queria mostrar o nome num texto sobre briga de gangues. Acredito que, se fosse entrevistado, até o moço da barraquinha de cachorro-quente preferiria não ser identificado. Era perigoso.

“Pense num nome para este personagem aqui”, pediu o editor. E eu, inocentemente, falei o primeiro que clicou nos meus neurônios. “Felipe”.

Pronto: nascia um Felipe de ficção, claramente identificado como tal. No início da matéria, havia uma explicação em itálico: todos os nomes desta matéria são fictícios.

Concluímos a edição, o texto foi diagramado e voltei para casa. Não lembro o que fiz naquela noite, mas devo ter visto seriados e escrito textos constrangedores para um dos meus blogs.

No dia seguinte, fiquei muito feliz ao ver meu texto publicado numa página de jornal. Eu era estagiário, lembrem-se.

Havia, no entanto, um problema. No telefone, uma mulher queria falar comigo e, segundo a secretária, parecia “desesperada feito uma louca histérica”. Quando atendi o telefone, entendi o significado daquela expressão. A mulher não apenas falava rapidamente, mas gaguejava, chorava, não conseguia concatenar as frases. Um terror. “O que aconteceu, senhora?”, eu perguntava, já com a voz sumindo. “O que aconteceu, senhora? Diga, senhora. O que aconteceu?”

“Por que você colocou o nome do meu filho no jornal?”, ela perguntou, cada vez mais nervosa. “Por quê? Por quê?”

“Mas que filho?” [eu já estava me sentindo num drama familiar com a Meryl Streep no papel principal]

“O Felipe. Meu filho, o Felipe”

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Foi quando entendi o drama em sua versão integral, sem cortes. Um dos garotos que estavam no velório, não aqueles que entrevistei, se chamava Felipe e, segundo aquela mulher desesperada, estava com muito medo de morrer. Isso, claro, após a leitura da matéria que escrevi.

Tentei explicá-la que o nome na matéria era de ficção, era um nome fictício, mas ela não queria (ou não podia, ou não sabia) entender o significado daquele recurso jornalístico. Ficção ou não, mais cedo ou mais tarde os outros adolescentes da gangue ameaçariam o Felipe real. No jornal, ele aparecia falando sobre a vida do menino morto e sobre como aquela violência toda tinha que, um dia, acabar.

Conversamos ainda por alguns minutos e, quando desistimos de buscar solução para um problema tão inesperado, desligamos o telefone, exaustos. Foi uma das semanas mais aflitivas da minha vida. Eu sonhava com aquele Felipe real sendo perseguido por outros Felipes e morrendo. Em outros sonhos, o Felipe sequestrava minha família – e morria no fim (ele sempre morria no fim). No trabalho, eu ficava tenso ao apurar com a polícia as ocorrências. Dia sim, dia não, eu telefonava para a mãe do Felipe e ela dizia que, por enquanto, estava tudo bem. Aquele por enquanto me torturou de tal forma que pensei em desistir da profissão.

O tempo passou e, por sorte, ninguém foi atrás do Felipe. Esqueceram o caso. A rotina voltou a ser só aquilo de todos os dias, uma rotina, mas nunca me recuperei daquele erro. O que eu poderia ter feito para evitá-lo? Nunca mais usei nomes fictícios em matérias, mas sempre senti que algo terrível poderia ocorrer como resultado de uma ação minha – e de uma ação simples, ingênua. Poderia uma matéria singela de jornal provocar sofrimento a alguém?

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Sim, pode, isso é óbvio. Se eu pudesse, evitaria todos os meus erros. Os mais banais, acima de tudo. Não arranharia a mesa da sala ao apoiar meu computador de um jeito estabanado. Não digitaria Indianápolis em vez de Indianópolis. Não faria um comentário raivoso e cheio de preconceitos sobre uma pessoa que mal conheço.

O que me assusta nesses erros misteriosos é notar que estou, a todo momento, em perigo, prestes a ser traído pelo meu cérebro, por meus sentidos. “Prefiro não pensar muito nisso”, meu amigo disse. Também prefiro, mas ainda não sei se, nesses casos, essa seria a coisa certa a fazer.

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As ilustrações são do tumblr História Sem Graça